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É a mais velha dos nove filhos de Jorge e Mécia de Sena e foi a primeira (de três) a seguir a área das letras. Formada em literatura comparada, acabou a dar aulas de Espanhol. A culpa em parte é do pai, “um hispanista”, que lhe fomentou o gosto “pela literatura, sobretudo espanhola, embora ensine também literatura hispano-americana” nos Estados Unidos da América. Até hoje, contam-se pelos dedos de uma mão as entrevistas que deu em 69 anos de vida. Há um motivo simples para isso: “Foi a minha mãe que ao longo de três décadas se encarregou da obra do meu pai, não me cabia a mim dar entrevistas. Cabia-lhe a ela, era a mandatária e herdeira. E fazia isso melhor do que ninguém de qualquer maneira”.
Isabel de Sena está em Portugal para participar num programa organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian para celebrar o centenário de nascimento de Jorge de Sena, autor de um dos melhores romances portugueses do século XX (Sinais de Fogo) e do grande conto-novela O Físico Prodigioso, dono de uma obra poética ímpar, que durante 58 anos de vida (morreu em 1978) foi primeiro cadete da escola Naval, excluído da marinha por lhe faltar aptidão para oficial, engenheiro civil depois e — por último e sobretudo — poeta, romancista, contista, ensaísta (destaque para os estudos sobre Pessoa e Camões), dramaturgo e professor universitário, entre outras coisas.
Esta terça-feira, dia 22, a filha mais velha de Jorge e Mécia estará na abertura e conclusão da “Jornada Jorge de Sena”, que juntará no auditório 3 da Fundação Calouste Gulbenkian amigos e especialistas na obra do pai, como o antigo presidente da República António Ramalho Eanes, Guilherme d’Oliveira Martins, Nuno Júdice, Gastão Cruz, Jorge Vaz de Carvalho, Jorge Fazenda Lourenço, Hélder Macedo e Jorge Silva Melo.
Ao Observador, Isabel de Sena deu uma longa e rara entrevista, em que recordou a infância em Portugal antes da família se exilar por motivos políticos, o embarque tumultuoso para o Brasil com a mãe e os seis irmãos (iam ter com o pai), a viagem não menos difícil que se seguiu com paragem no Dakar e a vida dos Sena nos Estados Unidos da América, que incluía receber “alunos em casa para discutir o Martin Luther King, o Nixon e as manifestações contra o Vietname”. Recordou mais coisas: a detenção do pai pela PIDE em Marvão (resolvida com um telefonema para Marcello Caetano), a vida de uma “família enorme” onde “nunca havia dinheiro que chegasse”, o espírito crítico que o pai “nunca iria sacrificar para poder voltar” a Portugal (embora”gostasse de ter regressado”) e um cultivo ímpar da “liberdade” e “autonomia” de que se reclama herdeira. E não há facetas do pai por descobrir? Claro que há: “O meu pai gostava muito de cinema e uma das coisas que nos divertia imenso a nós, aos filhos, era que quando havia cartoons, desenhos animados, ele ria-se como qualquer garoto”.
“Tudo o que resta do espólio teve de ir para minha casa”
O que é que achou da organização desta “Jornada”, deste dia dedicado à comemoração dos 100 anos do nascimento do seu pai?
Só tenho a agradecer à Fundação Gulbenkian por organizarem essa jornada, também em função deste primeiro número do ano da Revista Colóquio/Letras, que é o número 200 [dedicado a Jorge de Sena]. É uma dupla oportunidade de celebração, tanto para a Gulbenkian como para o escritor que escolheram para iniciar este ano de celebrações do centenário do nascimento do meu pai. Estou muito agradecida. A edição já vi, acho que ficou excelente, gostei muito do trabalho, tanto editorial do professor Nuno Júdice como gráfico. Acho que ficou muito bonito. Também incluíram outras pessoas na Jornada, o que dá margem a abrir novas perspetivas [sobre Jorge de Sena] além das que já vêm publicadas neste número 200. Estou muito contente.
Revista “Colóquio/Letras” publica três cartas inéditas de Jorge de Sena
Já pensou em que é que se debruçará nas intervenções que fará esta terça-feira? Falará em dois momentos, primeiro na abertura desta “Jornada”, em que também estarão António Ramalho Eanes e Guilherme d’Oliveira Martins, e depois na conclusão, numa conversa com Hélder Macedo.
Na abertura irei só agradecer à Gulbenkian, tal qual acabo de fazer, tanto o convite como a iniciativa que tiveram em ser os primeiros a começar uma série de eventos que acontecerão ao longo do ano. Depois, na última parte, terei uma espécie de conversa com o professor Hélder Macedo, em parte sobre as várias palestras do dia e em parte um diálogo entre nós, porque ele conhecia o meu pai, é poeta também, conheci-o já há muitos anos… Há uma certa relação já estabelecida, pelo que não será uma apresentação formal, digamos.
Falou de “uma série de eventos” de homenagem. Que eventos serão?
Não posso descrever exatamente o que é que vai acontecer. Sei que vai haver uma série de coisas organizadas por diferentes instituições, mas não sou a organizadora, embora esteja sempre disposta a colaborar — e já falei com várias pessoas. Não queria estar a dizer “vai acontecer isto ou aquilo” porque não sou a organizadora e prefiro dar esse espaço às pessoas para poderem apresentar os eventos quando quiserem e como acharem melhor.
Referia antes desta conversa que não costuma dar muitas entrevistas…
Não, nunca [risos].
Não foi procurada por jornalistas ao longo destes anos ou preferiu não falar?
Foi uma combinação de fatores. Na verdade, a primeira entrevista que me fizeram foi quando tinha 19 anos, em 1979. Quando cheguei aqui [a Portugal] muito jovenzinha, fui entrevistada pela Alice Gomes. Parece que a entrevista deu uma certa polémica, não faço ideia como nem porquê. Era muito ingénua, respondi a tudo de maneira muito aberta e transparente. Fora isso só aceitei uma ou outra entrevista mais tarde. Como após a morte do meu pai, em 1978, foi a minha mãe que ao longo de três décadas se encarregou da obra, não me cabia a mim dar entrevistas. Cabia-lhe a ela, era a mandatária e herdeira. E fazia isso melhor do que ninguém de qualquer maneira. Eu não tinha nada que dar entrevistas.
A sua mãe dava entrevistas, cuidava da obra, escrevia prefácios, notas críticas…
Exatamente. Todo esse trabalho e todas essas edições que se fizeram, em particular das correspondências, refletem um trabalho hercúleo que a minha mãe foi fazendo ao longo destes anos todos. Colaborei com ela em diferentes momentos. Fiz parte da equipa que organizou o primeiro volume de poesia que saiu logo após a morte do meu pai, Quarenta Anos de Servidão. Transcrevi também uma porção de cartas trocadas entre os meus pais até se casarem, em 1949, que depois foram publicadas com o título Isto Tudo Que Nos Rodeia. Nessa altura estivemos em Londres, por intermédio de Hélder Macedo, de Eugénio Lisboa e de Rui Knopfli. Participei na transcrição dessas cartas, o que deu início à publicação dessas cartas dos meus pais mais de foro íntimo. Mas tem sido sempre um papel mais de apoio à minha mãe, de intercâmbio — porque ela ia-me sempre contando o que estava a acontecer, escrevia-me cartas a dizer “publiquei isto” ou “fiz aquilo”, mandava-me os livros, havia um intercâmbio que se mantinha não só por escrito mas também por telefone.
Mantive essa postura de apoiar sempre, mas as decisões eram feitas por ela. Agora estamos numa outra etapa em que vou fazendo uma transição [a mãe tem 98 anos], até porque para já tudo o que resta do espólio teve de ir para minha casa. Moro em Nova Iorque, não na Califórnia… [risos] Tem havido uma série de contratempos dessa natureza que têm demorado o processo de transição [de responsabilidade de gestão da obra].
“…Ia eu a sair a porta com o pequeno para casa da Eunice, quando o carteiro chegou com a tua carta. Nem queria acreditar, meu amor. Foi como se finalmente alguma coisa me prendesse à terra, e um pouco de calor teu me chegasse. Realmente nunca me custou tanto a separar de ti, nem saberei bem explicar porquê. Um temor da travessia do atlântico, um temor de que fiques por aí e eu me veja entre o desejo invencível de ir e a necessidade de ficar, sei lá mas talvez simplesmente e de cada vez mais não suportar estar longe de ti e saber que mesmo uma carta leva dias e pode nem chegar, de modo que sempre trocaremos correspondência de surdos.”
(Carta de Mécia a Jorge de Sena, incluída no site ‘Ler Jorge de Sena’)
“No momento de embarcarmos disseram: esta senhora não pode embarcar”
Sendo a filha mais velha, será a que terá memórias consolidadas de um percurso anterior ao primeiro exílio do seu pai. Quais são as primeiras memórias que tem da sua família?
As primeiras memórias daqui são do convívio do meu pai com muita gente. Por exemplo, o meu padrinho é Ruy Cinatti, que é um dos poetas dos “Cadernos de Poesia” [importante e eclética revista literária, em que se divulgaram poetas “sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas”]. A Sophia de Mello Breyner era muito amiga dos meus pais, também. Havia todo esse contacto com essas pessoas que vim a conhecer muito dessa forma, através do contacto que tem uma criança com as pessoas do meio em que vive, que a rodeiam.
Há uma coisa interessante relativamente ao meu pai que é a total abertura dele, sem necessariamente ter em conta obstáculos ou coisas que outras pessoas poderiam considerar. Essa abertura ia desde ter amizades, para ele muito importantes, com dois padres que eram poetas — Manuel Antunes e Vasco Miranda –, e que deram o nome a um dos meus irmãos, Vasco Manuel, até por exemplo a relação com um personagem interessantíssimo que era Dionísio Ridruejo, que era também escritor, espanhol, e que esteve ligado na juventude à Falange Espanhola [partido de ideologia fascista]. Ele dizia: não, isso foram coisas de adolescência e tal. Mas o facto de uma pessoa como Dionisio Ridruejo ter tido esse passado [de que depois se afastou] nunca impediu que o meu pai tivesse qualquer prevenção contra ele. Isso foi uma coisa que acho que nos marcou muito a todos, esse espírito muito ecuménico de aceitar as pessoas e de valorizar o que nelas vale mais, que é a humanidade, a inteligência, a arte e a escrita.
Houve um episódio que acabou por motivar o vosso primeiro exílio no Brasil: a participação do seu pai no Golpe da Sé, em 1959. Mas antes disso vivia-se já um clima de oposição política na vossa casa?
Acho que qualquer pessoa que crescesse aqui nos anos 1950, que foi o meu caso, não poderia evitar saber que existia uma coisa que se chamava censura, que havia uma coisa que se chamava PIDE, que havia uma coisa que consistia em escutar os telefones, que era preciso pedir licença para as pessoas se reunirem se estivessem mais de dez pessoas juntas. Havia toda uma série de restrições que condicionavam profundamente a forma como se vivia neste país — ou em qualquer país que viva numa ditadura.
Acho que nesta altura já se pode dizer que os meus pais, por princípio e por acreditarem profundamente na liberdade de expressão e de pensamento das pessoas, inclusive cederam a nossa casa para algumas reuniões do Partido Comunista. Isso foi uma coisa que me marcou logo de pequena, porque havia a necessidade de absolutamente não falar dessas coisas, de maneira nenhuma e com ninguém. Inclusive nós, crianças, e suponho que por ser mais velha era a que prestava mais atenção, tínhamos necessidade de manter um silêncio, de sermos solidários com uma situação que não entendíamos necessariamente. Intelectualmente, obviamente não tinha capacidade para a entender, mas vendo e observando os adultos à minha volta inevitavelmente percebia-se de alguma maneira que algo ali era importante e que se estava a passar alguma coisa de que não se podia falar.
Creio que por essa altura do Golpe da Sé, em 1959, houve até um artigo escrito pelo seu pai, não assinado mas publicado no jornal “Portugal Democrático”, que tinha como título “Some-te rato”…
Sim, sim. E há uma série de correspondências que gostava de editar, algumas das quais vão ser difíceis pela extensão. Correspondências que falam de outras coisas, de outros momentos em que obviamente se estava a falar mais ou menos em código, porque havia sempre a possibilidade de as cartas serem apreendidas. Falava-se em código das atividades políticas que estavam a decorrer e às quais o meu pai pode estar mais ou menos vinculado, dependendo do momento. Esse golpe que não aconteceu está historiado, agora até há um trabalho em curso com pessoas que estiveram envolvidas, em que se está a fazer uma espécie de memória histórica que pode trazer algum detalhe engraçado.
Excerto de "Some-te Rato", texto publicado no "Portugal Democrático"
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“Tratam-te os que te lambem e legitimam, por Sr. Presidente do Conselho. Chamam-te os que ainda acreditam nas Universidades que degradaste, por Professor Doutor. No tempo em que eras fascista sem vergonha passavas por ser o Chefe, e os leonardos, teus chacais, escutavam a tua Palavra. Depois, quando inventaste a “democracia orgânica”, gostavas que te apelidassem de Chefe… do Governo. Mas, no isolamento e no silêncio e na treva, que é o sítio vago onde estaria a alma que te fugiu aterrada com o cheiro de arganaz podre a que o teu cérebro e o teu coração fedem, tu sabes que não és nada disso. Presidente de quê? De um Conselho de lacaios? Chefe de quê e de quem? Dos assassinos e ladrões impunes que proteges, para que eles te protejam o couro ressequido que nunca terá conhecido para que dignidade e que alegrias serve a carne humana? Professor de quê? Doutor em quê? Professor de desmoralização, de ceticismo, de corrupção, de crueldade, de hipocrisia, de blasfêmia, de infâmia? Doutor em quê? Em técnicas de Censura e de Polícia, que são toda a tua política, toda a tua filosofia, toda a tua religião?
Some-te, rato! Mergulha de uma vez no esgoto de oito séculos de erros que te criaram e engordaram, como excremento que és, venenoso, estéril, impotente. Rato, apenas, rato.”
Não tive consciência [da tentativa de golpe] no momento, claro, porque não se podia falar disso. Depois também houve essa participação do meu pai num grupo reunido à volta do Portugal Democrático, que incluía gente extraordinária, do Sarmento Pimentel — essa figura tutelar e maravilhosa que ali estava, o herói do 5 de outubro, um personagem maravilhoso — a Casais Monteiro, passando por Vítor Ramos, Fernando Lemos e Vítor Cunha Rego. Há toda uma série de pessoas que vão estar ali na linha de combate do “Portugal Democrático”. Depois nos Estados Unidos da América há a consciência sempre profunda na minha casa da situação política, desse estar no mundo em que a política é fundamental. Portanto, tal como acontecia no Brasil, depois nos EUA, os alunos vinham para nossa casa por volta de 1968, quando se discutia o Martin Luther King, a escolha do candidato democrático às eleições seguintes, o Nixon, as manifestações contra o Vietname. Tudo isso era vivido muito intensamente. O meu pai veio cá [a Portugal] no fim de 1968 e voltou em 1969. Depois de voltar aos EUA termina envolvido num comité que propõe a criação de um departamento de estudos afro-americanos. Foi uma das primeiras propostas que aparece nesse sentido nos EUA. Infelizmente naquele momento o reitor de Wisconsin não teve a visão necessária para proceder, mas isso fez com que muitos professores muito bons da universidade de Wisconsin, Madison se fossem embora para a Califórnia. Foi um dos grandes motivos para irmos para a Califórnia.
Antes do período em que viveram nos EUA, aquando da ida para o primeiro exílio no Brasil, que recordações é que tem do planeamento, das conversas e da própria ida?
Tinha 9 anos na altura. O meu pai já tinha ido para o Brasil antes do resto da família ir. A minha mãe tinha ficado sozinha com sete crianças pequenas, das quais eu a mais velha, com nove anos. Depois, há todo um drama que se vai desenrolando ali e que chega até ao momento do embarque. Na altura, uma das formas de controlar as pessoas no salazarismo era as mulheres não poderem viajar sem a “carta de chamada do marido”. Era um problema muito sério, porque essas cartas podiam convenientemente desaparecer em trânsito [sorri]. Aconteceu em alguns casos. No momento de embarcarmos houve ali uma gente que disse “esta senhora não pode embarcar”. Foi necessária a intervenção de uma pessoa que basicamente agarrou [a sua mãe, Mécia de Sena] pelo braço e disse: não, a senhora entra. E passou. Havia um nervosismo enorme.
Há uma coisa que me ficou muito na imaginação: a própria viagem. Como se já não bastasse o nervosismo do aeroporto, o avião levanta voo e há um problema. O avião era daqueles que tinha dois motores de cada lado, duas hélices. Do meu lado, um dos motores parou. O avião teve de dar meia volta. Imaginará o que terá sido o nervosismo da minha mãe porque havia a possibilidade de voltarmos para Portugal. Felizmente não foi o caso. Fomos parar a Dakar, foi a primeira vez que pisei África [ri-se]. Ficou-me na memória toda a viagem, a desorganização que resultou de a ida ser uma coisa tumultuosa, até finalmente encontrarmo-nos com o meu pai em São Paulo. A minha mãe diz que nós dormimos 24 horas e acredito, porque foi uma coisa tão incrível… A única coisa que não me saía da cabeça era: alguém tinha emprestado um toca-discos e dois ou três discos lá para casa. Um dos discos era do coro do exército vermelho da União Soviética. Era um coro maravilhoso, com umas vozes masculinas fabulosas. Eu repetia aquilo, fiquei com aquela música na cabeça, foi a minha banda-sonora para toda a viagem [risos].
Como é que viveram os primeiros anos no Brasil? A adaptação terá sido muito diferente para cada um, em função da idade, das necessidades da cada elemento da família, das expectativas…
Exato. Eu e os meus seis irmãos éramos crianças, depois ainda nasceram mais dois filhos em São Paulo. Foi um momento de grande expectativa. O Brasil deu a oportunidade ao meu pai de finalmente fazer o que ele sempre queria ter feito, que era passar-se para literatura. Com contratempos, dificuldades, coisas que acontecem, mas conseguiu fazer o doutoramento no Brasil. Foi muito importante passar a poder ser não só o poeta, o ensaísta, eventualmente o dramaturgo e algumas coisas mais — as muitas atividades a que sempre se dedicou — mas passar também a ter mais tempo para desenvolver esse outro lado que seria de investigação mais erudita. Havia sempre dificuldades, claro. Era uma família enorme, nunca havia dinheiro que chegasse para a manter [sorri], isso está em todas as cartas de toda a correspondência do meu pai.
Esses constrangimentos obrigavam a que a produção fosse muito grande, não?
Exatamente, essa enorme produção também estava um pouco vinculada às dificuldades permanentes do dia-a-dia. Por um lado essas dificuldades fizeram com que fosse heróico naquela capacidade de trabalho extraordinária que tinha, por outro lado é um desgaste muito grande estar a viver constantemente com essa pressão. Depois o ambiente político do Brasil não ajudou: aconteceu o golpe de Estado a 1 de abril de 1964.
Voltou ao Brasil depois da ida para os EUA? Manteve alguns laços?
Voltei e mantive algumas relações. Uma das coisas a que me tenho dedicado quando posso é ao teatro de marionetas. Há uma versão popular muito interessante no Brasil que é o mamulengo, que é totalmente popular. Isso para mim é muito interessante explorar, porque é um teatro muito vivo, que depende muito da relação entre o mamulengo e o público, que pode durar várias horas. Há toda uma interação ali que é muito viva e que tem grande potencial de comunicação e de facilitar que as pessoas possam exprimir uma série de coisas.
“O meu pai defendeu sempre a liberdade de as pessoas serem como querem”
Com o golpe militar no Brasil, em 1964, voltam a mudar de morada: Estados Unidos da América. Como é que lhe foi explicada esta nova mudança? Aí já era mais velha do que quando saiu de Portugal, já teria outra perceção.
[longa pausa] Houve uma série de coisas que coincidiram nesse momento, mas a questão política era fundamental. O meu pai não só trabalhava a tempo integral na faculdade de Araquara como também noutra de São José do Rio Preto. Nesse momento tudo dependia um pouco das autoridades locais. Em Araquara as coisas ainda se mantiveram com um certo equilíbrio, houve uma série de pessoas que começaram a desaparecer mas de modo próprio [risos]. E fizeram muito bem. Mas em Rio Preto ele perdeu o trabalho. Isso era fundamental, afetava a sobrevivência da família. A longo prazo não se sabia o que iria acontecer e impunha-se a necessidade de procurar outras vias. O meu pai recebeu algumas ofertas diferentes dos Estados Unidos da América e por isso fomos para Madison, Wisconsin. Uma das coisas que lhe ofereciam em Madison e o atraía muito, mais do que noutras ofertas, era a possibilidade de trabalhar em literatura comparada. A visão do meu pai foi sempre comparatista, se se pode definir alguma maneira é essa. Era uma pessoa que rejeitava fronteiras e limites.
Nos Estados Unidos da América ele não viveu algum isolamento? Ouvi relatos de que se queixaria da burguesia do meio académico, da falta de uma comunidade que encontrara anteriormente no Brasil…
Não, pelo contrário. Creio que para todos nós, mas para o meu pai e para minha mãe em especial, tanto pelo lado intelectual como humano foi muito importante ir parar a um departamento que era de espanhol e português. Spanish and portuguese: o nome mais típico dessas formas de organização académica institucionais nos EUA. De repente ter acesso a uma gente estupendíssima que estava em Madison nessa altura — aos espanhóis que estavam todos ali, mas também às pessoas dos departamentos de francês, de alemão — foi muito bom. Depois também entra o fator dos recursos: de repente, o meu pai começa a ter oportunidade de viajar. A Gulbenkian teve um papel fundamental nesse sentido, porque lhe ofereceu a primeira oportunidade para voltar à Europa e fazer uma grande viagem, como ele tinha sempre sonhado fazer, e eventualmente vir mesmo parar a Portugal.
A vida familiar no Brasil e nos Estados Unidos foi muito diferente? Seria seguramente afetada por essas questões práticas, profissionais, remuneratórias.
[longa pausa] Aí começa a ser um pouco difícil avaliar. Quando estávamos no Brasil, estava no equivalente ao liceu. Chego aos Estados Unidos, termino o liceu e entro para a universidade. O meu primeiro ano de universidade foi ainda em Madison, Wisconsin, mas depois vim para cá [Portugal]. Portanto a partir daí já não estou sempre a acompanhar os processos. Os meus pais foram para a Califórnia em 1970, ainda fui lá nesse verão e estive a ajudar a encher caixotes de coisas que iam de Madison, Wisconsin, para a Califórnia. Como é que tudo isto afeta a família? Para já é preciso uma adaptação à vida nos EUA, que é uma coisa muito diferente. Apesar de tudo há certas coincidências entre Portugal e Brasil que deixavam de existir. A aprendizagem da língua, por exemplo, era fundamental — e a partir daí entra-se noutra dinâmica. A pressão para as crianças se adaptarem e começarem a falar inglês é muito forte e nessa altura era muito mais. Hoje em dia com todos os movimentos de multiculturalismo e insistência na diversidade em todos os seus sentidos, não só cultural e étnico mas também, há uma maior aceitação do que são as origens das pessoas. Para o imigrante, que era o que nós éramos, a pressão para as pessoas deixarem de falar a sua própria língua em público era muito forte. Ainda hoje é, mas nessa época muito mais.
Depoimento de 1968, posteriormente incluído no livro "América, América"
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“Gosto de viver na América? É difícil a resposta, porque eu não gosto de viver em parte nenhuma. Cada vez mais a humanidade me parece monstruosa e bestial, e a vida uma monumental chatice com poucas compensações. Vejo os meus filhos serem sugados por uma gigantesca máquina de desumanização, que não hesitará um momento em esmagá-los, se eles, na sua ingénua adaptação, não cumprirem exactamente alguma das regras do jogo. Creio que estou a passar por aquela fase (que é a dos escritores que ultrapassam a maturidade e ainda não atingiram a velhice), em que o mundo é uma absurda e incongruente ridicularia nojenta, até que resignadamente o aceitemos como tal, numa tranquila preparação para a morte.”
Lembro-me de perguntar a vários colegas que tinham os apelidos mais variados de onde eram as suas famílias. Muitos deles não tinham a menor ideia, era uma coisa de que os pais não falavam. Havia uma rutura aí, que obviamente tem consequências na forma como as pessoas vivem e como se identificam. Hoje em dia, tirando pessoas como o Trump e a sua base, em geral as pessoas falam de si com nomes com hífens: sou italo-americano, sou russo-americano, por aí fora. Às vezes já se inclui até mais de duas identidades. É muito interessante essa mudança de as pessoas se passarem a ver a si mesmas, de se sentirem parte de uma comunidade. Quando fomos para lá era muito diferente, as pessoas faziam pressão, na escola era absolutamente essencial começar a falar inglês e não falar outras línguas. É uma forma de racismo. Hoje, com o Trump, há coisas que estão a voltar atrás. Já me aconteceu a mim estar a falar ou português ou espanhol com outra pessoa, como acontece frequentemente, e de repente alguém ao lado dizer “speak english” [falem inglês]. Isso tornou-se outra vez comum, é impressionante.
Como é ser a irmã mais velha de uma família tão numerosa, ter oito irmãos?
[gargalhada] A minha mãe insistia um pouco na ideia de que tinha de ser o exemplo porque era a mais velha. Mas eu nunca quis ser exemplo [risos], pareceu-me sempre que isso era uma forma de coibir. Obviamente ela usava isso para eu a ajudar a controlar os outros oito, o que é perfeitamente compreensível com nove filhos, mas por outro lado havia uma certa rebeldia da minha parte, quase intuitiva. Não queria ser exemplo de nada para ninguém, achava que as pessoas são o que são e têm o direito de ser o que são [risos].
Todos os relatos sobre o seu pai sugerem que cultivava muito a liberdade, a autonomia e a independência. Como é que ele lidava com essa tentativa da sua mãe para que fosse um exemplo? Servia de intermediário entre as duas?
Não sei se a questão se levantava a esse nível. Acho que foi sempre uma pessoa que defendeu a liberdade de as pessoas serem como querem, a liberdade de cada um. [pausa] Aconteceu uma coisa muito interessante quando vim para cá. Fiquei a viver sozinha na casa do Restelo quando vim para o curso de verão da Faculdade de Letras e depois decidi ficar, isto por volta de 1969. Quando decidi ficar há uma pessoa que escreve aos meus pais a dizer “está acontecer isto em sua casa”. Supunha-se que o que acontecia escandalizava a vizinhança. O meu pai escreveu uma carta impecável, impecável. Fez a coisa mais limpa que se pode imaginar: escreveu-me a mim e mandou-me a carta que escreveu à outra pessoa, e escreveu à outra pessoa enviando-lhe também a cópia da carta que me escreveu. Nas cartas deixou absolutamente claro qual era a posição dele: eu tinha mais de 18 anos e tinha plena liberdade de decidir o que é que havia de ser a minha vida e como vivê-la. Foi impecável nisso. Depois fui para a Suécia, ele foi visitar-me duas vezes. Houve sempre uma grande coerência nele nesse sentido, era igual portas adentro, face às opções dos filhos — independentemente de às vezes se zangar, chamar-nos, essas coisas –, ao que era fora de portas. Era coerente.
O chofer de táxi queixava-se da vida.
Ganha 400$00 por semana, o patrão conta
que ele se arranje do a mais com as gorjetas.
Os meus amigos morrem de cancro,
de tédio, de páginas literárias,
vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu
na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele
só queria por enquanto “calçar” uma das
que, artificiais, lhe preparou tão róseas).
As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência
o autocarro, aumento de ordenado, a chegada
do Paracleto, bolsas da sopa do convento.
Mas o chofer do táxi contou-me que
discutira com um asno e lhe dissera:
“…V. que nesse tempo ainda andava a fugir
de colhão para colhão do seu pai
para ver se escapava a ser filho da puta…”
E é isto: andam de colhão para colhão
a ver se escapam — e muitos não escapam.
E os outros não escapam aos que não escaparam.
(Lisboa, 1971)
Sena “gostava de ter regressado”, mas “não ia sacrificar o espírito crítico para poder voltar”
Por essa altura [finais de 1968] acontece a ida a Portugal do seu pai em que é detido pela PIDE quando chega a Marvão. Depois disso ainda ficou um período em Portugal [em liberdade].
Ficou, depois foi operado.
Como é que lidou com esse constrangimento, com essa detenção?
Foi um momento muito conturbado. O meu pai tinha andado a viajar [pela Europa] e sabia que havia a possibilidade de acontecer alguma coisa, a possibilidade de não o deixarem entrar em Portugal ou até de o prenderem. Quando chegou a Marvão, levaram-no de volta para Espanha. Depois houve a intervenção de algumas pessoas, diretamente do Marcello Caetano. Acabou por poder entrar. A minha mãe depois vem para cá, porque ele ia ser operado e o meu pai nunca gostou muito de médicos [risos]. Embora fosse se estivesse doente — e depois foi ficando progressivamente pior. A minha mãe veio para cá [Portugal], eu fiquei lá com os meus irmãos. E isto tudo estava a acontecer no mesmo momento em que os estudantes ocuparam a universidade [norte-americana, em que Isabel de Sena estudava] e em que há 3.000 soldados da reserva nacional a ocupar o campus. Portanto, as tensões estão a acontecer de ambos os lados no mesmo momento, é uma coisa impressionante. Lembro-me de ir para a universidade e as pessoas porem bombas de cheiro nos tubos do aquecimento, tinha de se sair a correr, ficava-se com a roupa toda impregnada daquilo, era um horror [gargalhada]. Era esse o ambiente naquele momento. Houve essa turbulência vinda de sítios diferentes, mas para ele foi muito importante poder voltar. A partir daí passou a vir com mais regularidade.
Jorge de Sena numa espécie de autoretrato, um ano antes de morrer
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“(…) Não subscrevo a divisão do mundo em Bons e Maus, entre Deus e o Diabo (estejam de qual lado estiverem). (…) Moralmente falando, sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi a favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual.
Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido, ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. (…) Mais do que nunca, num mundo onde as vidas humanas se tornaram tão baratas que podem ser gastas por milhões, aos escritores cumpre resistir. (…)”
Ele gostou de vir, apesar da operação e da doença? Estava feliz? Foi a primeira vez que veio desde a ida para o Brasil, em 1959 [em agosto, perto de três meses depois do falhado Golpe da Sé].
A vinda dele foi muito importante.
Houve algum questionamento sobre a relação dele com Portugal, porque era muito crítico, tinha uma relação conturbada com o país. Mas mesmo estando fora dirigiu-se sempre a Portugal.
Exatamente. Essa dimensão do exílio dele teve peso, porque quando se exila, exila-se de um lugar para outro lugar. Fica-se a viver uma espécie de consciência dupla, de se estar fora quando se quer estar dentro — mas também não se quer estar dentro porque o dentro não é aquilo que a gente queria que “este mesmo mundo fosse”, como o meu pai chegou a dizer.
Porque é que ele não regressou de vez depois do 25 de abril? Discute-se muito esses motivos, mas gostava de saber o que pensa, tendo estado tão próxima.
É difícil dizer o porquê de não voltar. Por um lado porque logo ao princípio não houve oportunidade de voltar para a universidade. Ou, se houvesse, não seria aquilo que ele precisava para poder manter uma família grande. Isso era um fator importante: em que termos é que ele voltaria. Por outro lado é preciso considerar que ele já estava a ficar doente e, portanto, conforme o tempo vai passando, vai ficando cada vez pior. Teve dois ataques cardíacos e depois dois meses antes de morrer descobre-se que tinha um cancro no pulmão. No entanto, havia pessoas que estavam aqui [em Portugal] a trabalhar para que ele pudesse voltar e uma delas é precisamente o [então] presidente Ramalho Eanes. Basta ler o que ele escreveu para este número do Colóquio/Letras para ver os esforços que estava a fazer para conseguir criar uma situação que permitisse ao meu pai voltar.
A sua mãe chegou a dizer: “O país na verdade nunca o reconheceu. E se no tempo da ditadura podíamos achar isso natural, já não o achávamos depois do 25 de abril. Ele gostava de ter regressado”.
De certeza que gostava de ter regressado, todos os emigrantes no fundo desejam sempre regressar ao que quer que seja que ainda pode existir do que eles conheceram quando se foram embora. O meu pai tinha a consciência dupla de que já falei. Havia toda uma problemática: para onde é que se volta? Acho que a minha mãe tem toda a razão no que disse. Houve aí, para citar um filósofo americano, “um fracasso da imaginação”.
Jorge Fazenda Lourenço, que esteve muito envolvido na investigação e publicação da obra do seu pai, disse uma vez ao jornal Público: “As pessoas nas universidades portugueses nunca acharam muito bem que o Jorge de Sena viesse. Às vezes pelas razões mais estúpidas! Sempre foi inconveniente numa altura em que as pessoas não reconheciam este tipo de autonomia crítica. Era uma altura em que se pensava pôr nos lugares as pessoas que poderiam de algum modo ser fiéis partidariamente”. Ele queixava-se disso? Havia conversas, frustrações, desabafos sobre esse tema?
Com a minha mãe obviamente que sim. Era uma situação perene da casa a partir do 25 de abril, porque foi uma coisa que vivemos com muita intensidade. A partir do momento em que de repente nos damos conta de que qualquer coisa está a acontecer, ficamos atentos às notícias 24 horas por dia. Basta ver também uma série de poemas que o meu pai escreveu a partir daí, sobretudo os poemas numa linguagem mais ou menos popular. “Liberdade, liberdade, tem cuidado que te matam” e coisas assim. Tinha uma consciência muito aguda do que estava a acontecer, que tem de ser vista também em relação a esse percurso de que temos falado, em relação a essa luta pela democracia e em relação a como se define essa democracia, para quem é, por quem é feita. Agora, é absolutamente verdade isso, ele mesmo disse — e outras pessoas têm dito — que era uma pessoa incómoda. Foi sempre uma pessoa incómoda. Acho que o que se aprecia nele hoje em dia é que ele foi sempre uma pessoa incómoda.
Cito aliás uma passagem dele: “Se desde 1965 não tenho tido qualquer participação na política portuguesa, é porque a tal não me dá direito o passaporte brasileiro que é meu documento de identidade. Mas o português que sempre fui hei-de continuar a sê-lo, quer queiram quer não queiram”.
[pausa] É uma coisa meio estranha. Ele tem um poema sobre as nacionalidades que é muito interessante. Ainda há bocado falávamos dos EUA e da dinâmica de inclusão e exclusão e aqui temos um caso semelhante, aquilo de que ele fala no poema “Em Creta, com o minotauro”: pessoas que são obrigadas por circunstâncias da sua vida a ir mudando de nacionalidade e de lugar. A ir. [pausa] Ele queria voltar, sem dúvida. Era uma pessoa incómoda e não ia sacrificar esse espírito crítico que sempre teve para poder voltar. Isso nunca poderia acontecer.
Excerto do poema "Em Creta com o minotauro"
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“Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
(…)”
“Panteão? O meu pai e a minha mãe não podem ser separados”
Comemora-se este ano o centenário do nascimento do seu pai, mas também de Sophia de Mello Breyner, que está no Panteão. Foram os exílios e a perspetiva crítica que sempre manifestou veementemente que impediram um reconhecimento similar do país? E uma ida para o Panteão não se coloca, já que foi uma das grandes figuras da história da cultura e da arte portuguesas?
É preciso ver para já o que é o Panteão, o que é que significa o Panteão. Há muitas pessoas que sobrevivem independentemente das suas cinzas estarem aqui ou ali. O Zeca Afonso preferiu uma campa rasa, acho que tem todo o direito a isso e a família tem todo o direito a apoiar esse desejo. O Saramago escolheu ser cremado e as cinzas dele espalhadas, foi o que escolheu. Porque é que o Saramago não havia de estar no Panteão e o meu pai tem de estar? São duas figuras muito importantes do nosso século, independentemente do que qualquer pessoa pense de qualquer um deles, independentemente das apreciações que quiserem fazer porque não me interessa absolutamente nada essas comparações.
Há uma coisa importante: a relação do meu pai com a minha mãe. O meu pai existiu como Jorge de Sena casado com Mécia de Sena, com quem tem uma relação única. Foram duas pessoas que chegaram a tal capacidade de entrosamento, conhecimento, intimidade, colaboração e solidariedade, de todos esses termos que não dão conta do que foi essa relação entre eles. Duas pessoas que fizeram nove filhos, que andaram juntos de um lado para o outro porque tinham uma série de ideais, que são nesse sentido de uma grande pureza ética ou moral. Deram sempre o corpo ao manifesto — os dois. Portanto, para mim, acho que não podem ser separados. Para o meu pai ir ao Panteão, ficava só ele e ficava a minha mãe de fora. Sou contra. A minha mãe disse sempre que queria ficar junto dele e acho que tem o direito de ficar junto dele, merece ficar, ele merece que ela fique. Foram grandes companheiros, ela dedicou o resto da vida dela a publicar a obra dela, vivia e viveu para isso. Não vou negar isso, dizer: “agora a senhora vai para outro lugar e o meu pai vai para o Panteão”. Desculpe mas não. Era a vontade dela.
Alguma vez falaram da possibilidade?
A certa altura disse-me que se sacrificava. Eu disse-lhe: ó ma’, quando foi o discurso da Guarda [a 10 de junho de 1977, na primeira comemoração do Dia de Camões das comunidades portuguesas após o 25 de abril], a mãe fez com que se reorganizassem as mesas porque tinham separado os senhores importantes, os escritores e os convidados, das suas esposas que iam sentar-se noutra mesa. Ela fez com que mudassem tudo para as esposas poderem estar ao lado dos seus maridos. Uma mulher que faz isso não merece ficar ao lado do seu marido? Claro que sim. O que pode vir a acontecer pode vir a acontecer, mas acho bonito o canto dos Prazeres [Cemitério dos Prazeres] onde ele está.
” (…) Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus ‘Lusíadas’ – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião.”
Discurso da Guarda, 1977
Há tempos, numa entrevista, o prof. Jorge Fazenda Lourenço disse que atualmente a edição da obra estava a seu cargo e que tinha ideias e critérios divergentes, sobretudo no que tocava à publicação da correspondência, grande parte dela inédita. Disse também que julgava que a publicação da obra teria sido entregue ao grupo Porto Editora. É verdade?
Não, não é verdade. Pode ter sido talvez uma má interpretação da pessoa que o entrevistou, não sei ao certo, mas não é verdade que esteja tudo entregue à Porto Editora. Nem sequer sei se a Porto Editora teria interesse nisso. É certo que há uma certa diversidade de critérios. E há coisas que me preocupam, como magoar as pessoas que ainda estão vivas.
Refere-se à publicação da correspondência?
À correspondência. É preciso dizer que há muita correspondência que já está publicada. Custa-me crer que haja qualquer escritor em Portugal que tenha tanta correspondência publicada como o meu pai. Há algumas cartas que são muito interessantes e que quero editar — apresentei algumas propostas nesse sentido. A minha intenção é continuar a editar a obra do meu pai e fazer o melhor que possa com o maior rigor possível.
O que referia sobre “magoar as pessoas que ainda estão vivas” poderá ter alguma coisa a ver com o que por exemplo Hélder Macedo certa vez disse, sobre ter recebido cartas do seu pai em que ele se mostrava muito crítico relativamente a certas pessoas com quem mais tarde fazia as pazes e que depois já elogiava?
Exatamente. Esse é um dos problemas. Ponho-lhe um exemplo concreto: o meu pai durante muitos anos escrevia horrores sobre o Gaspar Simões. Depois, quando veio cá, fez as pazes com ele e a partir daí passou a falar nele noutros termos. Esse é um exemplo. Se olharmos por exemplo para as três cartas inéditas publicadas neste número 200 da Colóquio/Letras, dirigidas a Gastão Cruz, acho que são extraordinárias. Começam por ser cartas em que ele está a explicar a um jovem poeta uma série de coisas e acaba por ser de uma enorme generosidade — outro aspeto da personalidade dele nem sempre posto em relevo. Fala da enorme alegria que lhe causou falar com este jovem e acaba a convidá-lo para ir para os EUA trabalhar como leitor lá. Escreve uma carta enorme a explicar-lhe todas as condições que tinha para ir lá trabalhar. A questão com as cartas é que ao contrário do que acontece quando uma pessoa escreve um poema, um romance, uma obra que é feita para ser publicada, as cartas escritas pertencem ao foro íntimo em primeira instância. Acho que é preciso ter em conta esse facto. Antes de passar um certo tempo, tem de haver um mínimo de cuidado e respeito pelas pessoas vivas.
Quando a minha mãe publicou a correspondência do meu pai com a Sophia, a Sophia cortou algumas coisas referentes aos filhos dela, à família dela. Nunca ninguém levantou nenhum problema porque a Sophia o fez, ninguém lhe foi perguntar que critério tinha aplicado para o fazer.
Carta a Sophia de Mello Breyner, em 1966, pouco depois da chegada ao Brasil
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” (…) Nós estamos bem, e a adaptação necessariamente complexa, até pela dificuldade da língua para a maior parte de uma larga família que a não conhecia, processou-se e continua a processar-se, melhor do que poderia esperar-se de tanta gente, num meio inteiramente novo. A nossa vida não tem ainda o desafogo que poderia ter, com o nível de salário catedrático, que tenho, porque os encargos portugueses e brasileiros, juntamente com as despesas de instalação, ainda pesam bastante. Mas tenho esperança de que tudo melhore em breve.”
Quando dizia que a generosidade do seu pai “nem sempre” é destacada, está a falar da “lenda negra” que se criou sobre a personalidade dele [irascível, narcisista]?
Há uma lenda negra, claramente. Lembro-me de há muitos anos ter aparecido uma caricatura do meu pai muito cómica no jornal com um duplo do meu pai e dizia assim: “I love Jorge” [risos]. Delicioso. Havia um lado cómico, por outro lado havia uma crítica implícita ao senhor incómodo que acha sempre que está tudo mal, que é narcisista, que acha sempre que ele é que é o maior de todos e que os outros são todos inferiores. Mas hoje em dia vejo que há uma atitude muito diferente em relação a ele, muito mais compreensiva. Inclusive esse lado incómodo começa a ser apreciado.
Há alguma coisa que sinta que tenha ficado por dizer nesta conversa, algum episódio com ele que gostasse de recordar?
[longa pausa] O meu pai gostava muito de cinema e uma das coisas que nos divertia imenso a nós, aos filhos, era que quando havia cartoons, desenhos animados, ele ria-se como qualquer garoto [gargalhada]. Uma vez, aí em 1967 ou 1968, fui ao cinema com uns amigos quando se supunha que estava na escola. Não estava, “cortei” a classe à tarde. Apaga-se as luzes e havia uns desenhos animados antes dos filmes e dos ‘trailers’: o coiote e o Road Runner [Bip Bip]. Aquilo é horrível, é uma coisa tão sádica, é um pássaro que está sempre a ser perseguido pelo coiote mas o coiote é que apanha sempre. Foi esse o desenho animado que passou nessa tarde no cinema. Entretanto ouço uma grande gargalhada lá em baixo e digo: olha, está aqui o meu pai [risos]. Isto mostra um lado bem-disposto do meu pai, nem sempre posto em relevo. Tinha capacidade para rir como qualquer de nós com uma brincadeira, fosse qual fosse a circunstância. E isso era contagiante.
Muito obrigado.
Eu é que agradeço.