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Na passada quarta-feira, 21 de janeiro, assinalaram-se os 71 anos da morte de George Orwell. A data é importante por uma outra razão: marcou a entrada da obra do escritor britânico no domínio público. O levantamento das restrições que impediam a publicação dos livros de Orwell sem autorização prévia levou a que várias editoras portuguesas preparassem novas edições dos seus romances mais conhecidos, A Quinta dos Animais e Mil Novecentos e Oitenta Quatro, justificando-as com a sua constante atualidade, que faz com que, de tempos a tempos, o nome do também jornalista reapareça no topo das tabelas dos livros mais vendidos, como aconteceu recentemente em Portugal e noutros países.
Se por um lado isso é indicador da pertinência assombrosa que A Quinta dos Animais e Mil Novecentos e Oitenta Quatro mantêm várias décadas após a sua publicação, pela denúncia do totalitarismo e do extremismo que fazem, por outro significa um apagamento da restante obra de Orwell, um autor com muitas facetas e muito mais complexo e diversificado do que muitas vezes se julga.
Jacinta Maria Matos, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e especialista em George Orwell, tem tentado remar contra esta maré e procurado revelar aos leitores os “outros” Orwell, sobretudo o da não-ficção, autor de ensaios e documentários, que a académica, autora de uma biografia do escritor e responsável pela organização e tradução de uma coletânea de ensaios, publicada este mês de janeiro pelas Edições 70, considera mais interessante do que qualquer outro. Foi sobre esta faceta pouco conhecida do autor, a sua relevância e a razão da fama mundial da sua distopia, Mil Novecentos e Oitenta Quatro, que conversámos com Jacinta Maria Matos, que defende que há muito mais para descobrir em Orwell do que os dois romances que o eternizaram.
George Orwell está a ter um novo pico de popularidade, que se deve não só ao facto de em 2021 se assinalarem os 71 anos da sua morte, mas sobretudo porque estarmos a viver tempos que parecem saídos de um livro de ficção.
Há uns anos, apareceu um cartoon muito engraçado em que o boné que os apoiantes do Trump usam sempre dizia “make Orwell fiction again” [risos]. Oxalá a ficção distópica de Orwell passe a ser ficção e não se torne realidade, mas, infelizmente, as semelhanças entre a ficção de Orwell e a realidade são muitas.
Apesar deste pico de popularidade, que Orwell vai tendo de tempos a tempos, porque nunca deixou de ser conhecido, declara na biografia que escreveu do escritor que ele é um autor desconhecido.
É verdade. Estes picos de fama são recorrentes e estamos a viver outro neste momento. O Mil Novecentos e Oitenta e Quatro está mais uma vez no topo das vendas da Amazon. Qualquer acontecimento se reflete nessa popularidade de Orwell, mas, como disse, Orwell nunca passou de moda, é sempre um clássico. Mas acho que o Orwell que se conhece, e que o grande público leitor normalmente conhece e com o qual tem contacto, é apenas o Orwell da sua grande distopia, do Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, quanto muito da Quinta dos Animais. Há muitas outras facetas que acho tão ou mais interessantes. Foram essas que tentei divulgar no meu livro e também nos ensaios.
Porque é que essas duas obras são tão conhecidas e até mais conhecidas do que a restante obra de Orwell? Foram as últimas que escreveu e publicou.
Orwell só conseguiu fama mundial com essas duas obras. Até aí era um romancista menor. Era mais conhecido até como jornalista e figura muito incómoda da esquerda. Realmente só conseguiu atingir esse primeiro pico de fama por uma questão histórica e contextual muito óbvia, que foi a Guerra Fria. Essas duas obras foram recrutadas pela direita para a luta contra o bloco soviético. A primeira grande razão é essa. E depois acho que há algo na qualidade do Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, [uma obra] que foi importantíssima e muito relevante, que foi o facto de Orwell ter conseguido criar um vocabulário que nos pusesse a discutir questões que eram até aí apanágio das elites políticas ou filosóficas. Ele disponibilizou para o debate público uma série de questões, como a vigilância, o controlo ou o totalitarismo, que, a partir do romance, puderam ser muito mais facilmente discutidas e articuladas por um grande público. Para mim, esse é um dos grandes méritos da obra e do autor também — o de promover na esfera pública esse debate de ideias que, para ele, era importantíssimo, e democratizar esse debate sobre questões que ainda hoje nos afetam a todos.
Era também essa a intenção de Orwell quando escreveu A Quinta dos Animais — promover um debate e alertar para os perigos de um regime como o da União Soviética.
Exatamente. O que muitas pessoas não sabem, e sobretudo a direita se recusa a enfrentar, é que ele fez isso de um ponto de vista de esquerda, porque, para ele, a mitificação do regime soviético, a ideia de que ali estava, na União Soviética, uma alternativa viável e possível e uma alternativa que até era descrita muito como socialista, acabava por ser altamente pernicioso. Para Orwell, isso impedia a aceitação por parte do grande público de um outro modelo de socialismo, um socialismo democrático, que era o que ele defendia. A mitificação e glorificação do estalinismo era contraproducente para um movimento como aquele que ele advogava, que era o do democrático.
Não só do regime soviético, mas de todos os regimes com as mesmas características.
Exatamente. A leitura mais óbvia, mas não a única, da Quinta dos Animais é claramente a de uma sátira à revolução soviética, mas temos de ampliar um bocadinho o sentido do texto e pensar que aquilo que Orwell estava a atacar era todos os regimes totalitários, todas as revoluções que depois resultam numa tomada de poder pelas elites que as promoveram e que depois se transformam em ditaduras e em regimes distópicos.
Apesar de recusar o regime da União Soviética, Orwell continuava a ser um homem de esquerda. Contudo, após a sua morte, foi apropriado pela direita que o usou como arma de propaganda durante a Guerra Fria, como referiu há pouco. É uma visão que ainda perdura?
Realmente Orwell continua a ser roubado pela direita para os seus próprios fins e evidentemente que vai buscar à sua obra os elementos que lhe convém, [como] a crítica ao estalinismo. Orwell escreveu A Quinta dos Animais ainda durante a guerra. A União Soviética era um aliado das forças ocidentais, portanto, era extremamente incómodo estar a criticá-la. Orwell sabia muito bem dos riscos que corria ao criticar o estalinismo nesse momento, mas, para ele, isso era fundamental. Orwell nunca teve problemas em ser incómodo, em remar contra a maré, em ser controverso. Era uma figura que dizia o que tinha a dizer com o maior desassombro e a maior frontalidade e, para ele, era essencial desmistificar essa ideia de que o estalinismo era uma solução viável.
A transformação de Orwell num ícone da direita atingiu o ponto máximo com a divulgação nos anos 90 de uma lista de nomes de apoiantes da União Soviética que ele forneceu a uma secção do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico.
Isso contribuiu imenso, porque evidentemente convinha a muita gente mostrar que Orwell tinha participado nessa luta contra a União Soviética durante a Guerra Fria, pelo menos a nível cultural. Essa questão da lista, um episódio muito delicado e controverso, teve um efeito enorme nessa apropriação pela direita, mas, como tentei explicar no livro [George Orwell: biografia intelectual de um guerrilheiro indesejado], há um mau entendimento do que exatamente se passou. Ele deu alguns nomes de figuras que não deviam ser contactadas para a propaganda contra a União Soviética e mais nada. Não estava a acusar nem foi delator nem bufo. Aliás, ele baseou as suas avaliações de quem devia ou não ser contactado para a propaganda cultural em posições que as próprias figuras tinham expressado publicamente. A fama de delator e de bufo é totalmente errada, por mais que [se ache] que não o devia ter feito. Mas também é preciso ver que olhamos para esse episódio retrospetivamente. Sabemos o que é que depois se passou, o que foi o maccartismo e o que foi a caça às bruxas. Orwell não tinha maneira de saber que, futuramente, a sua lista ia ser usada dessa maneira.
Não terá sido também por ingenuidade que ele entregou a lista?
Sim, acho que foi. Houve também o contexto pessoal. Foi uma amiga que trabalhava na secção de propaganda do Ministério dos Negócios Estrangeiros [que lhe pediu os nomes]. Nem sequer era dos serviços secretos, como muita gente diz. Era de uma secção do Ministério dos Negócios Estrangeiros que estava envolvida na propaganda cultural contra a União Soviética. Uma amiga muito próxima, Celia Kirwan, pediu-lhe que dissesse quem é que deviam contactar para essa propaganda. Aliás, ele foi abordado pessoalmente para contribuir e deu uma resposta que acho muito sintomática e reveladora do homem: disse, “olhe, eu não trabalho à comissão e, portanto, não faço isso”. Além disso, ele estava a morrer e não tinha condições para o fazer. Disse que achava que havia pessoas que não deviam ser contactadas, porque eram simpatizantes e não iam com certeza servir de instrumento contra a União Soviética. Foi isso que se passou. Há também um contexto pessoal, e uma lista muito informal que ele tinha vindo a fazer ao longo dos anos sobre figuras que possivelmente trairiam o país. E, deve-se dizer, o medo de Orwell de espiões e traição ao país veio a concretizar-se na década de 1950. Houve várias figuras altamente colocadas no serviço diplomático que passaram segredos nucleares à Rússia durante muitos anos. Não era um exagero da parte dele pensar que havia figuras que eram capazes de fazer isso por convicções políticas ou outras.
Um dos nomes que integra a lista foi precisamente confirmado como espião ao serviço da União Soviética.
Sim, Peter Smollett foi depois denunciado como espião, e era uma figura que trabalhava no Ministério da Informação. Orwell teve alguma razão em ter esse receio de que houvesse figuras, por convicção política ou por outras razões, que eram capazes de trair o país e o ocidente e passar segredos à Rússia. Uma curiosidade: uma figura com quem ele contactou muito brevemente, que conheceu, Kim Philby, que se veio depois a descobrir ser um desses espiões, protagonizando um dos grandes escândalos da espionagem inglesa, não deu conta dele, não está na lista [risos]. Quer dizer, ele não tinha maneira de saber isso, sabia apenas por posições que as próprias figuras tinham vindo a exprimir publicamente de simpatias para com o regime estalinista.
A lista parece dizer muito sobre a sensibilidade política de Orwell e a sua capacidade de analisar os eventos e tirar conclusões muito certeiras. Concorda?
Sem dúvida. Ele era um observador muito perspicaz da realidade política e social à sua volta. Além disso, tinha já uma grande desconfiança em relação à esquerda, porque aquilo que viu durante a década de 1930, e mesmo na década de 1940, foi a esquerda a aceitar acriticamente esse mito de que na União Soviética se tinha conseguido a sociedade ideal e a igualdade. Orwell não acreditava nisso de maneira nenhuma e a sua experiência na Guerra Civil de Espanha, quando viu os companheiros artistas ao lado dos quais lutava serem depois acusados de traição, mostrou-lhe muito bem essa manipulação que era feita da verdade. Ele tinha grandes reservas relativamente à grande parte dos intelectuais de esquerda, que achava que estavam a embarcar numa visão política e de política internacional que, para ele, era completamente errada. Para ele, os intelectuais estavam a deixar o seu patriotismo de lado e a criar lealdades para com potências estrangeiras, o que também era péssimo. Ele achava que um intelectual devia estar muito enraizado na cultura do seu país. É isso que, por exemplo, sugere nalguns dos seus ensaios, nomeadamente em “O Leão e o Unicórnio”, que é um ensaio central em toda a obra dele. Os intelectuais não devem desenraizar-se de tal maneira que passem a ter fidelidades a outros modelos, a outros países. É muito diferente daquilo que ele achava que era o nacionalismo, que, para ele, era muito agressivo e, portanto, errado, mas o patriotismo era muito importante. Hoje em dia leio nos jornais a toda a hora sobre tudo relativamente ao Brexit e figuras como o historiador Timothy Garton Ash sugerem precisamente o mesmo que Orwell sugeriu nessa altura — que é preciso que a esquerda torne a reclamar o patriotismo e a sua ligação a uma cultura nacional.
Esse patriotismo de Orwell veio ao de cima quando a Segunda Guerra Mundial começou e ele procurou imediatamente participar de algum modo. Ele nunca se mostrou contra o conflito e até criticou as figuras à esquerda que o fizeram.
Ele saiu do Partido Trabalhista Independente, onde esteve temporariamente filiado, porque o partido, que era uma fação mais à esquerda do Partido Trabalhista, era pacifista por natureza e advogada a não participação no conflito. Orwell cortou ligações nesse momento. Quando começou a Grande Guerra, não teve dúvidas sobre qual era a sua posição e sobretudo não teve dúvidas que era preciso defender a Inglaterra contra as forças nazis do totalitarismo, então tentou alistar-se. Infelizmente por razões de saúde, não o conseguiu, mas continuou a escrever e trabalhou na Home Guard, um serviço de proteção civil. Fez o possível para conceptualizar o conflito e participar na medida das suas possibilidades que, em termos físicos e de saúde, não eram muitas, porque já estava muito debilitado.
Ele sempre teve uma saúde frágil?
Sim, sempre teve. Teve problemas pulmonares desde muito novo, desde os 20 e poucos anos, quando estava em Paris. E depois era uma pessoa que, mesmo de carácter e de personalidade e pela educação de classe alta que teve, ligava muito pouco a essas coisas. A classe alta inglesa tem este mito do “mustn’t grumble”, “carry on”. “Não nos vamos queixar de nada”, então Orwell continuou sempre [apesar da doença]. Ainda por cima era um fumador inveterado, de modo que imagine o que isso não lhe deve ter feito aos pulmões durante várias décadas. Teve sempre pneumonias e depois no final uma tuberculose que não pôde ser tratada, porque a estreptomicina ainda não estava generalizada e a que ele tomou deu-lhe efeitos adversos muito, muito graves. Foi realmente uma morte um bocadinho prematura, mas ele ligava muito pouco à sua saúde. O trabalho era o essencial. Ele era o que chamam um workaholic. Não largava a máquina de escrever, até no hospital. Tinha uma ética de trabalho muito puritana, se quiser, e tinha esse entusiasmo enorme pelas causas em que se envolvia. A escrita, para ele, era fundamental. Era a arma que ele utilizava, mas também noutros casos utilizou mesmo as armas reais, [como] na Guerra Civil de Espanha.
Uma ideia pré-feita que tentou afastar na sua biografia foi a de que as duas últimas obras de Orwell são fruto de um pessimismo negro que abalou o escritor nos últimos anos de vida.
Não acredito pelas evidências da produção de Orwell antes e depois dessas duas obras que ele era completamente pessimista. Esse Orwell, que sem dúvida se encontra em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, que no final deixa aparentemente essa mensagem tão horrível e tão perturbadora de que Winston Smith é esmagado pelo totalitarismo, não se encontra em muito do que ele escreveu, mesmo na altura em que tinha acabado de escrever essa obra, porque há ensaios, por exemplo, o que escreveu sobre James Burnham, que [dizem que] todos os tiranos acabam por ser depostos e que as ditaduras não duram para sempre, sobretudo se o povo se conseguir revoltar e tiver uma intervenção política clara. Com Mil Novecentos e Oitenta e Quatro e A Quinta dos Animais, a ideia era deixar um alerta para o que podia ser se as coisas não mudassem. Não era uma previsão nem uma profecia daquilo que inevitavelmente aconteceria. De maneira nenhuma. Ele critica também muito uma figura muito influente na altura, James Burnham, por achar que as ditaduras eram inevitáveis e era uma escolha entre dois males. Para Orwell, não era isso de maneira nenhuma. Ele tinha uma noção de que todos devemos intervir social e política e que, portanto, podemos alterar o curso da história antes dela chegar a esses extremos que encontramos em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. É um alerta, é uma chamada de atenção para tendências que se poderão agonizar no futuro. Era nesse sentido que ele estava a escrever. Acho que ele era prudentemente otimista. Não era irresponsavelmente otimista, mas alguém que achava sempre que tudo dependia da ação individual.
Há pouco falou na qualidade de Mil Novecentos e Oitenta Quatro. Na biografia que escreveu, considerou que os dois últimos livros de Orwell não constituem o melhor da sua produção literária. Porquê?
Sei que é uma posição muito controversa. Acho que são absolutamente influentes, e não lhes retiro os méritos, mas é uma questão de opção pessoal. Acho que, em primeiro lugar, Orwell era sobretudo um bom ensaísta e escritor de documentários. Escrevia muito melhor quando escrevia muito próximo do real e da sua própria experiência de vida. Acho que escreveu romances porque, enfim, na altura, quem queria ser escritor tinha de ter sucesso como romancista. A influência que esses dois romances tiveram é incontornável, e ainda bem que tiveram essa influência, porque acho que ainda hoje são extremamente relevantes e ainda hoje os lemos à procura de inspiração para outros combates e outras lutas. É uma opção pessoal se calhar, mas prefiro sempre o Orwell dos documentários e dos ensaios e não estou sozinha. Acho que cada vez mais há pessoas que tendem a isso, porque, quanto mais se divulga de Orwell e quanto mais se divulga das outras facetas, mais as pessoas passam a apreciar essas outras vertentes e a de alguma forma jogar com elas nas suas leituras das duas grandes obras e dois grandes clássicos que ele produziu. Era isso que também pretendia nos dois livros que publiquei, dar a conhecer essas outras vertentes para completar e ampliar um pouco a imagem de Orwell, que era um figura muito mais complexa, diversificada e versátil do que normalmente se entende, e para que as pessoas tenham também outros dados para complementar a leitura desses dois clássicos.
Olhando para tudo o que ele produziu, que foi muito, entende-se mais facilmente aquilo que quis fazer com A Quinta dos Animais e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, que tem a ver com a necessidade que ele parecia ter de alertar, de chamar a atenção.
Espero ter conseguido contextualizar essas duas obras e, como disse, a minha intenção foi sempre, mas sobretudo relativamente a estas duas, mostrá-las como estádios da evolução de Orwell, como um processo que tem causas anteriores e que depois vai refletir-se nas suas posições e na sua escrita seguinte. Não as descontextualizar como muitas vezes acontece, e daí algumas leituras que me parecem incorretas ou truncadas do resto da sua obra. Quando se olha para a obra no seu conjunto, na sua generalidade, acho que estas duas, independentemente da fama que tiveram e que adquiriram depois da morte de Orwell, caem e passam a ficar no seu verdadeiro lugar. São fases muito importantes, mas se calhar não são mais do que isso, do que correlates lógicos e momentos de um percurso.
As primeiras experiências falhadas: Dias Birmaneses e A Filha do Pároco, dois romances “horríveis”
Disse que, na altura, para se ser um escritor famoso era preciso escrever romances. Acha que Orwell nunca quis verdadeiramente ser romancista?
Ele queria na medida em que achava que era a única maneira de se fazer conhecer no mundo das letras, mas, repare, a primeira obra que ele escreveu até foi um documentário, Na Penúria em Paris e em Londres. Ele começou por trabalhar essa vertente auobiográfica, que é importantíssima em Orwell. A vida dele, e a maneira como ele a reconstruiu, a recriou e a aproveitou em muitas das suas obras, é realmente importantíssima. E mais do que isso: era capaz de olhar distanciadamente, criticamente para a sua própria vida, para a sua própria experiência, para a sua origem de classe e muitas vezes mostrar-se a si próprio, exibir-se a si próprio, precisamente como exemplo daquilo que ele estava a criticar. Para mim, esse é um dos grandes méritos é uma das grandes qualidades do autor: essa enorme capacidade de auto-reflexão e de olhar para o seu percurso, um percurso também extremamente diversificado e complexo, como um bom exemplo sociológico de como uma classe alta ainda se comporta ou os preconceitos com que educa as crianças. Ele olhava para si e reconhecia tudo isso. Essa capacidade de desdobramento, de auto-reflexão e de se olhar a si mesmo como exemplo de certo de tipo de atitudes e de certo tipo de visões do mundo, é importantíssima e funciona muito bem na sua escrita. Foi isso que ele conseguiu fazer nalguns dos seus ensaios mais brilhantes, como “Matar um Elefante”, em que a sua experiência de participação e de cumplicidade no império acaba por ser alargada, estendida e olhada contextualmente. Essa grande habilidade que Orwell tinha de pensar sempre a sua própria experiência em termos de um sistema mais vasto é muito importante e sobressai sobretudo nos ensaios e nos documentários.
O imperialismo e o colonialismo eram dois temas muito importantes para Orwell. Estão no centro do segundo romance que publicou, mas o primeiro que escreveu, Dias Birmaneses.
Foi uma experiência evidentemente muito marcante, muito perturbadora e muito intensa, porque Orwell viveu o império quando era muito novo. Às vezes, o que não nos lembramos é que ele teve uma infância e uma adolescência relativamente protegidas. Esteve em colégios internos onde era educada a elite inglesa, com muito pouco contacto exterior. Por outro lado, tinha raízes familiares na Índia e, quando acabou a public school em Eton, uma das mais prestigiadas senão a mais prestigiada public school, resolveu alistar-se para voltar ao império [Orwell nasceu na província indiana de Bengala], na Indian Imperial Police. [Era] muito novo, tinha 19 anos. Esteve lá cinco anos e num momento particularmente complicado da Birmânia, que não estava a ser afetada por algumas reformas que os ingleses tinham tido que fazer relativamente à Índia. A situação era um barril de pólvora prestes a explodir. Para alguém que era sensível, que imediatamente percebeu os lados negativos do sistema e que se sentia muito preso entre duas realidades diferentes, entre a rejeição ideológica do sistema imperial e de todo o colonialismo e, por virtude da sua profissão e do seu papel público, a necessidade de agir em função dos ditames do império, [a situação] causou-lhe dilemas terríveis que, na altura, não conseguiu resolver a não ser saindo e largando a profissão. E são esses dilemas que aparecem muito no primeiro romance, Dias Birmaneses. Temos um protagonista que está muito dividido entre o seu ódio ao império e a sua rejeição ideológica e a cumplicidade que todos os dias na sua vivência quotidiana tem de continuar. O desfecho é trágico — o protagonista acaba por se suicidar. Felizmente, Orwell arranjou maneiras mais produtivas de lutar contra o sistema mais tarde. Mas sem dúvida que seguiu a sua posição anti-colonialista durante toda a vida, ao contrário do que alguns críticos dizem. Ele nunca deixou de protestar contra esse género de governo e fez o mais possível em posições públicas e noutros escritos para alertar para os terríveis efeitos e a natureza horrível desse sistema.
Considerou que Dias Birmaneses não é um romance muito bom.
Fui eu e o próprio Orwell, que mais tarde achou que era um romance horrendo [risos]. Tentou, aliás, que não fosse reeditado. Não gostava dele porquê? Não foi tanto pelo conteúdo político, foi pelo estilo, que é realmente pesado, barroco, muito rebuscado. O Orwell mais maduro, mais velho, achou que era um estilo imaturo, de quem tem mais interesse pelas palavras, pela função estética das palavras do que por outra coisa. Orwell é conhecido pelo seu estilo muito simples, muito claro, muito direto, muito depurado. Não foi algo natural, foi uma posição política também deliberada da sua parte. Para ele, a linguagem era muito importante. O que ele fez foi forjar ao longo da carreira um discurso que fosse cada vez mais claro, mais direto, não menos sofisticado, mas informal. Para quê? Precisamente para atingir públicos mais vastos, para não ficar preso a uma linguagem hermética e de elite. Fazia parte integrante do seu projeto político falar claramente, tentar encontrar uma linguagem que as pessoas comuns — “the common man”, como ele gostava de dizer — pudessem entender e nas quais elas também pudessem sentir que podiam participar. Para ele, toda a gente tinha responsabilidade na manutenção da língua e de uma língua que fosse um antídoto contra a linguagem eufemística e deturpada daquilo a que hoje chamamos fake news, que é muitas vezes promovida pela classe política.
Nos primeiros romances, fez precisamente o contrário. A Filha do Pároco, o segundo livro que publicou, é muito influenciado por Joyce.
Pois, lá está, o Orwell jovem, quando começou a escrever e quando tinha essa aspiração de ser um escritor conhecido, começou evidentemente por recorrer àquilo que lhe parecia serem as formas mais óbvias e também mais criticamente aceite e elogiadas do romance. Por isso resolveu imitar ou tentar imitar alguns dos grandes vultos da literatura da época. A Filha do Pároco, enquanto romance, é horrível [risos]. É uma coisa horrível, e o próprio Orwell teve consciência disso, que é uma série de remendos mal cosidos de várias proveniências que não fazem sentido nenhum. Foi, assim, digamos, uma tentativa de escrever segundo a forma e a cosmovisão modernista. Mas Orwell não era um modernista, nem queria ser, e portanto acabou por largar [a forma modernista]. Foi uma experiência técnica que deu conta que não resultou. Foi a influência de certo tipo de romances e também devido à predominância que o romance teve em todas as outras formas literárias durante muito tempo. Por isso é que agora começamos a privilegiar o Orwell dos documentários, o Orwell não-ficcional, dos ensaios, porque o romance já não tem essa preponderância, essa exclusividade na nossa cultura. Começamos a perceber que também há criação e criatividade noutras [formas]. Orwell beneficiou disso, sobretudo esse outro Orwell que ficou esquecido durante muito tempo.
O “outro” Orwell: o ensaísta político fascinado pela cultural popular e pela natureza
É esse outro Orwell que apresenta no livro de ensaios que agora lançou. Qual foi o critério que seguiu para a escolha dos textos?
O primeiro critério que surgiu foi o de não repetir muito. Há muitos ensaios de Orwell que já estão publicados. A minha intenção nunca foi repetir, mas dar a conhecer alguns dos ensaios que acho tão interessantes, tão curiosos e alguns mesmo deliciosos, que ainda não estavam traduzidos para português. Depois, é evidente, uma pessoa pensa, “bem, não vamos também de maneira nenhuma deixar incluir algum do Orwell político”. É impensável escrever ou produzir uma coletânea de ensaios que não tenha essa grande faceta, que é a mais conhecida do público. Portanto, dos ensaios políticos de Orwell, escolhi um que ainda não estava traduzido e que é um dos meus preferidos, “O Escritor e o Leviatã”. Utilizei uma citação desse ensaio como subtítulo do meu primeiro livro [George Orwell: biografia intelectual de um guerrilheiro indesejado], a ideia de que o escritor deve ser como um guerrilheiro indesejado no flanco do exército regular, que me parece a melhor definição que Orwell deu de si próprio. Foi isso que ele tentou sempre fazer. Portanto, a coletânea tem algum do Orwell mais conhecido, do Orwell político, mas dentro desse há ensaios que ainda não estavam divulgados, como este, “O Escritor e o Leviatã”.
Não se podia também fazer uma coletânea sem referir a experiência de Orwell no império, mas há outros Orwells que são muito menos divulgados, o Orwell que é pioneiro no estudo da cultura de massas, com esse ensaio que é absolutamente delicioso, sobre os postais atrevidos de praia, a arte de Donald McGill e sobre a natureza, que é uma vertente que está completamente esquecida e sempre foi importantíssima em toda a sua escrita. Ele gostava muito da natureza, da sua ligação com a materialidade do mundo e os fenómenos da natureza. Há vários ensaios, como “Algumas Reflexões sobre o Sapo-comum”, que me parece paradigmático de Orwell, [que falam sobre isso]. Ele começa por analisar um fenómeno trivial, a chegada da primavera e a desova dos sapos, e vai alargando, alargando, alargando o significado desses momentos iniciais para acabar em reflexões político-ideológicas. É isso que Orwell faz muito bem nos ensaios — pega num pormenor que normalmente nos escapa, qualquer coisa que vê quando olha à sua volta, pela janela de casa, e contextualiza, alarga e potencializa o seu significado para contextos históricos, sociológicos e políticos. E faz isso com uma transição tão bem feita, tão fluente, que os leitores vão seguindo e vão percebendo como é que as coisas no mundo se relacionam umas com as outras.
Um aspeto que a seleção mostra é que Orwell escreveu para diferentes tipos de jornais e revistas, o que parece remeter para aquela preocupação de que já falámos de fazer chegar o que tinha para dizer ao maior número de leitores possível.
Exatamente. Ele tinha públicos muito variados. Foi fruto da preocupação que tinha de chegar a públicos alargados e diversificados, mas também, devo dizer, foi uma questão económica [risos], porque teve durante toda a vida problemas económicos. Não se ganhava muito, como ainda acontece hoje no jornalismo. Ele nunca fez grande fortuna com os romances até aos dois últimos, que foi quando ficou com uma situação económica muito desafogada. Ele não recusava nada. Ou antes, recusava aquilo que ia contra os seus princípios. A década de 1930 e 1940, sobretudo de 1930, viu um florescimento enorme de revistas e periódicos literários e culturais em Inglaterra e Orwell tinha a sorte de ter alguns amigos muito influentes, alguns deles amigos de infância, como Richard Rees ou o Cyril Connolly, que eram figuras centrais dessa cultura dos periódicos. Portanto, foi relativamente fácil para ele entrar nessa cena editorial de revistas e periódicos. E ele próprio foi editor literário de um jornal [o Tribune], que apelava sobretudo a membros e simpatizantes do Partido Trabalhista. Foi aí que ele teve essa coluna semanal, “As I Please”, que também revela Orwell no seu melhor, porque tanto tem comentário às questões do momento, como reflete sobre tudo e mais alguma coisa que, como o nome indica, lhe chamava a atenção.
Orwell foi uma figura importante também nessa cena cultural de revistas e períodos que surgiu nos anos 30. Como digo no prefácio do livro sobre os ensaios, o que é curioso é que ele nem sempre respeitou o estilo das revistas para as quais escrevia. A de Cyril Connolly, Horizon, era uma revista de elite e foi aí que ele publicou — e estamos mesmo a imaginá-lo a rir, ou pelo menos a sorrir ironicamente — o ensaio sobre os postais atrevidos de praia. Ele também defraudava um bocadinho as expectativas. Não tenho dúvidas de que foi deliberado propor um ensaio sobre uma forma que, na altura, era considerada menor. A cultura popular, a literatura infanto-juvenil, as histórias de aventuras, o policial, pelos quais Orwell tinha interesse, eram olhados pelos intelectuais como formas menores, não dignas de atenção e de estudo. Só muito mais tarde, nas décadas de 1960 e 1970, é que a academia e algumas figuras pioneiras dos estudos culturais começaram a levar a sério esse tipo de manifestação artística. Orwell já o fazia nas décadas de 1930 e 1940, e realmente fez uma análise muito interessante para quem era completamente amador.
Na introdução aos ensaios, diz que Orwell é hoje reconhecido como um dos grandes ensaístas da cultura anglófona. Isso deve-se precisamente a esse olhar inteligente e atento que ele sempre teve em relação às matérias mais diversas.
Exatamente. Acho que a versatilidade dele, que é claramente demonstrada nos ensaios, é uma das suas grandes qualidades, porque, e espero que a coletânea que traduzi dê conta disso, tanto temos reflexão sobre fenómenos como o antissemitismo, a questão do nacionalismo e do patriotismo, questões mais políticas, ideológicas ou filosóficas, como temos outros outras, como a chegada da primavera, de que falei há bocadinho, ou sobre as estâncias de lazer do futuro. Esse também é outro ensaio que acho absolutamente delicioso, em que Orwell propõe que precisamos de solidão, de uma contemplação da natureza, que o ser humano tem de ter essa privacidade, tem de estar sozinho e de se relacionar com a natureza. A versatilidade é enorme, a gama de registos que ele conseguiu imprimir aos seus ensaios é absolutamente extraordinária. E também a lucidez, essa enorme perspicácia, uma visão que às vezes é muito idiossincrática, mas sempre desafiante. Ele pede-nos sempre que acompanhemos o seu processo de pensar o mundo, e acho que ele tem essa capacidade de se relacionar com os leitores e leitoras, de nos envolver nesse processo. Deixamo-nos seduzir por ele, até às vezes quando não devíamos, quando devíamos ter alguma atitude crítica, porque Orwell nem sempre está certo, como é evidente. Ele escreve de forma muito polémica e às vezes deliberadamente provocatória.
Era assim que ele mais gostaria de ser lembrado? Como ensaísta?
Não sei, acho que para ele os ensaios eram de uma forma menor. Acho que ele gostaria sobretudo de ser lembrado como escritor político. Esse era o grande desiderato. O seu grande objetivo foi sempre, ou pelo menos a partir de 1936, quando ele fez uma escolha ideológica, fundir o propósito político e o propósito artístico. O que ele queria era escrever textos políticos com qualidade literária. Fossem eles romances, documentários ou ensaios. Esse era, para ele, o fundamental, porque ele não tinha um entendimento restrito da política. A política partidária era algo que até detestava. As politiquices. Mas, para ele, o político tinha uma aceção mais lata e não era de maneira nenhuma incompatível com a arte. Para Orwell, a arte era sempre política, mas o texto político, como Homenagem à Catalunha, também devia ter alguma consideração artística. O estético não era de maneira nenhuma incompatível com o político e o que ele queria fazer era uma fusão dos dois. E acho que conseguiu isso de forma diferente em vários géneros diferentes, às vezes de forma mais brilhante e espetacular do que outras, mas é algo que se nota na sua obra.
E com isso tentar “empurrar o mundo numa determinada direção”, como ele escreveu no ensaio “Porque Escrevo”.
Ele trabalhou sempre para veicular uma ideia política, mas parece-me que também trabalhou para promover atitudes, sobretudo. Atitudes de crítica, atitudes de revolta e de não subserviência contra dogmas e ortodoxias, de auto-reflexão, de atenção ao mundo à nossa volta. Acho que promoveu sobretudo discursos emancipatórios, que são hoje tão importantes como na sua época. Não era uma questão de influenciar os leitores e leitoras a adotarem uma determinada ideologia política.
Ou de tentar impô-la.
Não, de maneira nenhuma. Não tinha esse impulso missionário de impor a sua visão das coisas. Queria sobretudo promover o debate e a ação pública. Acho que sempre acreditou que qualquer mudança tinha de vir de baixo para cima e não ser imposta de cima para baixo. Acho que toda a sua escrita se movimenta precisamente nesse sentido.