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Já há vida para além do défice?

Qual é o número mágico para o défice? Não importa apenas cumprir as metas, importa muito a forma como se faz e com que objectivos. Um ensaio de Ricardo Santos.

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Em Portugal, temos passado praticamente os últimos 20 anos a discutir se há ou não vida além do défice orçamental. Anos nos quais decorreu inclusive um programa de ajustamento financeiro, com a troika a marcar a agenda do debate público e a aumentar a fixação nacional com as metas do défice – de tal como que em cada português existe um economista especialista em finanças públicas. Mas essa fixação ainda existe? Ouvindo o discurso político, parece que não e que agora, finalmente, vamos tendo alguma vida para além do défice. Mas será mesmo assim? Sim e não. O ponto, que neste ensaio se desenvolve, é que a saúde das finanças públicas permanece limitada pela filha mais velha do défice: a dívida pública.

1. Quantos défices há? Muitos

A teoria é simples: o saldo orçamental deve ser positivo em expansões e negativo em recessões – ou, pelo menos, deve piorar em recessões e melhorar em expansões. Foi precisamente isto que Keynes recomendou. E, num momento em que o keynesianismo é tantas vezes mal utilizado como arma de arremesso político, vale a pena a explicitação: ser keynesiano não significa, ao contrário do que muitas vezes dizem políticos e comentadores, simplesmente aumentar o défice. Significa antes, simplisticamente, gastar quando é preciso (quando a economia está em recessão ou cresce abaixo do potencial) e poupar quando se pode (quando a economia cresce acima do potencial).

Ora gastar significa ter um saldo negativo (défices) e poupar significa ter um saldo positivo (superavit). Mas saldos orçamentais, como os chapéus, há muitos. E, especialmente desde 2010, temos sido bombardeados com muitos nomes – por exemplo, nominal (ou headline), primário, estrutural, e primário estrutural. Confuso?

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Ser keynesiano significa gastar quando é preciso (quando a economia está em recessão ou cresce abaixo do potencial) e poupar quando se pode (quando a economia cresce acima do potencial).

Simplifique-se, um a um. O saldo “nominal” é a diferença entre o que o Estado gasta e recebe. O saldo primário exclui os juros pagos e recebidos. O saldo estrutural exclui o efeito do ciclo económico. Ou seja, como o Estado tem mais receita e menos despesa quando a economia cresce, e menos receita e mais despesa quando ela decresce ou desacelera, este seria o saldo que o Estado registaria “se a economia crescesse em linha com o seu potencial”. Resumindo: este valor é por isso um pouco mais esotérico e não é observável simplesmente com base nos gastos e receitas do Estado e crescimento registado na altura.

Estas são as principais variáveis tidas em conta nas regras europeias. Aquelas para as quais se deve olhar quando os recados vêm de Bruxelas. Mas não são as únicas, já que há ainda um objectivo comum de redução da dívida para 60% do PIB em todos os países num prazo máximo de 20 anos. Digamos que, para o caso português, a menos que se mude de hábitos ou se encontre petróleo, essa meta é muito difícil de cumprir.

Antes da última alteração das regras em 2012, aquando da aprovação do tratado orçamental, as regras europeias eram criticadas por serem demasiado simples – a prioridade era ter o défice nominal abaixo dos famosos 3% do PIB. Entretanto, passou-se do oito ao oitenta. Agora, o principal problema é a sua excessiva complexidade: ao objectivo de 3% do défice nominal acresce o objectivo de médio e longo prazo para o saldo estrutural (0.25% do PIB no caso português), o objectivo de um ajustamento mínimo anual (de 0.5% do PIB para Portugal) e finalmente uma redução da dívida em 1/20 por ano da diferença entre o stock actual e os 60% do PIB.

2. Ok, mas deve a política económica ter por base a meta do défice?

Há um problema genérico que é apontado sempre a objectivos de política económica que tenham por base um instrumento, como é o caso do défice: esse objectivo torna-se ele próprio manipulável (é a chamada “lei de Godhart”). Portugal representa, infelizmente, um dos melhores exemplos disso mesmo. Veja-se toda a quantidade de medidas conjunturais e irrepetíveis (one-off) que foram usadas ao longo dos últimos 20 anos, ou os vários “truques” contabilísticos para retirar empresas públicas e hospitais do perímetro orçamental, ou ainda a utilização abusiva das parcerias público-privadas (PPP). Ou seja, no final de contas, é possível atingir as metas do défice sem que isso represente, efectivamente, uma melhoria estrutural das contas públicas, manipulando do escrutínio do cumprimento das regras europeias. Adicionalmente, há ainda dois problemas apontados às regras europeias. Primeiro, são demasiado complexas e contêm inúmeras excepções e formas de calcular os saldos. Basta consultar os manuais do procedimento por défice excessivo para constar que têm centenas de páginas). Segundo, o principal foco do Tratado Orçamental é o défice estrutural, algo que, como acima está explicado, não é observável e permanece sujeito a revisões.

É possível atingir as metas do défice sem que isso represente, efectivamente, uma melhoria estrutural das contas públicas, manipulando do escrutínio do cumprimento das regras europeias.

Claro que a fixação destas regras de escrutínio é um processo tecnicamente complexo e, inevitavelmente, político. E, como tal, são constantemente alvo de debate. Por exemplo, várias propostas recentes, entre as quais as feitas pelo governo francês e por um grupo de economistas (franceses e alemães), sugerem uma nova revisão das regras europeias com vista a sua simplificação. Estes últimos fazem inclusive uma sugestão que, à partida, surge como bastante mais razoável: tendo em conta que a prioridade nesta fase é a redução da dívida, o principal objectivo deve centrar-se precisamente numa meta de redução de dívida. Naturalmente, essa meta de redução da dívida seria complementada com um objectivo para a despesa pública – e esse objectivo variaria, tal como até agora, de país para país, de acordo com a sua posição cíclica e orçamental. Problema: esta proposta aparentemente simples não explica como é que esse objectivo seria calculado, entregando essa tarefa para um “conselho de finanças públicas europeu”, que não existe e que teria de ser criado.

3. Portugal: faz sentido falar de défice ideal? Os cenários possíveis

Depois de praticamente duas décadas como um dos piores alunos (ou, em certa medida, o segundo pior aluno, a seguir á Grécia) da Zona Euro, com défices consistentemente acima dos 3% do PIB e sempre dos mais altos da moeda única, Portugal apresenta-se agora como um “bom aluno” e um dos mais bem-comportados – isto, claro, julgando pelo comportamento recente do défice nominal que desceu para perto de 1% do PIB e do saldo primário que está agora já acima dos 2% do produto.

Mas, quanto ao saldo estrutural, não só Portugal é dos que tem um maior défice, ainda a rondar os 2% do PIB, como está bastante afastado do objectivo de médio prazo do Tratado Orçamental (superavit de 0.25%), que é mais exigente do que para os restantes países, em virtude do elevado nível de dívida pública. Com um rácio de dívida pública ainda pouco abaixo dos 130% do PIB (126%), este constitui agora o maior desafio de política económica: com este montante de dívida, Portugal tem muito menos margem de manobra para acomodar futuros choques e, além disso, paga já uma elevada fatura anual com os juros da dívida (quase 4% do PIB).

Entra-se, assim, na pergunta-chave da política financeira: tendo em conta os constrangimentos financeiros do país, o seu passado recente, a sua elevada dívida pública e os objectivos exigentes a cumprir, haverá algum valor de défice que se possa qualificar de ideal para Portugal para 2018?

As respostas possíveis, como facilmente se imagina, são muitas e seguem prioridades distintas. Tanto quanto é possível sintetizar, no debate público têm surgido três correntes principais.

Primeiro, os que defendem que, considerando que Portugal foi além dos objectivos definidos no pacto de estabilidade e reduziu o défice nominal mais do que o acordado com a Comissão Europeia, o país deveria aproveitar esta folga para estimular (mais) o crescimento económico. Segundo, os que argumentam que a estratégia actual está correcta e que basta ir reduzindo o défice à medida que a economia cresce – e, por isso, não é necessário reforçar o ajustamento estrutural. Terceiro, os que defendem que o Governo deveria aproveitar o “bónus” do crescimento acima do esperado e reduzir o défice orçamental (ainda) mais rapidamente do que o previsto e, no limite, ser mais ambicioso atingindo um saldo equilibrado já em 2018.

Ora, do ponto de vista da análise, a primeira corrente pode ser facilmente descartada: na prática, não é mais do que repetir a fórmula do passado. Tal como sobressai nos gráficos acima, Portugal passou as últimas décadas sempre com défices acima dos 3% do PIB – e nem quando o crescimento económico surpreendeu positivamente superou essa marca simbólica. Por isso, repetir as estratégias do passado parece ser uma ideia menos boa. De resto, do ponto de vista dos protagonistas desta corrente, muitos vão mesmo ao ponto de defender o não cumprimento das regras europeias, algo que colide com a posição política do governo.

Tendo em conta os constrangimentos financeiros do país, o seu passado recente, a sua elevada dívida pública e os objectivos exigentes a cumprir, haverá algum valor de défice que se possa qualificar de ideal para Portugal para 2018?

Em relação às outras duas correntes, estas estão relativamente próximas uma da outra, apesar de terem diferentes filosofias subjacentes. Qual o racional de quem argumenta a favor de uma mais acentuada e acelerada redução do défice? Geralmente, explica-se através de dois argumentos principais: i) que se deve aproveitar a actual conjuntura para reduzir o mais possível a dívida e assim ter mais margem quando o ciclo económico inverter e vier a próxima recessão; ii) que quanto mais rápido se reduzir a dívida, melhor a reputação que Portugal terá junto dos mercados e, consequentemente, menores os juros cobrados quer ao Estado quer aos bancos e às empresas.

Em bom rigor, tendo em conta que o défice andará atualmente perto de 1% do PIB, estamos a falar também de uma diferença, destas correntes, que andará à volta de 1% do PIB (a mais ou a menos) e, embora seja algo material, é uma divergência bem menor do que as que existiram no passado recente. No entanto, esta diferença de 1% do PIB tem impacto nas perspectivas económicas de curto prazo. Para concretizar o que está realmente em causa nesta discussão, a tabela abaixo detalha três cenários possíveis: (1) manter a estratégia de ajustamentos do saldo estrutural próximos de 0% do PIB (0.2% para ser mais exacto), seguida desde 2015; (2) atingir já um saldo equilibrado, o que pressupõe uma melhoria substancial do saldo estrutural (o tal que não depende do ciclo económico) e manter depois uma variação de 0.5% por ano; (3) passar a cumprir, a partir de 2019 e como garantido pelo Governo, o objectivo de uma melhoria do saldo estrutural em 0.5% do PIB por ano.

O que diz então esta simulação? Coloca a questão de outra forma: vale a pena apontar já para um défice zero, ou começar a cumprir as recomendações da Comissão, ou então mantém-se o rumo de ajustamentos estruturais quase inexistentes? Não existe uma resposta única e correcta. Mas existem respostas erradas.

À partida, existem vantagens em apontar para um défice zero já neste ano de 2018 (cenário 2). Neste caso, o objectivo de médio e longo prazo é atingido em 2020, pelo que, apesar do menor crescimento neste ano, isso é compensado pelo maior crescimento assim que a restrição orçamental desaparecer. Por outro lado, caso Portugal mantenha um ajustamento de 0.2 pontos percentuais por ano, este objectivo só será atingido em 2027. Ou seja, mesmo que existam benefícios no curto prazo (este e próximos dois anos), o crescimento não recuperará tão rapidamente e a dívida descerá muito mais lentamente. Finalmente, caso o ajustamento seja mais suave e em linha com o recomendado pela Comissão Europeia, o objectivo será atingido em 2021. Isto é, apenas um ano depois do que seria o resultado de uma estratégia mais conservadora.

Vale a pena apontar já para um défice zero, ou começar a cumprir as recomendações da Comissão, ou então mantém-se o rumo de ajustamentos estruturais quase inexistentes?

Traduzindo: o grande teste para ver qual destes cenários é mais adequado aos interesses de Portugal, está na avaliação do seu impacto no crescimento e na dívida. Ora, enquanto no segundo cenário a divida desce para 109% do PIB em 2021, no terceiro cenário, a redução estima-se inferior em 3 pontos percentuais (ficaria em 112% do PIB), sem quaisquer ganhos de crescimento (0.3 pp em 4 anos). No entanto, ainda que a melhor estratégia possa ser a rápida redução do saldo estrutural enquanto a economia cresce, convém ter em conta que, ao contrário do passado de quando o défice rondava os 10% do PIB, os ganhos reputacionais de evidenciar maior prudência vão sendo cada vez menores.

O desafio é este e não há como dele fugir. Mais cedo ou mais tarde, é certo que Portugal entrará novamente em recessão e que, mesmo atingindo agora um défice zero, nessa altura o défice registado voltaria a subir. Mas, do ponto de vista estrutural, importa mais garantir que a economia esteja em melhor forma como um todo (não só o Estado) do que evitar mais alguns pontos percentuais de défice. Importa dizer que, apesar da “devolução de rendimentos” e da reversão acelerada de muitas das medidas tomadas durante o programa de ajustamento, muito mudou desde 2010 na gestão orçamental e dificilmente uma nova recessão será tão forte como a de então. Ou seja, e resumindo: défice zero já este ano ajuda já que permite que Portugal atinja mais rapidamente o objetivo de médio prazo do saldo estrutural e possa finalmente deixar de ter uma política orçamental restritiva. Mas, ainda assim, o realmente importante é ir reduzindo a dívida pública mais rapidamente que os outros países da Zona Euro, para evitar que se caia novamente nos erros do passado e agora sim, sem prejudicar o crescimento económico.

4. O que concluir? Duas ideias-chave e uma questão

Ideia um. Se por um lado existem diversas formas de calcular o défice, Portugal só recentemente deixou de constar entre os piores alunos em todas as métricas em vigor. Claro que as diversas formas de calcular o défice têm por detrás regras europeias complexas e demasiadas vezes permeáveis a truques contabilísticos – e que, em Portugal, são um recurso frequente. É verdade que essas regras europeias estão num processo que poderá levar à sua revisão, mas o fundamental é reconhecer-se que, independentemente do critério escolhido, a prioridade nacional deve ser sempre a mesma: a redução da dívida pública.

Mais cedo ou mais tarde, é certo que Portugal entrará novamente em recessão e que, mesmo atingindo agora um défice zero, nessa altura o défice registado voltaria a subir.

Ideia dois. Actualmente, faz sentido ser-se algo mais ambicioso na redução do défice. Isto porque, na prática, quanto mais tempo se continuar sujeito às necessidades de restrição orçamental que advêm das regras europeias menos se poderá promover o crescimento da economia. Assim que essa restrição orçamental terminar, importará então concluir a consolidação orçamental e deixar a dívida ir diminuindo à boleia do crescimento.

Questão. Neste ensaio tentou-se chegar a uma espécie de número mágico para o défice. Mas na verdade, não importa apenas cumprir as metas do défice, importa também muito a forma como se faz e com que objectivos. Será que as escolhas que foram feitas desde 2010 para atingir este nível do défice foram as mais correctas? E quais as escolhas que devem ser feitas no futuro? Nestas questões residem os pontos politicamente determinantes. Por exemplo, valeram a pena dos cortes horizontais do passado? E, agora, valerá a pena aumentar impostos indirectos, reduzir o investimento e congelar a despesa horizontalmente para compensar aumentos salariais da função publica, aumentos de pensões e descongelamento de carreiras? É sobretudo para essa discussão que faz sentido orientar o debate público.

Ricardo Santos é economista, tendo trabalhado como técnico da UTAO. Esteve num banco de investimento em Londres, no Mecanismo Europeu de Estabilidade e hoje integra uma boutique de research macroeconómico e financeiro.

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