Entre governar um país e cuidar da filha de três meses durante um voo de 17 horas, qual será a tarefa mais difícil? Para Jacinda Ardern, “é praticamente a mesma coisa”. A resposta, em tom de brincadeira, foi dada à NBC a 24 de setembro de 2018, dia em que a primeira-ministra da Nova Zelândia fez, mais uma vez, história. Naquele dia, entrou na reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, com a sua filha, Neve, que nascera apenas três meses antes e que ainda amamentava. Foi a primeira mulher a fazê-lo. No entanto, a resposta parece ter mudado ao longo dos últimos seis anos: Jacinda Ardern está cansada e disse, esta quarta-feira, que “chegou o momento” de abandonar o cargo.
New Zealand’s ‘First Baby,’ 3-month-old Neve Te Aroha, makes her United Nations debut https://t.co/0oDgWFWQJ3 #UNGA pic.twitter.com/pUp5de8ReM
— Reuters World (@ReutersWorld) September 25, 2018
Durante a reunião, a bebé esteve sempre ao colo do pai, Clarke Gayford, o homem com quem Jacinda Ardern pretende agora casar — o anúncio dos planos para o futuro foi, aliás, feito logo depois de ter anunciado a demissão do cargo de primeira-ministra, esta quarta-feira à noite. Nessa estreia de Neve numa Assembleia-Geral da ONU, há cinco anos, foi até preparado um cartão especial para a criança, que o pai partilhou nas redes sociais. “Gostava de ter apanhado o olhar assustado da delegação japonesa dentro da ONU ontem, que entrou numa sala de reuniões a meio de uma troca de fralda“, escreveu Clarke Gayford.
Because everyone on twitter's been asking to see Neve's UN id, staff here whipped one up.
I wish I could have captured the startled look on a Japanese delegation inside UN yesterday who walked into a meeting room in the middle of a nappy change.
Great yarn for her 21st. pic.twitter.com/838BI96VYX— Clarke Gayford (@NZClarke) September 24, 2018
Seis semanas depois do nascimento de Neve, Jacinda Ardern regressou ao trabalho. Tinha assumido o cargo de primeira-ministra da Nova Zelândia cerca de um ano antes, em 2017, e estava num período em que os elogios eram muitos, sobretudo pela sua postura em relação à maternidade. Aliás, fez mais uma vez história como a mulher mais nova — aos 37 anos — a chegar à liderança do país e a liderar um partido.
Ainda antes de estar sequer grávida, e durante a sua campanha política, “a esperança política do Partido Trabalhista”, como lhe chamou o jornal The Guardian em 2017, somou logo pontos, precisamente, pelas suas respostas sobre a maternidade. Num programa de rádio da Nova Zelândia, Jacinda Ardern foi questionada sobre a sua vontade de ser mãe durante o mandato. “Para outras mulheres, é totalmente inaceitável que em 2017 seja dito a uma mulher que tem de responder a este tipo de questões no local de trabalho.” A Comissão dos Direitos Humanos apoiou estas palavras e Jacinda Ardern conseguiu muitos votos do eleitorado mais jovem.
A sua popularidade cresceu assim que assumiu a liderança do Partido Trabalhista, apenas sete meses antes da sua eleição. E o partido que a escolheu por unanimidade só ganhou com isso. Em apenas um mês, subiu 19 pontos percentuais nas sondagens, colocando assim os trabalhistas na corrida à vitória. “Não há dúvida de que Jacinda Ardern é a melhor coisa que aconteceu ao partido”, escrevi o Guardian no mesmo artigo.
O lenço preto e o discurso contra a discriminação depois do ataque de Christchurch
Cerca de um ano depois de viajar até Nova Iorque com a filha de apenas três meses, começaram os momentos mais negros que marcaram o percurso de Jacinda Ardern como primeira-ministra. O ataque em Christchurch, onde morreram 51 pessoas — a maioria com origem na Índia, Paquistão, Egito, Jordânia e Somália. Mas mesmo nesse momento os neozelandeses mantiveram-se fiéis à sua líder, pela forma como Ardern geriu um trauma nacional que rapidamente alcançou uma dimensão global.
Assim que a tragédia ganhou proporções mundiais, Jacinda Ardern fez questão de ir ao local. Esteve com as famílias das vítimas, esteve com as pessoas que viram o homem que disparou indiscriminadamente dentro da mesquita e que sobreviveram ao ataque e não teve dúvidas quando falou com os jornalistas: “É evidente que isto só pode ser classificado como um ato terrorista.” Usou estas palavras ainda antes de as autoridades avançarem se estariam perante um ataque terrorista, ou não, e isso valeu-lhe o carimbo de pessoa consciente da discriminação que aquelas vítimas sofreram.
E há ainda outros pontos: nesse dia, a primeira-ministra da Nova Zelândia não entrou naquela mesquita com a cabeça destapada. Colocou um lenço preto sobre o cabelo, nunca divulgou o nome do homem que disparou, preferindo destacar “os nomes daqueles que partiram, em vez do nome do homem que os levou” e, dias depois, no parlamento, abriu o seu discurso com a saudação islâmica “As-Salaam Alaikum.” Horas depois do ataque, anunciou que a lei que permitia a compra de armas naquele país iria ser alterada. “A Nova Zelândia é a casa deles. Eles somos nós”, escreveu no Twitter, a propósito da discriminação.
What has happened in Christchurch is an extraordinary act of unprecedented violence. It has no place in New Zealand. Many of those affected will be members of our migrant communities – New Zealand is their home – they are us.
— Jacinda Ardern (@jacindaardern) March 15, 2019
Sushil Aaron, do New York Times, descreveu este momento como “um ponto de viragem para Ardern e para a Nova Zelândia”, num texto de opinião em que classificou Jacinda Ardern como “exemplar” na resposta ao massacre na mesquita. E Sana Saeed, da Al Jazeera, fez uma lista dos políticos que se deslocaram aos locais alvos de ataques terroristas e não conseguiu encontrar nenhum nome. “Não consigo lembrar-me de Trudeau mostrar esta profunda humanidade em relação às vítimas do massacre na mesquita de Quebec. Obama nem visitou o templo de Oak Creek. A liderança em momentos de tragédia é importante. E foi isso que Ardern mostrou.”
Um vulcão e uma pandemia pelo meio
Quando a memória sobre o ataque terrorista parecia desvanecer, a Nova Zelândia foi palco de uma nova tragédia. Desta vez, em dezembro do mesmo ano e fruto da força da natureza, o vulcão de White Island entrou em erupção e morreram 17 pessoas — quase todos turistas australianos e norte-americanos. Mais uma vez, Jacinda Ardern esteve com as autoridades, falou ao país e acompanhou sempre todos os detalhes das operações.
Apesar da presença constante nos momentos mais trágicos para a comunidade neozelandesa, por essa altura, no final de 2019, o cenário político já começava a complicar-se para Ardern, sobretudo porque já tinham passado mais de dois anos desde a sua eleição e muitas promessas continuavam por cumprir. Uma delas era, aliás, a sua principal bandeira: diminuir a pobreza infantil. Na Nova Zelândia, uma em cada oito crianças vivia em privação material, descreveu a BBC.
No entanto, a vitória eleitoral de 2020, considerada esmagadora, funcionou como uma espécie de balão de oxigénio para os meses que se aproximavam: a pandemia. Jacinda Ardern não perdeu tempo no combate à Covid-19 e a Nova Zelândia adotou rapidamente uma política de tolerância zero. Foi dos primeiros países a tornar obrigatório o isolamento para quem chegava aos aeroportos e foi dos primeiros a fechar as fronteiras aéreas. Só em maio de 2022 é que as fronteiras foram reabertas.
“Uma coisa é liderar um país em tempos de paz, outra é guiá-lo através de uma crise”
Agora, aos 42 anos, Jacinda Ardern decidiu que estava na hora de sair, por não ter força para continuar. E vai deixar o cargo, no limite, dia 7 de fevereiro. “Chegou o momento”, disse esta quarta-feira. Todos os momentos — desde o ataque na mesquita à gestão da pandemia, passando pela erupção do vulcão — foram mencionados pela (ainda) primeira-ministra da Nova Zelândia. “Esses acontecimentos têm sido desgastantes. Nunca houve um momento em que sentisse como se estivéssemos apenas a governar“, explicou.
Uma coisa é liderar um país em tempos de paz, outra é guiá-lo através de uma crise”
Jacinda Ardern ainda deu uma oportunidade, durante as suas férias, para encontrar a força necessária para continuar no cargo, mas isso não aconteceu. “Tinha a esperança de encontrar o que precisava para continuar durante esse período, mas infelizmente não encontrei. Estaria a prejudicar a Nova Zelândia se continuasse“. E vários jornais internacionais, como a CNN, associam esta saída a um período em que Jacinda Ardern passa por um burnout.
Ainda assim, mesmo com a sua popularidade a descer nas sondagens nos últimos meses e criticada por não ter conseguido implementar medidas capazes de combater a pobreza infantil, a primeira-ministra da Nova Zelândia abandona o cargo no meio de elogios. Como escreveu a jornalista do Guardian Gaby Hinsliff, “Jacinda Ardern soube quando desistir”.