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O regime iraniano tinha convidado esta quarta-feira os principais líderes dos movimentos que integram o eixo de resistência — o palestiniano Hamas, o libanês Hezbollah e o iemenita Houthi — para assistirem à tomada de posse do novo Presidente do Irão, Masoud Pezeshkian, em Teerão. O convite não era propriamente surpreendente, tendo em conta as ligações daqueles grupos islâmicos ao regime do Irão. Não obstante, o desfecho acabou por se revelar abrupto e manchar o evento: na capital iraniana, o líder político no exílio do Hamas, Ismail Haniyeh, foi assassinado.
Israel não confirmou publicamente a autoria da morte de Ismail Haniyeh e recusa-se a prestar comentários sobre o assunto, uma prática habitual da Mossad. Nem num discurso à nação esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reivindicou o ataque. Contudo, é quase certo que os serviços secretos israelitas estiveram por trás deste ataque. O chefe de executivo já tinha dado luz verde, no início do ano, para um plano que tinha como objetivo matar os líderes do Hamas no estrangeiro. Segundo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, a luta contra o grupo islâmico é “internacional”, incluindo os “terroristas em Gaza” e “aqueles que voam em aviões caros”.
Por sua vez, o Hamas não perdeu tempo em apontar o dedo a Telavive, dizendo que o assassínio do líder político do grupo islâmico se deveu a um “ataque sionista traiçoeiro”. E prometeu uma retaliação, garantindo que não passará “impune”. O regime iraniano respondeu na mesma linha. “Com esta ação, o regime sionista criminoso e terrorista prepara o terreno para uma punição severa para si próprio. Consideramos que é nosso dever vingar o seu sangue, já que foi martirizado no território da República Islâmica do Irão”, assinalou o líder supremo do Irão, o aiatolá Ali Khamenei.
Em termos operacionais, este ataque foi um sucesso em toda a linha para o governo israelita. Para além de eliminar um dos seus maiores inimigos na liderança do Hamas, Telavive expôs as vulnerabilidades defensivas do Irão, que não conseguiu proteger os “convidados” para a tomada de posse. Há especialistas que falam mesmo numa “humilhação” para o regime iraniano. Em declarações ao Wall Street Journal, Sanam Vakil, especialista no Médio Oriente pertencente ao think tank Chatham House, assinalou que este ataque “humilha os iranianos e mostra as falhas nos seus mecanismos de segurança e de serviços secretos”.
Adicionalmente, Israel também consegue eliminar uma das “cabeças da serpente” do Hamas, como lhe chamou o rabino Shmuel Eliyahu. Enquanto líder político no exílio, mais concretamente no Qatar, Ismail Haniyeh era um dos políticos mais importantes e influentes do grupo islâmico. A sua morte debilitará o Hamas, não sendo claro ainda quem será o seu sucessor.
Apesar do sucesso estratégico que Israel obteve nesta operação, a morte de Ismail Haniyeh pode levar a um aumento de tensão, que pode afetar todo o Médio Oriente. “Estamos preparados para todos os cenários”, assegurou esta quarta-feira Benjamin Netanyahu. Em abril, após um ataque ao complexo diplomático iraniano na Síria, Teerão lançou uma extensa ofensiva aérea com recurso a mísseis — grande maioria acabou intercetada pelos sistemas de defesa aéreos israelitas. Qual será a resposta do Irão desta vez? Por agora, o New York Times adiantou que as autoridades iranianas vão atacar diretamente território israelita.
“O embaraço iraniano” e os espiões israelitas
Mick Mulroy, antigo membro da CIA e ex-conselheiro durante a administração Trump, não tem dúvidas de que este assassínio do líder do Hamas é um “embaraço absoluto” para o regime iraniano. “Ismail Haniyeh era seu convidado. Isto foi uma falha completa da sua segurança”, disse ao Washington Post, teorizando que Israel teria informações confidenciais que lhe permitiram levar a cabo este ataque em Teerão.
Em concreto, Israel terá atacado o quarto onde dormia esta madrugada (o ataque foi às 2h00 em Teerão) Ismail Haniyeh com um míssil de longo alcance, ainda que não se saiba se foi lançado desde território iraniano, ou se do estrangeiro. De acordo com o vice-líder do Hamas em Gaza, Khalil Al-Hayya, que citou testemunhas que estiveram no local, o quarto onde dormia o responsável do grupo islâmico ficou completamente destruído.
O secretário-geral da Jihad Islâmica Palestiniana, Ziad Nakhaleh, teve um desfecho diferente de Ismail Haniyeh. Embora estivesse alojado no mesmo edifício que o líder do Hamas, estava noutro piso, para onde o míssil não foi direcionado. Acabou, por conseguinte, por sobreviver.
À Agence France-Presse, a vice-presidente do think tank Institut de rechercheet d’études Méditerranée Moyen-Orient, Agnes Levallois, considera que o facto de os “iranianos não terem sido capazes de parar este assassínio é muito embaraçoso”. A especialista explica que este ataque revela igualmente como existem espiões israelitas que conhecem bem os serviços de informações iranianos. “Este assassínio mostra que os serviços secretos israelitas estão bem treinados.”
O Hamas vai resistir?
Desde o dia 7 de outubro de 2023, quando começou a guerra na Faixa de Gaza, que quase 40 mil pessoas, vários altos dirigentes militares e políticos do grupo islâmico foram eliminados — e este é um dos principais objetivos das autoridades israelitas. Segundo conta a Reuters, o ministro da Defesa tem colado no seu gabinete fotografias dos comandantes do Hamas. À medida que são mortos, Yoav Gallant coloca uma cruz vermelha por cima do seus retratos.
“Destruir o Hamas”. A par de trazer os reféns que ainda permanecem na Faixa de Gaza “de volta a casa”, este é o principal objetivo de Israel nesta guerra, algo que foi reafirmado pelo primeiro-ministro israelita esta quarta-feira. “Todos os objetivos que alcançámos só foram possíveis porque não desistimos, porque tomámos decisões corajosas apesar das muitas pressões, a nível nacional e do exterior”, garantiu Benjamin Netanyahu.
Face a esta pressão israelita, o Hamas tem conseguido sobreviver, ainda que tenha perdido nos últimos meses altos dirigentes, tais como Ibrahim Biari (responsável por supervisionar as operações militares no norte da Faixa de Gaza), Saleh al-Arouri (que servia como interlocutor entre o Hamas e o Hezbollah) ou Marwan Issa (vice-comandate do Hamas). Israel confirmou esta quinta-feira de manhã que matou Mohammed Deif, o líder militar do Hamas em Gaza que preparou os ataques de 7 de outubro. Há semanas que Telavive presumia que Deif tinha morrido num ataque a 13 de julho a Khan Younis, mas o grupo islâmico negava essa informação.
Israel confirma: matou o líder militar do Hamas, Mohammed Deif
Neste momento, o nome mais influente do Hamas ainda vivo é Yahya Sinwar, o líder político do grupo islâmico na Faixa de Gaza e que estará escondido em túneis. Perante todos estes revezes, o Hamas terá capacidade para resistir? À RTVE, Manuel Torres, professor catedrático de Ciência Política na Universidade Pablo de Olavide, esclarece que o “desaparecimento de um líder é sempre um momento muito sensível para qualquer organização terrorista, porque abre um período de incerteza sobre a sucessão”.
“Mas grupos como o Hamas estão muito institucionalizados e nenhum dos líderes é insubstituível”, aponta ainda Manuel Torres. Já Azzam Tamimi, analista no portal Middle East Eye, clarifica que para muitos militantes do Hamas tornar-se um mártir “não é uma perda”: “Na doutrina islâmica, o martírio é um dos desfechos com sucesso na luta pela verdade e justiça; a outra é a vitória”.
Certo é que, ao longo da história do movimento considerado terrorista pelo Ocidente, vários dirigentes morreram e foram rapidamente substituídos. A própria estrutura do Hamas está desenhada tendo em conta esse pressuposto. Como sinalizou ao New York Times Azzam Tamimi, a liderança do grupo islâmico sabe que “pode desaparecer a qualquer momento, porque pode ser morta, presa ou deportada”. Por consequência, foi desenvolvido “um mecanismo de transferência rápido” do controlo das operações militares.
A possível resposta do Irão
Se o Hamas vai resistindo, o Irão prometeu uma retaliação e já está a planeá-la, confirmou o deputado Payman Falsafi, assegurando que o assassínio do “mártir Ismail Haniyeh é um ato que vai levar ao arrependimento” por parte de Israel.
De acordo com o New York Times, o aiatolá Ali Khamenei ordenou que vai atacar diretamente o território israelita. Segundo apurou o jornal norte-americano junto de fontes iranianas, poderá tratar-se de uma combinação de ataques com drones e mísseis em alvos militares nas proximidades de Tel Aviv e Haifa, salvaguardando-se alvos civis. Ou então, a missão fica para os seus aliados, como o Hezbollah, os houthis e grupos xiitas. Não se sabe, todavia, quando é que será levada a cabo a ofensiva, podendo demorar alguns dias.
É um cenário idêntico ao que ocorreu há quatro meses. Israel atacou, a 1 de abril, o complexo diplomático iraniano em Damasco, o que causou a morte a sete comandantes da Guarda Revolucionária iraniana — e dois dos quais altos comandantes. Após duas semanas com o “dedo no gatilho”, só a 14 de abril é que Teerão reagiu.
Em todo o caso, tal como aconteceu em abril, dificilmente se assistirá a uma guerra total no Médio Oriente. Como escreveu o jornalista do Financial Times Andrew England, o Irão não quer entrar num “conflito direto com Israel ou os Estados Unidos”. “O principal objetivo” do regime passa antes pela “sobrevivência da república”, o que significa continuar uma espécie de guerra de procuração contra Israel “longe das fronteiras” do país, usando os grupos como o Hamas ou o Hezbollah para esse efeito.
Apesar de uma guerra direta entre os inimigos Irão e Israel ser bastante improvável, isso não significa que a situação esteja controlada. “Eu não penso que o Irão vá para a guerra por causa da morte de um líder do Hamas”, sintetiza Mairav Zonszein, analista do think tank International Crisis Group ao Wall Street Journal. Ainda assim, a especialista avisa que “definitivamente” vai “haver uma resposta iraniana”.
Negociações para um cessar-fogo congeladas?
Independentemente de qual seja a resposta do Irão, algo parece certo. As negociações para chegar a um cessar-fogo deverão ser, nos próximos tempos, interrompidas entre as duas partes. A Casa Branca realçou recentemente que o Hamas e Israel estavam mais “próximos do que nunca” de terminarem o conflito com um acordo. Sem embargo, dirigentes do grupo islâmico acusaram Benjamin Netanyahu de “procrastinar” e levar a um “impasse” nas negociações ao colocar “novas condições”.
Ora, após a morte de Ismail Haniyeh, é provável que as negociações para um cessar-fogo fiquem congeladas. Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani, primeiro-ministro do Qatar, país que tem servido como mediador, queixou-se no X (antigo Twitter) que “assassínios políticos” não resolvem a situação e criam bloqueios à “paz”, que “precisa de parceiros sérios e uma posição global contra o desrespeito pela vida humana”.
À CNN internacional, uma fonte conhecedora das negociações comentou que o assassínio de Ismail Haniyeh pode mesmo “complicar as conversações”, isto porque aquele líder político era um dos mais empenhados, no seio da liderança do Hamas, no objetivo de alcançar um cessar-fogo. “Ele era alguém que via o valor de se chegar a um acordo e era fundamental para ultrapassar certos bloqueios”, explica a mesma fonte.
Political assassinations & continued targeting of civilians in Gaza while talks continue leads us to ask, how can mediation succeed when one party assassinates the negotiator on the other side? Peace needs serious partners & a global stance against the disregard for human life.
— محمد بن عبدالرحمن (@MBA_AlThani_) July 31, 2024
Um cenário de paz entre Hamas e Israel ainda parece longínquo. O governo de Benjamin Netanyahu não desiste do objetivo de “destruir” o grupo islâmico, que vai resistindo com o apoio do Irão e cujos militantes se adaptaram a viver entre a vida e a morte. Já entre Teerão e Telavive, as tensões mantêm-se; é difícil o jogo de equilíbrio com o intuito de que o Médio Oriente não seja arrastado para uma guerra total.