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Jessie Ware
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Jessie Ware

© Hugo Lima

Jessie Ware

© Hugo Lima

Jessie Ware acendeu o fogo no primeiro dia do Vodafone Paredes de Coura

Foi Jessie Ware quem mais aqueceu a noite no arranque do Vodafone Paredes de Coura. Antes, Dry Cleaning e Squid deixaram boas impressões, e os Yo La Tengo balancearam-se ente o tédio e o culto.

Há 30 anos que Paredes de Coura se diz com as letras todas. “Não é ‘Côra’, alerta um rapaz do staff, ferido com a ausência de uma vogal que tende a ser cruelmente silenciada quanto mais para sul descemos no país. Esse mesmo país que há 30 anos nem sabia que Paredes Coura existia, não fossem uns miúdos, entediados até aos ossos, terem tido a peregrina ideia de trazer o rock para a sua vila.

Com o rock vieram os melómanos mais acérrimos, aqueles que não se importavam de andar horas e horas às curvas pela nacional para chegar a um sítio perdido no mapa que lhes prometia um bocado de terra para acampar, umas cervejas frescas e a dose certa de mosh para desentorpecer os corpos.

Alguns aqui estão, trinta anos volvidos, já com filhos a dançar na relva, cabelos grisalhos cheios de histórias para contar, talvez revivendo o entusiasmo que foi ver em 1997 a primeira grande confirmação estrangeira a pisar as margens da Praia Fluvial do Taboão: na altura, os Rollins Band puseram João Carvalho, um dos fundadores e diretores do festival, a chorar. É bem provável que não tenha sido o único.

Paredes de Coura é feito de lágrimas e de sorrisos. Há quem lhe chame o festival dos afetos, onde o galego e o português se misturam num abraço raiano, onde todos os sotaques cabem dentro de um vale que muitos juram ser sagrado, enquanto proclamam que “Coura é amor”.

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Dry Cleaning e o Yo La Tengo: curiosidade e monotonia ao pôr do sol

Florence Shaw ter-se-á apercebido disso mesmo. Apresentou-se em palco de cabelo monotonamente liso até à anca, a palidez típica de alguém vinda da ilha de Shakespeare, os lábios pintados de negro e os olhos pasmados como a mais intrigante personagem de um filme de Tim Burton. A cada tema que interpretava no seu spoken word habitual, embrenhava-se num transe de gato à janela, observando desinteressadamente o mundo dos humanos, do qual apenas era sacudida pelos gritos de entusiasmo das primeiras filas.

“Oh”, suspirou num solavanco, depois da entrada com “Kwenchy Kups”, parecendo que até então nem se tinha dado conta dos corpos que se espraiavam colina acima, para a ver a si e aos seus Dry Cleaning. “Sentimo-nos privilegiados por abrir o palco principal de uma edição tão especial”, disse com um sorriso carinhoso, tão palpável como o cheiro a relva fresca que emanava do recinto.

O encanto dos Dry Cleaning está, em parte, neste charme entre o que é dito sem ser dito, na husky voice de Florence Shaw

© Hugo Lima

Afinal, ela estava atenta aos detalhes, como o está em cada verso que escreve, apontamentos aparentemente banais da vida comum, incisivos na sátira que transpiram. O encanto dos Dry Cleaning está, em parte, neste charme entre o que é dito sem ser dito, na husky voice de Florence, mas também no dedilhar firme e constante do baixo, herdeiro do post punk.

A banda saiu de cena com um “I love you, wonderful crowd”, deixando Florence a mirar o público como se lhe fosse tirar uma polaroid, para afixar na parede do quarto e contar aos amigos aquela tarde em que se enamorou de um festival no Alto Minho. Quem os viu sem os conhecer, provavelmente voltará a casa com vontade de se esticar no sofá e de se alongar em Stumpwork (2022) e New Long Leg (2021), dois belos álbuns de rajada, diga-se de passagem.

Do conforto do sofá parece terem vindo os Yo La Tengo, teimosos a sair de uma letargia que ameaçava pôr-nos todos a bocejar. A noite caía, a pele começava a arrepiar e Ira Kaplan, Georgia Hubley e Dave Schramm tardavam em pegar fogo ao recinto. Tocaram músicas mais velhas do que alguns de nós (fizeram questão de mencionar), como “The Summer”, do álbum Fakebook (1990), e outras bem recentes, como “Aselestine” e “Sinatra Drive Breakdown”, do novíssimo This Stupid World (2023).

A espaços, lá surgia um motivo que nos fazia sacudir a cabeça, fosse ele “Fallout”, a derradeira “Pass the Hatchet, I Think I’m Goodkind” ou a dança de posições em palco deste trio de Nova Jersey, qual equipa de futsal a fazer um carrossel de instrumentos. Os reverbs infindáveis de Ira Kaplan na guitarra, rodando-a no ar, roçando-a no amplificador, iam enchendo as medidas aos fãs, entediando quem pouca afinidade tinha com estes veteranos do rock. A verdade estará algures no meio das duas perceções, mas, factualmente, os Yo La Tengo estiveram longe de ser memoráveis.

Do conforto do sofá parece terem vindo os Yo La Tengo, teimosos a sair de uma letargia que ameaçava pôr-nos todos a bocejar.

© Hugo Lima

Tão longe que abandonámos mais cedo o concerto para falar com João, Sara e Maria. Ele tinha 40 anos, elas 6 e 7, respetivamente. “Somos primas”, disseram prontamente, esclarecendo qualquer confusão de parentesco. Era a primeira vez que vinham a um festival e do que mais estavam a gostar era das músicas. “De quais?”, perguntámos intrigados, ao que elas responderam “de todas”. Pronto, não sejamos picuinhas.

João, que já não vinha a Paredes de Coura desde 2009, foi mais cirúrgico na sua análise: estava aqui pelos Dry Cleaning. Cumprida a missão, preparava-se para abalar para o Porto. Longe vão os tempos em que vinha sem preocupações, como aquele 2005 em que rumou a Coura cego pelo eterno amor aos Pixies. Agora havia que deitar as crianças e abraçar mais uma sexta-feira de trabalho. Rotinas de adulto.

Frank Carter lançou os foguetes, mas foram os Squid que apanharam as canas

Não sabemos se foram as rotinas de adulto ou talvez a concorrência aguerrida (de notar que há um Kalorama à vista e que a época dos festivais já vai longa), mas a verdade é que já não nos lembrávamos de um primeiro dia de Paredes de Coura com tantas clareiras na plateia como o dia de hoje. Ganha-se em conforto, lá isso é uma maravilha: não há filas, há espaço para sentar, rebolar, cirandar à vontade com um copo de cerveja na mão, sem o entornar. Há tanto espaço que nem parecia estarmos perante uma edição histórica. Sentimos falta de uns encontrões inofensivos, daqueles que friccionam, mas não tombam, o necessário para deixar os eletrões malucos no ar. Coura precisa de nervo para se cumprir, mas neste dia a moleza levou a melhor.

Os Frank Carter & the Rattlesnakes pouco se importaram com isso, como com as duas falhas de som que se sucederam logo no início do concerto. Ainda nos procurávamos posicionar na relva (tanto espaço livre também dá azo a muitas indecisões), quando Carter trespassou as grades para caminhar em cima do público, como é apanágio seu. Durante uma hora, fartou-se de falar, como se estivesse num pub inglês em dia de jogo decisivo, como se ele próprio fosse Jack Grealish, eufórico depois de conquistar a Premier League pelo Manchester City.

Durante uma hora, Frank Carter fartou-se de falar, como se estivesse num pub inglês em dia de jogo decisivo

© Hugo Lima

Regado a álcool desde o meio dia, fez questão de frisar (e o devido agradecimento ao staff dos bares, do catering e a todos quanto contribuíram para que chegasse ébrio e feliz a palco), Frank Carter foi vomitando o seu indie-rock temperado a punk sob um fundo amarelo garrido, com ganas de nos agarrar pelos colarinhos. Uma tentativa de louvar, no meio de convocatórias de mosh pits feministas e de um momento de salto coletivo que causou uma onda de corpos no ar. Porém, ficamos com a sensação de que os Frank Carter & the Rattlesnakes soam, muitas vezes, a uma cópia da cópia do rock deliciosamente mais sujo que já se fez por terras britânicas. Sendo assim, preferimos as versões originais (venham de lá os Arctic Monkeys de Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not [2006]).

Uns minutos mais tarde, os Squid mostravam que não era preciso muito fogo de artifício nem muitas garrafas de whisky para fazer a festa. Cinco rapazes felizes, gozando do palco como se goza de uma sandes de enchidos minhotos da Quinta dos Fumeiros (cabeça de cartaz incontornável da zona de restauração de Paredes de Coura) bastavam-se a si e ao prazer da improvisação para entrarem numa galáxia aparte.

Uma viagem espacial, de rock psicadélico com laivos de LCD Soundsystem e trompetes magrebinas deixaram o público em delírio. Só uma mudança interstelar drástica é que poderá fazer com que estes miúdos não sejam grandes daqui a uns anos. Talento não lhes falta, vontade também não e nós, que tivemos que abandonar o concerto mais cedo, ficámos a salivar pela próxima dentada.

Bem-vindos à festa de Jessie Ware

O motivo da nossa demanda tinha um nome, bem explícito no fundo do palco principal, em contornos rosa, azul, roxo, todas as cores que uma bola de espelhos pode refletir: Jessie Ware, vestida de prateado, ela própria uma bola de espelhos. Ware era o nome forte deste primeiro dia de festival e a aposta não desiludiu. A única desilusão de que nos podemos queixar, a espaços, foi o som roufenho das colunas, incapazes de aguentar uma boa tarola e insuficientes para dar a projeção devida às back vocals.

Deambulando entre What’s your pleasure (2020) e That! Feels Good! (2023), os dois últimos trabalhos que elevaram a britânica a diva da disco, Jessie Ware deu-se totalmente ao concerto, ao “festival mais bonito” onde se apresentou, comentou a certo ponto, confidenciando que passou a última semana em Portugal, a fazer férias com a família. “I love you”, como duvidar de tal declaração depois desta partilha?

Em palco, foi-se emancipando e, simultaneamente, diluindo na dança protagonizada pelos seus dois bailarinos e back vocals, cúmplices de Ware neste jogo de prazer e de libertação. Juntos, formavam um corpo só, fluído e sedutor. Não faltou Chaka Khan (“I Feel For You”) e Cher (“Believe”) no reportório, referências óbvias que se entrelaçaram sem esforço nas mais aplaudidas “What’s Your Pleasure” (e Ware agarrando um microfone chicote) ou “Spotlight”.

Jessie Ware, vestida de prateado, ela própria uma bola de espelhos.

© Hugo Lima

A festa ia boa, praticamente sem pausas entre canções, soltando vergonhas e ancas enferrujadas. Tão boa que foi com espanto que vimos Jessie Ware abandonar o palco 50 minutos depois do início do concerto. “Free yourself” levou o público à loucura e tudo o que se pedia era que aquilo não parasse nunca, don’t stop baby. Mas parou e ficou a sensação de um certo abandono, ainda para mais quando faltavam 40 minutos para os Bicep surgirem em cena.

Houve quem fosse fazendo círculos na relva, com os pés, esperando acelerar as voltas do relógio com esse devaneio, outros que se encostaram a um canto, arriscando uma batalha dura com o frio e com o sono e ainda os que foram matar o tempo morto com uma tripa do Zé da Tripa, aquela dose de açúcar recomendada para levar o cartaz até ao fim, até ao derradeiro Nuno Lopes.

Para os resistentes, os Bicep serviram uma pratada de techno, house e drum and bass do mais refinado e potente que a música eletrónica nos pode dar. Não faltaram luzes a furar o céu, a dar vida às árvores de Paredes de Coura, que tantas histórias teriam para nos contar se os seus ramos falassem. Amanhã voltaremos aqui, para lhes ouvir as confidências e os sussurros mais íntimos. E pelo meio, teremos A Garota Não, Tim Bernardes, The Walkmen, Loyle Carner e Fever Ray.

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