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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Jeferson Tenório, o escritor censurado no ápice da glória da literatura negra no Brasil

Já lhe chamam uma "primavera literária", tantos são os escritores negros a surgir no Brasil. Mas Jeferson Tenório não quer ser um fruto exótico, quer incomodar. Depois dos prémios chegou a censura.

“Antes ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a existência ganhara um sobrenome”. Há séculos que o mundo ocidental se anda a refazer de ter descoberto que, existem, sob o sol, vários tons de pele, vários formatos de olhos, várias formas de viver. Há séculos, pelo menos desde Platão, que se normalizou que o claro é bom e o negro é mau, que o branco é puro e o negro é sujo, que o mundo se explica em termos opostos, embora se saiba que essa explicação resulta de um pensamento simplista, e, no entanto, muitos resistem à divisão das pessoas pela tonalidade dérmica. Martha, demorou anos a descobrir que era “negra” e mais anos ainda a descobrir que isso determinaria toda a sua existência. Não se nasce negro. As pessoas tornam-se negras porque isso lhes é imposto. A negritute é uma imposição que o mundo lhes faz, para que outros possam manter as suas crença de superioridade. É sobre as histórias de todos os homens e mulheres, secularmente encerrados no gueto da “raça”, da pobreza, condenados ao ciclo infinito da violência, condenados a não terem futuro, que escreve Jeferson Tenório.

O Avesso da Pele, recebeu o prémio Jabuti, e é um livro cru sobre a violência exercida sobre os negros no Brasil. Três romances a ensaiar a voz, a forma, o ritmo, a trama, a fúria. Entre O Beijo na Parede (2013), Estela sem Deus (2018) e O Avesso da Pele (2021) há um inegável crescimento como escritor, um maior domínio da palavra. Limpar o  dispensável lirismo, e indulgência, e fazer um trabalho de faca sobre a prosa tornou-o capaz de dizer o que precisa ser dito, não como um escritor negro que quer impressionar os leitores brancos, mas como um escritor negro que escreve para negros, para lhes lembrar, como Sartre, que nascemos condenados a escolher e, se essa é a única liberdade que se tem, então ela tem que ser usada para produzir mudança. A grande mudança na vida de Jeferson Tenório começou aos 23 anos, quando descobriu a leitura. Hoje, ao 47, quer sobretudo escrever para aqueles que ainda não fizeram “a grande descoberta do empoderamento” que é o conhecimento; os negros pobres das periferias das grandes metrópoles brasileiras. Por isso as histórias que conta são aquelas que raramente ganham lugar nos livros; as da violência racista, da sexualização dos corpos da mulheres negras, de como a pobreza e a falta de futuro destrói as famílias, corrói o amor, conduz à indiferença afetiva.

O Avesso da Pele, recebeu o prémio Jabuti, e é um livro cru sobre a violência exercida sobre os negros, no Brasil

Já este ano, quatro estados brasileiros retiraram, das escolas e bibliotecas públicas, o seu romance, O Avesso da Pele (Prémio Jabuti, 2022) por considerarem que a sua “linguagem” não era adequada a adolescentes. Este ato censório que procurava  justificar-se pelo uso de calão ou cenas de teor sexual no romance, desencadeou uma onda de protestos, fez o livro triplicar as vendas e, recentemente, o governo obrigou os estados a reporem os livros. O escritor lamenta sobretudo que as pessoas “se revoltem contra o calão ou a sexualidade dos adolescentes mas nunca se revoltem contra o racismo e a violência policial sobre os negros”. Recorde-se que já este anos demos conta de outra tentativa de censura ao romance de Airton de Sousa, Outono de Carne Estranha, e que no últimos anos o Brasil tem tentado limitar a liberdade de expressão no que toca a temas como a sexualidade, a violência, a homossexualidade.

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As obras de Tenório estão na editora Companhia das Letras e o escritor está, por estes dias, em Portugal para a apresentação do seu romance segundo romance, Estela sem Deus. Entrevistámo-lo na sede da editora, em Lisboa.

Estela sem Deus, de 2018, acaba ser editado em Portugal

Só chegou à universidade porque, no ano 2000, o Brasil criou uma quota para estudantes negros. Deste investimento começam agora a ver-se os frutos, com toda uma nova geração muito bem preparada, com mais instrumentos, a chegar às letras. Isso contudo não apaga o ter levado tareia da policia, a luta de muitos anos como professor de literatura em escolas de Porto Alegre, o combate contra a sensação de não haver futuro.
A minha família é do Rio Grande do Sul, mas a minha mãe saiu aos 16 anos e foi para o Rio de Janeiro. Lá, ela conheceu o meu pai, que é do Ceará. Eles separaram-se e só reencontrei o meu pai aos 44 anos. Aos 13 fui para Porto Alegre onde fiquei até aos 47. Hoje moro em São Paulo. Queria ser escritor de telenovelas porque as telenovelas eram a única referencia literária que eu tinha. Cheguei mesmo a escrever uma história, com 200 páginas, chamada, O Perdão do Destino. O título é horrível, mas eram as minhas referências.  Então, eu não tinha consciência social, não tinha consciência racial, não reconhecia pessoas negras como possíveis personagens sequer. Porque eu não tinha lido sobre isso, eu não tinha referências. Só depois, quando eu comecei a ler  literatura a sério, ali pelos 23, 24 anos, é que comecei a escrever contos a partir da minha história, a partir das experiências que eu tinha, das experiências que a minha família teve. Estela sem Deus é um pouco a história da minha mãe. Foi determinante para mim esse processo de reconhecimento que a minha família, a minha história também poderiam servir como ficção.

É aquilo que diz ser uma “autópsia” literária, ou seja usar os seus próprios olhos e palavras para dissecar a sua vida, a sua história?
Creio que a construção desse olhar começou com a leitura de autores negros, Tony Morrison, Ralph Ellison, James Baldwin. Com eles comecei a me compreender enquanto homem negro também. Mas antes a minha trajetória já era uma trajetória marcada pela violência, mas sem questionamentos. Abordagens policiais, violentas, como conto nos livros, os preconceitos, o racismo, mas era tudo muito natural. Há uma normalização da violência até para os negros que a sofrem. Porque as pessoas próximas também sofrem essa violência. Então, já somos educados para não reclamar.  Só a partir da leitura desses livros é que eu comecei a ter uma consciência racial.

Inicialmente, era apenas uma tentativa de escrever sobre mim, mas depois esses temas surgiram. Eu sempre quis escrever sobre mim, embora não no sentido egóico, mas no sentido de investigação íntima, de uma necessidade. E isso tem a ver também com as leituras que eu fui fazendo antes de chegar nos romances, e principalmente com os autores Existencialistas, Camus, Sartre, Simone de Beauvoir, mas também  o Virgílio Ferreira. A Aparição foi um livro que me paralisou e paralisou a minha escrita . Eu não conseguia mais escrever depois de ter lido.

"Os meus livros não carregam vocabulário altamente sofisticado. Não há palavras que dificultem a leitura, e os tempos têm uma certa linearidade também. Ou seja, não há uma barreira. Porque eu escrevi o livro que eu não encontrei quando era jovem. E é uma espécie de vingança também, porque ninguém havia me dito o quanto era bom ler e o quanto isso transforma a vida das pessoas."

Sentia-se esmagado?
Sim. O que eu posso fazer depois de ter lido isso? E ele também tem a questão da estrutura, de mexer com a estrutura, com a linguagem. Então, começo  a fazer esta espécie de investigações sobre mim mesmo. E a partir disso é que os temas vão aparecendo. Eles são transversais mas não são inaugurais, no sentido em que não consigo partir de uma história com a ideia de vou falar sobre o racismo, vou falar sobre o machismo, vou falar sobre o feminismo. Eu não consigo partir daí. Eu consigo partir de uma questão íntima, filosófica e como essas relações se dão entre as pessoas. Aí o que vem depois, depende desses corpos com quem eles convivem e assim por diante.

Os corpos, nos seus livros, são sempre o lugar central, por onde a história passa. Eles são o lugar onde todos esses preconceitos sociais incidem, mas também aquele onde se consegue transcender essa condição, nomeadamente na sexualidade.
Isso talvez tenha a ver com o que eu estudei na minha tese. Foi a representação paterna nas literaturas dos africanas. E acabei estudando de que forma o Ocidente vê o corpo de modo geral. Não só o corpo negro, mas de modo geral. E o Ocidente costuma apreender a partir da visão. O principal sentido de apreensão do conhecimento é a visão. Porque a visão identifica, segrega… Dá uma sensação de verdade. Como se a verdade fosse o que está à frente dos nossos olhos. Você tem um juízo de valor toda vez que você olha. É muito importante saber quem é negro, quem é branco, quem é homem, quem é mulher, quem é adulto, quem é criança, ou seja, essas dualidades, elas ficam muito presentes. Talvez eu tenha criado personagens que evidenciassem isso; esse corpo tão vulnerável a uma forma tão superficial de conhecimento do outro, que é a tonalidade da pele. Como é que você se aproxima do outro apenas percebendo a cor dessa pessoa? Faço uma tentativa bastante explícita e direta de mostrar como esse corpo sofre violências e do quanto esse preconceito influencia em todas as esferas da vida dessas pessoas, seja na vida afetiva, na vida profissional, na vida familiar.

A busca de Deus é um dos temas centrais no romance que agora apresenta em Portugal, Estela Sem Deus. Mas também a adolescência, a ausência da figura paterna, o abandono, a descoberta da sexualidade, a pobreza material.
Em todos eles há um pouco da minha história pessoal, mas Henrique, d’O Avesso da Pele é o personagem onde usei mais a minha própria história. Fui professor durante 20 anos em escolas públicas, trabalhei com adolescentes, crianças. Acho  que eu só me tornei escritor porque fui professor. E ao observar esses adolescentes de periferia, negros, pobres, eu percebi o quanto é um lugar difícil ser um jovem no Brasil, naquelas circunstâncias, naquele contexto. Porque além de não ter recursos básicos, qualquer jovem ainda não tem mecanismos internos capazes de lidar com as diversidades do mundo. Então, além da precariedade material, você ainda tem a precariedade que é de todos. E para mim é muito interessante trazer esse tipo de personagem, que não sabe muito bem ainda como lidar, ou seja, é preciso inventar uma maturidade. A Estela tem uma maturidade improvisada. O Pedro tem uma maturidade improvisada. Improvisada porque ainda não viveram o suficiente para lidar com os traumas. Eles estão ainda nesse momento de transformação, de aprendizado e de coragem também. Acho que é uma fase absolutamente determinante.

Eu acho que eu faço esses personagens jovens porque eu esqueci o que é não ter medo. Eu escrevo esses personagens para lembrar como eu não tinha medo antes, como eu era mais corajoso. De novo, porque os jovens ainda não experimentaram as frustrações, as dores, tudo que vem com o tempo. Então eu escrevo para lembrar o quanto é importante a gente ter um pouco mais de coragem. Por isso são personagens corajosos.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Para si também a coragem foi determinante?
Foi e é necessário coragem. Principalmente para ir para a universidade, para me tornar professor, para me tornar leitor. Há uma série de transformações que nos vamos impondo a nós mesmos. Hoje, aos 47 anos, eu não consigo me imaginar fazendo tudo outra vez, porque foi tão difícil e tão dolorido. Quem me vê hoje como um escritor publicado, reconhecido, talvez não tenha ideia do que se passou até eu chegar aqui. Então, acho que fui um pouco corajoso porque a vida também foi me levando.

Sinto falta vida da sala de aula, mas não sinto falta da escola. A sala de aula me faz muito bem porque é um lugar de trocas. De partilhar conhecimentos. Estive recentemente como professor convidado na Brown, em Providence, nos Estados Unidos, e foi uma experiência muito boa, eram alunos muito jovens, mas que já estavam na pós-graduação. E ali eu renovei essa vontade de dar aulas, de conversar com os alunos, de questionar as minhas próprias certezas. O próprio Virgílio Ferreira foi professor.

Apesar do reconhecimento que tem hoje como escritor, isso não impediu que o movimento censório tenha recaído sobre o seu livro O Avesso da Pele. Como viveu essa experiência de ter um livro que provoca em alguns a vontade de o apagar da face da terra?
No caso do Ayrton de Souza, tal como no meu, creio que a questão nem seja a linguagem, nem das cenas de sexo. Eu creio o que está em causa são as nossas origens. Ele vem do Norte, de um meio muito pobre.  A história pessoal dele ofende as pessoas, que se perguntam “Como essa pessoa conseguiu chegar até aqui?”.  Então é preciso impedir que mais pessoas como o Ayrton e eu cheguem nesse lugar. É perigoso. No meu caso, também um homem negro, os meus livros tratam de questões sobre a violência policial, sobre racismo. Antes desta retirada dos meus livros, em 2021, cheguei a ser ameaçado de morte na Bahia.

Quer contar?
Eu ia dar uma palestra numa escola em Salvador, uma escola particular. E dois dias antes de chegar comecei a receber mensagens dizendo que se eu fosse lá seria morto. E as mensagens começaram a aumentar e começaram também a ficar muito próximas, com informações muito precisas de onde eu estava, etc. Fiquei cinco dias sem sair do hotel. Fiz a palestra online. E depois dei uma entrevista para o jornal O Globo onde contei que estava sofrendo as ameaças e aí tive que sair às pressas de Salvador e voltar para Porto Alegre.

Em 2024, em março desse ano, uma professora no Rio Grande do Sul, o meu estado, faz um vídeo falando da linguagem inapropriada do livro O Avesso da Pele. Esse vídeo viralizou, a coordenadora de educação do estado pediu a retirada dos livros, mas o governador do estado impediu que os livros fossem retirados. Uma semana depois, o estado do Paraná pede a recolha dos livros, que foram recolhidos das escolas e bibliotecas e levados para as secretárias de educação.  Esse movimento foi seguido por Goiás e depois Mato Grosso do Sul. E mais outros estados apenas ensaiaram, só pediram informações de quantos livros havia, mas como começou a vir uma reação muito grande de professores, alunos, artistas… Dos media.

Houve políticos que o vieram defender?
O Paulo Pimenta, do Ministério das Comunicações, e a ministra da Secretaria de Cultura, Margareth Menezes, se pronunciaram. Houve artistas também, como Chico Buarque, Fernando Torres, entidades como a Academia Brasileira de Letras também se posicionaram, e muitos professores, muitos alunos. Bom, com toda a repercussão, a minha editora, a Companhia das Letras, também entrou com um mandado de segurança pedindo para que os livros fossem devolvidos. E os livros foram devolvidos no final do mês de maio. Foram devolvidos para os postos. Porque não havia argumentos sérios que sustentassem essa decisão. E o argumento que eles utilizaram, de que o livro precisava passar por uma avaliação pedagógica não fazia sentido, uma vez que já havia passado por uma série de avaliações de especialistas que não estão ligados a governos.  São pessoas que estudaram para aquilo, inclusive o livro foi, foi avaliado no governo do Bolsonaro, no governo anterior, e ele chegou nas escolas ainda durante o governo do Bolsonaro.

E que consequências práticas teve a censura?
As vendas aumentaram, triplicaram. Estamos agora perto de 200 mil. Ah, é muito? É bastante? É bastante. Em termos do mercado brasileiro é bastante. E chegou em lugares bem longe, onde eu não imaginava que pudessem, lugares  mais afastados das capitais porque às vezes a venda dos livros fica muito concentrada no eixo Rio de Janeiro/ São Paulo. Então agora a coisa está muito mais distribuída.

Uma das coisas que defende é a leitura como um fator de empoderamento para quem vem de classes mais pobres e mais marginalizadas.
E não só de empoderamento social, porque permite estudar mais, etc, mas ter mais ferramentas internas para aguentar essas violências todas. Acho que o ato mais transgressivo que fiz na minha vida foi me tornar leitor. Foi fazer esse movimento de parar na frente da estante e escolher um livro. É quase como se tornar um bibliotecário de si mesmo. Esse movimento de escolher o livro, ele é um ato muito poderoso e muito empoderador. E o meu projeto literário não é falar sobre o racismo, mas é de formar leitores. Por isso, também utilizo uma linguagem acessível. Os meus livros não carregam vocabulário altamente sofisticado. Não há palavras que dificultem a leitura, e os tempos têm uma certa linearidade também. Ou seja, não há uma barreira. Porque eu escrevi o livro que eu não encontrei quando era jovem. E é uma espécie de vingança também, porque ninguém havia me dito o quanto era bom ler e o quanto isso transforma a vida das pessoas.

"A minha vida também foi essa conversa com o pai fantasma. Meu pai foi embora quando eu tinha um ano de idade, e só o reencontrei 40 anos depois. E todo esse período foi essa conversa com o pai fantasma. Eu não conseguia matar o pai simbolicamente, psicanaliticamente falando."

O que é que gostaria que o seu livro desse a quem ainda não é leitor?
Os meus livros procuram fugir àquilo que são os estereótipos sobre as pessoas negras; uma personagem é uma filósofa, outra é um professor de literatura. A ação destes livros são as pequenas vitórias interiores altamente potenciais para a transformação. O que eu gostaria é que esse leitor negro periférico pudesse abrir o livro e conseguisse imaginar um outro futuro. Aliás, imaginar o futuro. Porque imaginar, para pessoas negras periféricas é um exercício muito difícil. Porque o exercício de imaginar, ele é um exercício para imaginar o amanhã. Ou depois do amanhã. Nunca é o que eu vou ser. O que eu vou estudar. Que profissão eu quero. Porque outras coisas são mais urgentes: o é que eu vou comer amanhã? Onde é que eu vou morar? Claro, e isso toma toda a existência da pessoa. Este livro é uma tentativa de oferecer uma possibilidade futura.

As dificuldades dos homens, especialmente na vivência da paternidade, mas também da sexualidade, da religião são outra das questões que investiga nos seus livros.
N’ O beijo na parede, o pai mata-se logo no início do livro. Aqui, no Estela sem Nome o pai é ausente e no Avesso da Pele, o pai foi assassinado. Bem, o Hamlet, de Shakespeare foi um livro que me impactou bastante, mais pela imagem desse pai fantasma, essa relação com um pai que se vai, mas, ao mesmo tempo permanece como fantasma. E, de certo modo, também emula a minha vida. A minha vida também foi essa conversa com o pai fantasma. Meu pai foi embora quando eu tinha um ano de idade, e só o reencontrei 40 anos depois. E todo esse período foi essa conversa com o pai fantasma. Eu não conseguia matar o pai simbolicamente, psicanaliticamente falando. Na verdade acho que só superei a ideia paterna quando eu próprio me tornei pai.

Só quando o pai morre deixa de haver uma relação hierárquica com ele. Tanto que às vezes você não sabe se o Pedro está falando dele ou se está falando do pai, Henrique. As vozes vão se confundindo. Isso é propositado. É como se a morte tirasse o pai desse pedestal e colocasse ele ao nível do filho.

A maior violência é sempre sofrida pelas mulheres negras, desde a hipersexualização, e que vai marcar toda a sua vida, todos os relacionamentos.
É impossível falar de raça e não falar de género. E as mulheres de que falo são mulheres marcadas pela violência, pelo assédio, por essa hipersexualização também. No caso específico da Estela, o ato de se tornar filósofa tem a ver com o ato de conseguir dizer não. Toda a trajetória dela é um fortalecer-se filosoficamente para a recusa, porque ela é educada para dizer sim a todos homens que vão aparecendo na vida dela:é o irmão a que ela tem que dizer sim, é o pai, é o pastor, é o namorado. Ou seja, é a todos esses homens que vão aparecendo e ela vai se fortalecendo de tal modo que, um dia, ela vai conseguir dizer não.

Umbanda, Candomblé, igrejas adventista. Nos seus livros a busca de Deus está muito presente, mas há uma grande tensão entre estes dois universos que marcam muito a vida dos negros no Brasil.
Venho de uma família de religião de matriz africana, o Umbanda, que é parecido com Candomblé. Então, quando eu entro na universidade e me deparo com os livros existencialistas, principalmente o existencialismo do Sartre, que é materialista, onde não há possibilidade de algum tipo de transcendência, isso me causou um choque. E comecei a questionar as crenças religiosas. Acho que essa busca por Deus tem a ver com isso, não com o Deus católico, mas com esse grande Deus saciador. Ou seja, tudo o que acontece de errado com a sua vida, você pode jogar a culpa nele. E o que o existencialismo faz é dizer que existem as circunstâncias da vida, mas também existem as suas escolhas. Mesmo que você seja uma pessoa negra, que você seja pobre, ainda assim há alguma coisa sobre a qual você tem domínio. E é esse domínio que eu  coloco nas minhas personagens. Essa responsabilidade sobre si mesmos, por mais que, ao redor, tudo seja violento e nefasto.

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Em Estela sem Deus isso está mais presente, é um mundo das religiões de matriz africana, a que Estela pertence e depois um grupo de pessoas evangélicas onde ela se tenta integrar. Dessa tensão é que surge a filósofa que ela será. Ou seja, não é dizer que as religiões de matriz africana são melhores. Inclusive, a Estela também as questiona. E, no fim, ela não chega a nenhuma conclusão. Eu tomei esse cuidado, porque eu não queria um livro maniqueísta e também não queria, digamos, ofender as religiões, que é algo muito íntimo e muito sensível que leva uma pessoa a crer em determinadas coisas. É preciso mostrar que as coisas são sempre mais complexas. Porque se as pessoas lerem, de facto, os livros percebem que a dimensão da história nunca é tão reduzida como as ideias que a censura tentar impor sobre um livro. No fundo eles estão a impor uma leitura restrita sobre uma coisa que é explosiva.

É como no livro de Ray Bradbury: os livros são para queimar até que chega um bombeiro e decide abrir o livro. E aí revoluciona tudo. E num país como o Brasil, que são 250 milhões de pessoas, e uma população que lê muito pouco, talvez 10% da população seja leitora, uma porção muito pequena. Se a gente está falando de 200 mil livros vendidos no Brasil, isso não chega a 1% da população que teve acesso ao romance.

Apesar disso, no Brasil o governo compra um grande volume de livros para as escolas. Já em Portugal, o PNL só prevê a compra de um exemplar para cada escola.
No Brasil, cada escola recebe em torno de 200 exemplares. Mas aí você tem um outro problema; as bibliotecas escolares têm um acervo muito bom, livros novos, mas têm falta de bibliotecários. Muitas vezes você chega numa escola e as caixas estão ainda fechadas… Então eu me pergunto: será que vamos depender de censuras para que as pessoas cheguem aos livros? Qual é o passo anterior que a gente tem que fazer para que a censura não aconteça? Isso me preocupa.

Apesar de todos estes percalços a literatura negra está, finalmente, a impor-se no Brasil, as histórias dos negros estão finalmente a ser contadas?
A literatura brasileira sempre foi um território masculino, branco, ligado ao poder, classe média alta. Na última década, há uma constelação de escritores negros, como Conceição Evaristo, Itamar Vieira Júnior, Ana Maria Gonçalves. Por outro lado, há também uma certa tentativa, por parte de alguns setores da sociedade,  de classificar a nossa literatura como uma “literatura identitária”, uma “literatura menor”, uma literatura que trata de questões muito específicas mas que não é universal. É uma crítica que tem aparecido recorrentemente. A questão é que nós estamos agora trazendo histórias que por muito tempo não foram contadas. Um outro ponto de vista. E talvez isso acabe incomodando também.

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