Muitos podem almejá-lo, mas poucos são aqueles que conseguem que uma das suas iniciais faça parte da história. Jim Abrahams — a vogal do trio ZAZ — foi uma dessas pessoas. Ao lado dos irmãos David e Jerry Zucker, foi responsável por marcar indelevelmente o rumo da comédia nos anos 80 com filmes com mais piadas do que minutos, como O Aeroplano e Aonde É que Para a Polícia?. O realizador e guionista norte-americano morreu esta terça-feira aos 80 anos, confirmou o filho Joseph à revista Variety, vítima de uma leucemia com que lidava há duas décadas.

Se é verdade que a paródia já existia enquanto género praticamente desde o nascimento do cinema, é mais ainda que os ZAZ — a par de Mel Brooks, outro génio do humor — vieram aperfeiçoá-la. Hoje conspurcado por anos de spoofs preguiçosos e mais preocupados em fazer referências óbvias àquilo que parodiam do que em ter graça, este tipo de filme definiu-se no período áureo do trio pelo absurdo, por atores de cara séria a contar as piadas mais imbecilmente engraçadas e pela ternura de fazer pouco sem maldade. “Nós vimos como as coisas eram levadas a sério, especialmente em meios como a televisão e os filmes. Os nossos instintos disseram-nos que não preciso levar as coisas assim”, recordaria Abrahams numa entrevista à revista Salon, em 2023.

Para contar a história e o percurso de Jim Abrahams é preciso fazê-lo com a presença dos irmãos Zucker, pelo menos na primeira fase da sua carreira, e isso deve-se ao facto da sua parceria ter uma origem idêntica à de tantas outras de sucesso: conheceram-se em miúdos e ficaram amigos desde então, estudando na mesma escola e universidade no estado do Wisconsin. Foi nesse contexto, onde encontraram o humor como escape aos tempos politicamente conturbados dos anos 60 e 70 nos EUA, criando um grupo de escrita de comédia, que mais tarde se transformaria na trupe teatral Kentucky Fried Theater, formada em 1971.

Foi aí que a fórmula de humor estabeleceria as suas traves-mestras: sketches improvisados e paródias a anúncios e programas de televisão, numa lógica que tinha como base subverter as expectativas do público pela troça e o chiste, sem politizar nem polemizar. “Havia vários grupos naquela época que faziam piadas políticas e havia muitos alvos fáceis e óbvios, mas esse nunca foi o nosso instinto. Foi sempre assistir a um filme e dizer: isto não é uma bocado pateta?’”, recordou Abrahams, citado pelo The Hollywood Reporter.

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Tal foi o sucesso que Madison, a cidade onde se encontravam sediados, provou ser pequena de mais para as suas ambições, com os três a mudarem-se para Los Angeles. Foi aí que travaram contacto com Hollywood, quando um jovem realizador chamado John Landis foi a um dos seus espetáculos. Landis convenceu-os a pegar no conceito e escrever um guião para um filme que ele próprio realizaria, de onde resultou The Kentucky Fried Movie, de 1977.

O resultado — um conjunto de sketches de humor negro algo desconexos entre si — tinha tudo para correr mal, mas acabou por ser um pequeno sucesso que ajudou a lançar a carreira de todos os envolvidos: Landis tornar-se-ia no vulto por trás de comédias como A República dos Cucos, Blues Brothers e Os Ricos e os Pobres, ao passo que ao trio bastaria o seu filme seguinte para entrar no panteão da comédia, na sua estreia como realizadores.

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Jim Abrahams, David Zucker e Jerry Zucker durante o Festival de Deauville, a 8 de setembro de 1980, França. (Fotografia de Bertrand LAFORET/Gamma-Rapho via Getty Images)

Um bilhete de avião para a eternidade

“Em 1980, não era preciso um letreiro para saber onde é que O Aeroplano estava em exibição — dava para ouvir as gargalhadas do parque de estacionamento. Foi um fenómeno cultural e uma das mais transformadoras comédias da história do cinema”, lê-se numa entrevista do trio à NPR em 2023 por ocasião do lançamento do livro escrito pelos três que detalha a história deste filme.

Como recordariam ao longo de mais de 40 anos em várias conversas e depoimentos, Abrahams e os Zucker depararam-se com a ideia para O Aeroplano a partir da mesma exata rotina que tinham para os seus espetáculos de comédia: deixar um gravador de vídeo a trabalhar toda a noite, “porque era a essa hora que passavam os anúncios e os programas de televisão mais estúpidos”.

Foi dessa forma que encontraram Zero Hour!, um filme de 1957 onde um piloto com stress pós-traumático é forçado a confrontar os seus medos e aterrar um avião após os pilotos ficarem incapacitados por intoxicação alimentar. Se esta sinopse parece familiar, é porque a sua estrutura é exatamente a mesma de O Aeroplano — de tal forma que, para evitar processos, o trio comprou os direitos deste filme por 2500 dólares. A grande diferença é que a comédia dos ZAZ trocou toda a pretensão e seriedade do original por uma carga imparável de piadas a parodiá-lo, de tal forma que admitiram ter de esticar algumas cenas para dar aos espectadores tempo para rir antes do próximo momento engraçado.

Referências a filmes do passado, humor físico e visual, trocadilhos, escaladas retóricas absurdas, piscadelas de olho diretas ao espectador — tudo isto encontra-se em barda ao longo de 87 minutos de filme. Mas não é apenas a variedade e qualidade das piadas que explica o sucesso de O Aeroplano, em cujo guião os três laboraram ao longo de cinco anos, num projeto que já precedia The Kentucky Fried Movie e que foi captado pelo radar da Paramount. Um fator decisivo também é o facto de nenhum dos atores do elenco ser tradicionalmente de comédia, sendo-lhes pedido para que encarassem o material como se não tivesse piada.

“Pedíamos ‘não o faças só com seriedade, age mesmo como se não soubesses que estás numa comédia’. É que há uma diferença — quando as pessoas acham que estão a atuar normalmente, na verdade não estão. Estão a dar-lhe um toque diferente porque querem ser engraçados. Como estão numa comédia, acham que devem ser engraçados. Parte do desafio quanto ao qual fomos muito rigorosos foi precisarem de ser ingénuos. É aí que para nós está o cerne do humor”, contou Jerry Zucker nessa conversa à NPR.

“A maior dificuldade foi escolher atores sérios em vez de comediantes. No início, a Paramount resistiu a esta ideia. Não percebiam muito bem por que razão queríamos fazer algo assim. Havia algo de muito cativante naqueles atores a parodiarem-se no filme. No fundo, já tinham tido carreiras completas e estavam a rir às suas próprias custas”, dissera já Abrahams numa entrevista em 2019.

Foi dessa forma que Robert Hays, Lloyd Bridges, Peter Graves e Robert Stack foram responsáveis por algumas das performances mais engraçadas da história do cinema — mesmo quando encararam o projeto com reticências. E foi assim que Leslie Nielsen — até então ator dramático de carreira modesta no cinema e na televisão — teve uma viragem lendária como ator de comédia, descobrindo-se especialista em ser engraçado com a cara mais inexpressiva possível.

Todas as hesitações compensariam no fim: O Aeroplano rendeu 171 milhões de dólares a partir de um magro orçamento de apenas 3,5 milhões. Além disso, não só foi um sucesso junto da crítica àquela época — recebeu uma nomeação para Melhor Filme – Musical ou Comédia nos Globo de Ouro e outra para Melhor Argumento nos BAFTA —, como tornar-se-ia numa das mais influentes comédias de sempre, de tal forma que em 2010 foi selecionado para preservação no National Film Registry da Biblioteca do Congresso dos EUA como sendo “culturalmente, historicamente ou esteticamente significativo”.

O ator Leslie Nielsen sentado num carrinho de choque durante as filmagens do êxito “Aonde É que Para a Polícia” em Santa Monica, Califórnia, em 1988. (Fotografia de George Rose/Getty Images)

Aonde é que parou Abrahams?

Com o êxito de O Aeroplano, o trio foi convidado para escrever e realizar a sequela, projeto que prontamente recusou não só por temer diluir a magia do original, como também por subitamente deparar-se com as suas limitações enquanto argumentistas. Se era fácil pegar na estrutura de um filme original e desconstruí-lo de forma humorística, era bem mais difícil fazê-lo com uma história original. “Não percebemos bem a importância de uma história e lutámos para inventar uma durante algum tempo. Tivemos muitas más ideias”, admitiu Abrahams em 2014.

No entanto, a inspiração chegou mesmo, e ao longo dos anos 80, o trio seria responsável por Ultra Secreto — paródia de 1984 aos filmes da II Guerra Mundial e aos musicais de Elvis Presley, contando com um Val Kilmer em início de carreira — e Por Favor, Matem a Minha Mulher — comédia negra de 1986 com Danny DeVito e Bette Midler que fugiu do molde farsante dos filmes anteriores, sendo adaptada de um conto de O. Henry. Foi, todavia, um projeto malogrado aquele que se metamorfosearia no outro êxito gigantesco dos três.

Logo após O Aeroplano, em 1982, Abrahams e os Zucker quiseram estrear-se na televisão ao conceber uma paródia às séries policiais. Contando com Leslie Nielsen no papel de Frank Drebin, detetive tão corajoso e sortudo quanto pateta e idiota, Police Squad manteve a qualidade — foi mesmo nomeada a dois Emmy — mas não convenceu a estação, a ABC, que a cancelou ao fim de seis episódios.

Das cinzas deste projeto morto quase à nascença, porém, nasceu Aonde É que Para a Polícia? em 1988, adaptação para o grande ecrã das desventuras de Drebin. Apesar dos três terem trabalhado no guião e de ser um filme alegadamente tão ou mais engraçado que O Aeroplano — talvez aperfeiçoando o que esse filme criou —, a realização ficou apenas a cargo de Abrahams. Seria, de resto, o último filme onde os três trabalharam juntos — nenhum regressando sequer para as duas sequelas desta saga de filmes.

A separação não foi acrimoniosa, já que os três continuaram amigos próximos, antes tendo sido causada por diferenças criativas e financeiras. “Ao fim de algum tempo, sentimos que éramos muitos tipos sentados na mesma cadeira”, revelou David Zucker à revista Premiere em 1988. Além disso, nenhum estúdio estaria disposto a pagar três salários a três realizadores de um mesmo filme, pelo que Abrahams e os irmãos Zucker tinham de dividir uma única remuneração entre si.

Após a separação, Abrahams ainda encontraria sucesso assinalável a solo, mas não sem antes registar alguns tropeções medianos enquanto realizador de Big Business, em 1988, e Roxy – O Escândalo da Verdade, de 1990, este último uma comédia dramática com Jeff Daniels e Winona Ryder. Foi na entrada dessa década que viu em Pat Proft — com quem já tinha colaborado em Aonde É que Para a Polícia? — o seu parceiro de escrita e em Charlie Sheen a sua musa, como Nielsen o fora também.

No seu grande regresso à paródia como género, desta feita a Top Gun, Ases Pelos Ares, de 1991, foi o seu último grande projeto de sucesso no cinema, tal como a sequela de 1993, Ases pelos Ares 2, que fez pouco de filmes como Rambo II e Apocalypse Now. Ambos foram sucessos de bilheteira, mas o seu projeto seguinte, Mafia!, de 1998, foi um fracasso em todos os sentidos e Abrahams afastar-se-ia quase permanentemente de Hollywood, exceção feita ao seu reencontro com David Zucker em 2006 ao ajudar a escrever o guião de Scary Movie 4.

O diagnóstico de uma leucemia abalou a sua vida e carreira, mas não foi o único momento a desviar a sua atenção para longe do cinema e da televisão. Pai de três filhos, um deles, Charlie, descobriu-se sofrer de uma forma severa de epilepsia que apenas viria a ser controlada através de uma dieta cetogénica. Mais do que motivá-lo a produzir e realizar um telefilme em 1997 com Meryl Streep no papel principal chamado …First Do No Harm, esta experiência levou Abrahams a co-fundar a Charlie Foundation to Help Cure Pediatric Epilepsy com a sua mulher.

Esta dimensão da sua vida — tal como a amizade e a parceria criativa que nutriu — seria recordada por Jerry Zucker numa declaração partilhada com a revista Rolling Stone. “Ele tinha uma tendência rebelde que o motivava. Penso que talvez muitas pessoas tenham duvidado dele quando era criança. Mas à medida que a sua vida se desenrolou, esse tornou-se o seu superpoder. Nos seus filmes, isso deu-lhe um sentido de humor brilhante e mordaz. Quando o seu filho Charlie foi diagnosticado com epilepsia, rejeitou o que todos os médicos lhe diziam e encontrou uma cura pouco conhecida chamada dieta cetogénica. Charlie está livre de convulsões desde então. Mas não se ficou por aí. Jim e a sua esposa, Nancy, fundaram a Fundação Charlie e levaram a dieta cetogénica para o mundo. O Jim trouxe saúde, humor e amor à vida de muitas pessoas. Era o nosso parceiro, o nosso amigo e o nosso herói. Quando lhe perguntei se acreditava na vida após a morte, encolheu os ombros e disse: ‘Tive uma vida boa. Não me arrependo’”, lê-se. Mais importante, porém, só talvez a forma como Zucker se dirige a Abrahams na sua mensagem ao mundo: “o nosso terceiro irmão”.