“As mãos livres do PS são os pés atados de quem trabalha”. A frase, que surge no remate de um vídeo publicado nas redes sociais do PCP, vem acompanhada de uma música sinistra e de uma fotografia que, para os comunistas, fala por si: António Costa e António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal, a cumprimentarem-se, sorridentes. No mesmo vídeo, ouve-se Saraiva negar que esteja “apreensivo” com a maioria absoluta do PS e contar que Costa lhe costumava dizer que estava “refém” dos partidos de esquerda – liberto desse “constrangimento”, explica, é preciso “aproveitar” a legislatura do PS absoluto para abrir “um novo ciclo económico”.
O vídeo foi publicado esta terça-feira, dois dias depois de o PCP ter sofrido o pior resultado eleitoral desde 1976 e do PS ter conseguido atingir a maioria absoluta. Menos de 24 horas depois, surgiu outra publicação nas redes comunistas. A ideia não é muito diferente: um recorte das notícias que dão conta da satisfação de patrões e agências de rating com o resultado do PS e a confirmação da morte da geringonça; a descrição do PS, junto ao PSD e “sucedâneos”, como representante eleito do “grande capital”; e um apelo: para “travar” a exploração e a precariedade, é preciso reforçar “a resistência e o contra-ataque”.
A sucessão de mensagens a pedir mais “luta” e mais “resistência” pode parecer desalinhada com a narrativa do PCP em campanha – foram duas semanas a apelar à “convergência” e a desafiar o PS a voltar a negociar à esquerda – mas mostra a nova fase do discurso comunista. Consumada a maioria absoluta do PS, o tal objetivo que os comunistas sempre acusaram António Costa de querer atingir, parece terminado o período de influência do PCP sobre a governação e cada vez mais pequena a sua margem de intervenção parlamentar (caiu de 10 deputados para seis e o PEV não elegeu ninguém). Solução? Voltar à “luta de massas”.
Mesmo assim, no PCP assegura-se que voltar à “luta” não tem é exatamente uma decorrência do encolhimento da bancada, nem exclusivamente uma forma de “sobrevivência política” — os protestos voltariam sempre às ruas em cenário de maioria absoluta, fossem “seis ou vinte deputados”, frisa fonte comunista. Com o PS a ver-se absoluto e com o dinheiro associado ao Plano de Recuperação e Resiliência, mais razões para intensificar o tal contra-ataque.
Foi isso mesmo que Jerónimo de Sousa explicou esta quarta-feira, numa conferência de imprensa marcada para dar nota das conclusões da primeira reunião pós-eleitoral do Comité Central. A tal convergência pedida durante a campanha arrumou-a com um dos seus habituais ditados: “A casamentos e batizados só se vai se se for convidado”. O entendimento do PCP não é que o PS absoluto tenha vontade – já que necessidade, matematicamente, não tem – de voltar a ‘casar’, e Jerónimo e Costa ainda não falaram desde as eleições, esclareceu. Por isso, e perante um PS que vê com “condições reforçadas” de aplicar uma “política de direita”, sem estar condicionado pelos acordos à esquerda, explicou que o PCP terá disponibilidade para aprovar o que for positivo e tentar chumbar o que for negativo no Parlamento, sem mais.
Depois, o segundo passo neste raciocínio: apesar da maioria, “com todo o carácter negativo que tem”, continua o “pulsar da vida”. Sem anunciar que os sindicatos voltarão em força às ruas – isso é com os “trabalhadores”, explicou Jerónimo – usou outras formulações: é preciso uma “ampla participação nas lutas em curso e programadas”, dinamizando “a luta de massas e o esclarecimento”. Pelo lado do PCP, o comício marcado para 5 de março, por ocasião do centenário do partido, já servirá como prova de força.
CGTP avisa: é preciso “intensificar reivindicações”
Os sindicatos até já se tinham adiantado: na segunda-feira, em resposta à Lusa, a secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha – que é militante do PCP e já foi por várias vezes candidata a deputada pelo partido – defendia que seria preciso “intensificar a ação reivindicativa para exigir respostas aos problemas dos trabalhadores e do país”. E dizia mesmo que esta seria a “prioridade” da Intersindical, uma vez que a maioria absoluta será uma forma de o PS, agora sem “quaisquer amarras”, “continuar a tomar opções que não são favoráveis aos trabalhadores”.
No comunicado emitido pela CGTP esta terça-feira, considerava-se que, “face a uma maioria absoluta que tenderá a elevar a resistência do PS na resolução dos problemas” será “ainda mais necessária a organização, unidade e luta dos trabalhadores”. Era, aliás, o mesmo comunicado em que os sindicatos criticavam a “falsa ideia de que se estava a eleger o primeiro-ministro” nestas eleições, assim como a publicação de sondagens que colocavam Costa taco a taco com Rui Rio e que “não se vieram, nem de perto nem de longe, a confirmar”, relacionando esses fatores com a redução de votos no PCP (o partido com mais influência na CTGP) e no BE.
No comunicado do órgão máximo do PCP entre congressos, leem-se apelos semelhantes: para o caminho que o PCP terá de fazer agora, menos centrado na frente parlamentar (que teve uma centralidade muito agudizada pelos tempos de negociação da geringonça, ou, em PCPês, da “nova fase da vida política nacional”), “exige-se a participação e ampla mobilização dos trabalhadores e do novo”; precisa-se de um “alargamento da sua [do PCP] influência e ligação às massas”; de “ampliar a luta”; e, em resumo, “desenvolver a luta de massas, unindo os trabalhadores e o povo em torno dos seus interesses e reivindicações”, já que o PCP já não estará sentado à mesa com o PS para fazer esses interesses avançar, Orçamento a Orçamento.
Nas contabilizações que se fizeram no final dos tempos de geringonça, em vários jornais, constatava-se que as greves e protestos não tinham parado durante esses anos – mas eram quase sempre setoriais, e não gerais, e também eram desconvocados com mais frequência do que nos anos da troika. Já havia, de resto, quem na ala esquerda do PS alertasse para essa tendência dos movimentos sindicais a voltarem em força às ruas. Antes do arranque da campanha, a socialista Ana Gomes lembrava na Vichyssoise, da Rádio Observador, que a geringonça não teria atingido os mesmos objetivos “se não tivesse tido também a paz social que ela implicou”. Nessa conversa, o cenário ainda era apenas um PS vencedor que não quisesse negociar com a esquerda – agora passa a ser um PS absoluto que não precisa de o fazer.
Mentiras, abusos, discriminação. O diagnóstico (externo) da derrota
Na nota do Comité Central também fica claro o diagnóstico que os comunistas fazem relativamente ao rombo eleitoral de domingo – e pouco terá a ver com erros próprios. Num parágrafo que arranca de forma particularmente críptica – “independentemente de ulteriores aprofundamentos e da consideração de insuficiências tendo em vista a sua superação” – o PCP elenca todos os fatores pelos quais considera ter sido prejudicado. E são todos externos.
Exemplos: a “operação levada a cabo a partir da dissolução da Assembleia da República” – operação em que implica tanto António Costa como Marcelo Rebelo de Sousa – para “favorecer a construção de um bloco central”, ajudada pelas sondagens; a “insistente mentira” na responsabilização do PCP por ter provocado a crise política e as consequentes eleições; a “abusiva apropriação” que o PS faz de medidas que aplicou, mas que foram propostas pelo PCP; a “promoção e favorecimento de outras forças políticas” por oposição à “discriminação da CDU” (embora o próprio partido admita que o Bloco de Esquerda teve muita exposição mediática e mesmo assim teve a maior quebra eleitoral da sua história); a realização da campanha em circunstâncias “únicas e particularmente difíceis” e a “instrumentalização do medo da pandemia”, dada a campanha de “proximidade”, porta a porta, que é característica dos comunistas.
No interior do PCP, admite-se que a opção do próprio partido de só comparecer nos debates contra o PS e o PSD — os outros não seriam transmitidos em canais de sinal aberto — começou logo a subtrair tempo de antena, uma opção assumida pelos comunistas, em protesto. Entre a “campanha de bipolarização” e o “medo da esquerda”, faz-se o resto das contas: os cerca de 350 mil votos a mais no PS vieram diretamente de eleitores de esquerda que votariam BE e PCP (perderam respetivamente 260 mil e 94 mil votos) não fosse a “pressão terrível” e o medo da direita e do Chega.
Esta quarta-feira, na sede do PCP, Jerónimo admitiu apenas que “a perfeição não existe” e que há dificuldades na adaptação “a novos meios, eletrónicos”. Mas, constatadas as perdas, o trabalho que os escassos seis deputados terão (“vão ter uma carga de trabalhos…”) e a ajuda que o “coletivo” terá de dar, resumiu, recorrendo a (mais) um ditado: “O PCP está em condições de fazer boa cara ao mau tempo”.
Jerónimo continua e “faz falta”
A mesma frase aplicar-se-á ao próprio Jerónimo, garantiu. Depois da série de complicações de saúde que afastaram o líder durante quase toda a campanha e um dos substitutos, João Ferreira, durante sete dias (ficou infetado com Covid-19), Jerónimo apareceu para garantir que não quer virar “as costas à luta” e voltou a tentar arrumar a questão da sucessão que tantas vezes lhe é colocada (e que já recebe ora com risos, ora com algum agastamento): “Estou em condições de afirmar que até o meu partido entender continuarei a assumir esta responsabilidade. Ninguém é eterno, mas a questão não está colocada”.
Aos jornalistas, Jerónimo não esclareceu se considera que a sua ausência na campanha prejudicou eleitoralmente o PCP, mas no partido há que m considere que esse fator pode ter complicado as contas: apesar da preparação dos vários quadros do PCP, em particular dos que o substituíram (João Oliveira e João Ferreira), Jerónimo continua a ser visto como um grande ativo, sobretudo no contacto com as populações, nas arruadas e na diferença anímica que isso traz à caravana.
Se o líder tinha voltado, na reta final da campanha, explicando que ali estava, poucos dias depois de uma operação a uma artéria, porque era “preciso”, desta vez reforçou a ideia, relatando o que os camaradas pensavam durante a sua convalescença: “Ele faz falta mas precisamos de que recupere sossegadamente”. Jerónimo, ainda que sinta uns “resquícios” a afetarem-lhe a saúde, já recuperou e diz que está pronto para a luta. Será bem diferente das que travou, entre o Parlamento e São Bento, desde 2015.