[O Observador publica nas próximas semanas vários capítulos de uma grande investigação sobre organizações com impacto e influência na sociedade portuguesa. Os trabalhos foram realizados com uma bolsa Gulbenkian de investigação jornalística.]
São organizações com grande influência na sociedade portuguesa. Protagonistas nos seus setores e com grande capacidade de mobilização, falam e atuam em nome de milhares de associados. Funcionam como centros de poder, seja em setores profissionais, seja no mundo laboral e da concertação social ou no setor social. Algumas são intermediárias e gestoras de milhões de euros em financiamentos ou apoios públicos, têm benefícios fiscais e também podem atuar em nome do Estado no apoio a grupos mais vulneráveis, na formação ou na regulação de uma profissão. No entanto, o escrutínio público não é feito de forma sistemática, às vezes nem pelos próprios pares, e só aparecem no radar quando são apanhadas numa “crise”.
Como funcionam? Como são financiadas? Quem as governa e a quem prestam contas? São algumas das respostas que este trabalho procura dar. A recolha de dados começou nos sites institucionais e outras fontes públicas. Numa segunda etapa, as entidades foram contactadas para responderem a perguntas concretas sobre a sua vida interna e disponibilizarem documentos onde as respostas pudessem ser encontradas. No final, é feita uma avaliação da transparência tendo por base a informação que é pública e que foi disponibilizada após o pedido.
A Ordem dos Advogados elegeu em dezembro novos órgãos dirigentes. Dos seis candidatos a bastonários, dois passaram para a segunda volta e Guilherme Figueiredo falhou a tentativa de ser um dos poucos a conseguir dois mandatos à frente de uma das ordens profissionais mais poderosas e com mais património do país. No tempo da democracia, só dois bastonários repetiram o mandato: Júlio Castro Caldas, exerceu o cargo entre 1993 e 1998, e Marinho e Pinto, entre 2008 e 2013. Menezes Leitão foi eleito novo bastonário.
Pontualmente usado como trampolim para carreiras na política, o cargo de bastonário da Ordem dos Advogados tem grande visibilidade e é sempre muito disputado. Este ato eleitoral mobiliza um total de 450 candidatos a 176 cargos, somando os órgãos nacionais e os regionais. Só os órgãos nacionais elegem 46 membros a partir de listas que mobilizam 183 concorrentes. Mas só o cargo de bastonário é pago — e muito bem pago —, exercido em regime de exclusividade com uma remuneração indexada à da Procuradora-Geral da República e direito a um subsídio de reintegração após o exercício de funções.
A fixação de um salário por desempenho de funções em exclusivo e equiparado ao do primeiro magistrado do país foi uma das primeiras decisões de António Marinho e Pinto assim que chegou ao cargo em janeiro de 2008. É ainda hoje um tema sensível na classe. Ainda nestas eleições, o candidato vencedor anunciou a intenção de abdicar do salário, por discordar do conceito bastonário/funcionário. Menezes Leitão, que concorreu contra Guilherme Figueiredo na lista de Elina Fraga, era presidente do Conselho Superior da Ordem antes de ter vencido a eleição. O novo bastonário abdica do salário, mas também não dedicar-se ao cargo em exclusividade.
Cronologia
As eleições da Ordem dos Advogados são sempre muito disputadas, não só em número de listas concorrentes, mas também no grau de participação dos advogados. Para a elevada percentagem de votantes contribui o facto de o voto ser obrigatório, ainda que não exista grande tradição de sancionar advogados que não votem. As taxas de participação andam na casa dos 70%.
Eleito em 2007, Marinho e Pinto foi um dos bastonários que mais ruído gerou à sua volta com tomadas de posição fraturantes no meio judicial e não só. Em 2010, e a propósito do caso Freeport, o então bastonário ficou ao lado de José Sócrates, acusando o poder judicial de querer derrubar o primeiro-ministro.
Auto-intitulado advogado de província, Marinho e Pinto afrontou juízes, aquilo que dizia ser a elite de Lisboa e a ministra da Justiça de Passos Coelho em temas como a dívida do Estado aos advogados oficiosos ou o novo mapa judiciário. Os ataques a Paula Teixeira da Cruz chegaram a ser por vezes pessoais — chamou-lhe “betinha de Lisboa” e “barata tonta” — e acusou-a de entregar o ministério a um escritório de advogados de Lisboa.
A Ordem deu-lhe palco e, quando saiu para se dedicar à política, conseguiu ser eleito deputado no Parlamento Europeu pelo MPT — Partido da Terra em 2014, cargo que não renovou nas últimas eleições. Deixou à frente da Ordem a sua número dois, Elina Fraga, que foi apenas a segunda mulher a conseguir ser eleita bastonária, isto apesar de as estatísticas demonstrarem claramente que desde 2006, elas são mais do que eles.
Mais advogados, mais receitas, mas também mais dívidas
A classe dos advogados parece ter prosperado, mesmo nos anos da crise económica e da intervenção da troika. O número de inscritos na Ordem não parou de subir, tal como o número de sociedades de escritórios. Não há dados sobre a faturação do setor — as sociedades de advogados têm de entregar as contas à Ordem, mas esta não divulga números agregados sobre os valores movimentados por estas entidades.
No período entre 2014 e 2018, as receitas com quotas cresceram, mas a Ordem debate-se também com dívidas elevadas dos seus associados, e que levaram à assinatura em 2018 de um acordo com o fisco para a execução dos devedores. Dados recentes falam em 14 mil advogados (mais de um terço do total inscrito) com quotas por pagar num total de sete milhões de euros. Dois mil advogados tinham dívidas de 5,5 milhões de euros e há processos de execuções a 500 associados. Ainda assim, a situação financeira da Ordem é sólida, com resultados quase sempre positivos e fundos patrimoniais crescentes.
Os relatórios de 2017 e 2018 não têm certificação legal de contas obrigatória. O Revisor Oficial de Contas (ROC) refere no site da própria instituição que a Ordem dos Advogados não contratou os serviços para realizar a demonstração financeira desses dois exercícios. Não obstante, o conselho fiscal da OA aprovou as contas de 2017 e 2018.
O bastonário explicou ao Observador que esta falta resultou de uma alteração no quadro legal que rege as entidades sem fins lucrativos, transposta para os estatutos da Ordem e que levou à inclusão de um ROC no conselho fiscal. O conselho fiscal não pode, por lei, emitir certificação legal de contas e o ROC que está neste órgão social não pode ser remunerado para o fazer. Guilherme Figueiredo garantiu que a situação estava em vias de ser resolvida com a contratação de uma sociedade ROC para certificar contas. As contas da Ordem são remetidas para o Tribunal de Contas para controlo financeiro.
Os resultados consolidados da Ordem a nível nacional são sólidos, mas escondem desequilíbrios regionais que refletem as assimetrias demográficas e económicas do país. No orçamento para 2019, o bastonário Guilherme Figueiredo alerta para um “desajustamento entre as receitas que lhe são estatutariamente imputadas e as despesas a que têm de ocorrer” em alguns dos conselhos regionais. O que resulta em saldos e execução orçamentais deficitários. Nestes casos, os défices podem ser financiados com o apoio extraordinário do Conselho Geral.
Quem manda na Ordem
Guilherme Figueiredo foi eleito bastonário no final de 2016 à segunda volta, numa votação disputada com a então bastonária Elina Fraga. Venceu com uma diferença de 669 votos. Já tinha concorrido à liderança da Ordem em 2013, mas nessa altura perdeu. E nas recentes eleições falhou a reeleição para Menezes Leitão.
Quando chegou ao cargo ordenou auditorias aos mandatos dos antecessores nas quais foram detetadas irregularidades na contratação de advogados para representar a Ordem na impugnação de processos disciplinares. Estas falhas na contratação, sem consulta prévia, correspondem ao mandato de Elina Fraga e foram remetidas em 2018 para o Ministério Público, quando a anterior bastonária já era vice de Rui Rio no PSD. Questionada pelo Observador sobre eventuais desenvolvimentos deste inquérito, a Ordem dos Advogados não respondeu.
Guilherme Figueiredo conhece bem a casa. Advogado do Porto, onde tem um escritório, foi durante seis anos presidente do conselho distrital da Ordem no Porto. “Era a pessoa certa para dar à ordem uma voz ativa, audível e respeitada”, defendeu o apoiante Rui Patrício na sua primeira eleição. Guilherme Figueiredo tem-se dedicado sobretudo ao direito de empresas, de família, mas também de direitos de autor. Da sua biografia há aliás um capítulo relevante na cultura e nas artes, com atividades que vão do cinema e do teatro, onde chegou a representar, até à poesia. Esteve na direção de várias organizações ligadas à cultura. Foi presidente do conselho distrital do Porto da Ordem dos Advogados entre 2008 e 2010.
Menos mediático que os antecessores, chegou a dizer de si próprio que faz uma “advocacia discreta”, Guilherme Figueiredo viu-se envolvido em polémica quando foi noticiado que ganhava mais 13 mil euros num ano do que a procuradora-geral da República, contrariando uma deliberação do conselho geral nesse sentido, o que foi desmentido em comunicado.
O último relatório e contas atribui-lhe uma remuneração bruta anual de 114 mil euros, o que dá cerca de 8.142 euros brutos quando divididos por 14 meses. Os restantes titulares de órgãos sociais têm direito ao reembolso de despesas com deslocações. Os eleitos para a administração da Caixa de Previdência dos Advogados recebem senhas de presença.
Como está organizada a Ordem
O bastonário concentra bastantes poderes, mas a organização da Ordem dos Advogados é mais complexa. Há uma distribuição de poderes pelos órgãos nacionais e regionais para permitir um controlo transversal dentro da organização. Um exemplo disso é o processo disciplinar de que foi alvo Elina Fraga em 2013, quando era vice-presidente do conselho geral liderado por Martinho e Pinto. A advogada foi sancionada com uma censura pelo conselho superior por ter recebido pagamento de um cliente para tratar de uma herança, o que não terá feito.
Para este sistema de equilíbrios internos contribui a circunstância de alguns órgãos terem autonomia financeira. Os conselhos distritais têm receitas próprias e apresentam os seus relatórios e contas anuais.
A Ordem dos Advogados é composta por 10 órgãos estatutários, dos quais seis nacionais e quatro regionais.
- Congresso dos Advogados. Reúne de cinco em cinco anos e pode ser participado por todos os advogados inscritos na Ordem. Visa discutir temas de atualidade sobre a justiça. O último realizou-se em 2018 sob o tema “Uma Advocacia Forte numa Sociedade Mais Justa”.
- Assembleia geral. É composta por todos os advogados inscritos e com quotas em dia. Aprova contas e orçamento anual e, de três em três anos, reúne-se para eleger órgãos sociais. Os mandatos dos órgãos sociais são de três anos e apenas podem ser repetidos duas vezes.
- Bastonário. O bastonário tem um conjunto vasto de competências – 18, segundo os estatutos – , entre as quais presidente do principal órgão de decisão da ordem, o conselho geral. Tem voto de qualidade para desempatar votações nos órgãos colegiais.
- Conselho Geral. Presidido pelo bastonário, tem 5 vice-presidentes e 14 vogais. Compete-lhe definir as posições a tomar pela Ordem perante os órgãos de soberania. Emite pareceres sobre projetos de diplomas e inscrição de advogados. Pode transferir verbas e autorizar subsídios, propõe quotas e taxas a pagar por advogados. Aprova pactos sociais de escritórios de advogados.
- Conselho Superior. É o órgão jurisdicional, a quem compete julgar recursos de decisões dos conselhos deontológicos em matéria disciplinares e emitir pareceres sobre honorários. Tem um presidente, 5 vice-presidentes e 16 vogais.
- Conselho fiscal. Acompanha e controla a gestão financeira da ordem, dá pareceres sobre contas. É composto por três membros mais um ROC.
Esta estrutura nacional é replicada parcialmente a nível regional. Há conselhos regionais: Lisboa, Porto, Coimbra, Évora, Madeira, Açores e Faro. Cada um tem ainda órgãos locais, delegações a nível concelhio que organizam o seu próprio processo eletivo. Os órgãos regionais são eleitos em assembleias regionais.
O poder disciplinar é exercido pelos conselhos de deontologia distritais em primeira instância na respetiva área geográfica. Mas estas decisões são ainda passíveis de recurso para o conselho superior que, no ano passado, julgou 280 processos de ação disciplinar.
A Ordem divulga no seu relatório de atividades dados sobre os processos disciplinares e sanções aplicadas por conselho regional, mas não há muita informação sobre o resultado dos recursos para o conselho superior e sobre os advogados sancionados. Nos casos em que a sanção inclui a publicidade, é afixado um ofício em local público, como um tribunal.
Quanto contribuem os advogados e o que recebem
A Ordem dos Advogados é uma associação pública que representa os profissionais de advocacia. As suas funções principais são regular o acesso à profissão e exercer o poder disciplinar. A inscrição e pagamento de quota são obrigatórios e constituem a principal fonte de financiamento. Outra fonte importante são os estágios, cuja receita rondou os 1,7 milhões de euros em 2018. Cada estágio, incluindo o exame final de avaliação, custa 850 euros, e é obrigatório para aceder à profissão, o que implica a inscrição na Ordem. As quotas variam em função dos anos de profissão
- 15 euros por mês até quatro anos;
- 25 euros entre 5 e 6 anos;
- 35 euros a partir dos seis anos;
- 35 euros para reformados.
Para além da regulação do acesso e do poder disciplinar, a Ordem disponibiliza outros serviços, como por exemplo um seguro de responsabilidade civil que vai até aos 150 mil euros.
Os advogados têm ainda de contribuir para a Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores, que constitui um sistema de segurança social próprio, o último privado que ainda resiste. As contribuições são mensais e variam em função de escalões de rendimentos, num total de 26, mas os beneficiários podem escolher o escalão sobre o qual descontam. Mesmo que ganhem mais, podem descontar o mínimo, que atualmente está nos 232 euros por mês e que irá subir para 250 euros no próximo ano.
A Caixa de Previdência de Advogados e Solicitadores (CPAS) tem um património avaliado em mais de 500 milhões de euros. Os relatórios e contas ilustram com grande detalhe os investimentos financeiros feitos, ao ponto de identificarem as ações e obrigações de cada entidade, o banco onde estão depositadas e o valor de mercado destas aplicações.
Também a carteira de imóveis é descrita em pormenor, com moradas, avaliações patrimoniais e receitas com rendas. A comparação entre o valor contabilístico e o valor de mercado destes imóveis, de mais de 140 milhões de euros, sinaliza que no final de 2018 as mais-valias potenciais da ordem estavam dos 18 milhões de euros.
O site da CPAS tem uma página dedicada ao património imobiliário com fotos e as localizações dos imóveis, acompanhadas do valor contabilístico, das rendas cobradas nos últimos anos e do fim a que se destinam. O património mais valioso está concentrado em Lisboa.
Em 2018, a CPAS teve lucros de 14,5 milhões de euros e o fundo de garantia para pagamento de pensões totalizava 492 milhões de euros. Mas estes números escondem problemas de sustentabilidade do sistema. Em 2015 e 2016, as contribuições recebidas foram insuficientes para fazer face aos gastos com os beneficiários, que cresceram a um ritmo mais elevado do que no passado. E, em 2015, a Caixa de Previdência registou prejuízos de 19,7 milhões de euros. A agravar o desequilíbrio financeiro está a enorme dívida acumulada relativa às contribuições dos advogados, que nesse ano atingiu 130 milhões de euros. O relatório do conselho fiscal de 2015 alertava que o património da Caixa não era suficiente para fazer face aos pagamentos futuros estimados.
O novo regime, aprovado também em 2015, resultou num aumento do valor das contribuições mensais, imposição de limites no acesso à reforma e o recurso às cobranças coercivas por parte do fisco para lidar com as dívidas dos advogados. Ainda que, do ponto de vista económico, estas dívidas não tenham impacto – porque a Caixa não tem de pagar subsídios a beneficiários que estão em falta – a situação afeta a sustentabilidade futura do sistema.
Em 2017, foram iniciados 1633 processos de contencioso para cobrança coerciva de 37,3 milhões de euros, mas as decisões judiciais destes processos apontam em várias direções. No final do ano passado, a CPAS tinha 167 processos em contencioso. E há beneficiários que contestam o novo regime de contribuições e até a existência da própria Caixa, defendendo a integração da classe na Segurança Social.
A principal queixa é a inexistência de subsídio para casos de doença e desemprego para os advogados que trabalham como profissionais liberais, por conta própria. Tal como está, a Caixa funciona como um PPR que é caro, sobretudo para quem tem um rendimento mais baixo. Já em 2018, e face ao aumento contínuo do salário mínimo, ao qual estavam indexados os escalões de rendimento, com o consequente agravamento das contribuições, a situação foi alterada com a criação de um outro indexante para a atualização dos montantes a pagar pelos beneficiários.
Um estudo realizado para o ano de 2018 concluiu que o regime era sustentável no horizonte de 15 anos. E para essa sustentabilidade futura contribuiu uma alteração ao regime fiscal do IRC aplicável à Caixa dos advogados. Esta mexida já estava prevista no Orçamento de Estado para 2019 e foi concretizada em outubro, equiparando a CPAS a outras instituições de segurança social como fundos de pensões e associações mutualistas. A Caixa, que até agora pagava IRC sobre lucros das aplicações e operações financeiras, passa a beneficiar de isenção total do pagamento de imposto sobre os lucros.
Ainda antes da isenção total, a Caixa de Previdências dos Advogados já constava da lista de entidades que maiores benefícios fiscais recebe em sede de IRC, 36,7 milhões de euros no ano passado.
Avaliação de transparência
O objetivo deste exercício é avaliar o nível de informação pública e aberta a todos facultada pela instituição, mas também a resposta dada pela entidades visadas, quando contactadas por via institucional (gabinetes de comunicação) para responder a um questionário exaustivo, ou, em alternativa, fornecer documentação que pode conter a informação pedida. São ponderados fatores como a disponibilidade inicial para responder, tempos de resposta, envio de documentos, grau de detalhe nos documentos facultados, colaboração para dar esclarecimentos adicionais e necessidade de recorrer à liderança das organizações para desbloquear o processo de envio de informação.
Nem todas as questões foram cabalmente respondidas, mas o nível de informação pública disponibilizado pela Ordem dos Advogados sobre a sua organização, sobretudo no que toca à componente financeira, é muito completo e detalhado.
[O próximo artigo a publicar será sobre a Associação Nacional de Farmácias (ANF).]
Infografia da We are Singular