Quando era miúda, Joana Marques enfiava-se no quarto para mergulhar na escova de dentes de Teresa Guilherme, com morada fiscal na boa velha televisão pop portuguesa dos anos 90, enquanto o seu irmão, o “bom aluno” lá de casa, colocava os headphones para se prender ao Nick Cave. A guionista, transformada numa estrela maior do humor, era, afinal, um bicho do mato, do contra, que fazia o seu caminho na escola agarrada às letras, ao gozo envergonhado contra os professores e aos reality shows. Veio, entretanto, um curso de Ciências da Comunicação, mas o guionismo levou-a até às Produções Fictícias, caldeirão da escrita humorística, com Gato Fedorento à cabeça, mais Eduardo Madeira ou Nuno Markl em ascensão. Queria escrever, escrever, escrever, dos flagelos da droga às peças (censuradas) de Natal. Joana Marques não queria nada com o jornalismo, nem com o ambiente universitário. A escrita era a sua arma, refúgio e desculpa perfeita para uma anti-social, mulher, ácida, mordaz, fazer parte das regras do jogo. Fê-lo quase sempre nos bastidores. E quase sempre sem pensar muito no que andava a fazer. “Fui um bocadinho à experiência em tudo. Como nunca tive plano e isso funcionou, o plano é manter-me sem um. Porquê mudar a receita?”, diz numa longa conversa com o Observador nas instalações da Rádio Renascença.
Entretanto, chegam, em 2012, os “Altos e Baixos” no Canal Q ao lado de Daniel Leitão, seu marido. O programa bomba viraliza e arranja chatices ao pequeno canal de humor. Porque gozar com celebridades, tirar-lhes o tapete, mostrar o ridículo da nata da nata deixava muita gente chateada. Era, diga-se, extremamente desagradável. Pois bem, Joana Marques não foi de modas e foi parar à Antena 3, deu o nome da sua rubrica à expressão que mais brotava dos comentários aos “Altos e Baixos”. Mais uma vez, a humorista fazia tiro ao alvo a todos os que se levavam a sério (ou que lhe davam graça), de cantores pimba a youtubers.
Entre 2007, data oficial em que se torna guionista — e é o que diz no seu novo livro “Apontar É Feio”, com crónicas suas do Jornal de Notícias e do Observador — e 2022, Joana Marques saltou para a RR, viu o seu podcast chegar ao topo, esgotou Coliseus em setembro, está na equipa de guionistas do programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” de Ricardo Araújo Pereira, é cronista na revista Visão e jurada no programa “Ídolos”, da SIC. Colecionou, coleciona e colecionará uma lista de haters, reclamações, escárnio e mal dizer. E muitos fãs. Tudo isto não lhe dá tempo para ler sequer um livro. Talvez nas férias. E tudo só a deixa um bocadinho menos anti-social do que era antes, quando passava horas a consumir a fast-food da televisão. “O trabalho que tenho não bate certo com a personalidade que tenho. Há quem adore ser o centro das atenções, nada contra, e não a conseguem ter. Eu é ao contrário. A atenção é boa, sim. Mas não gosto de entrar num sítio e sentir que está uma pessoa a olhar para mim.”
No outro dia vi o “Supernature”, do Rick Gervais, que mais uma vez foi acusado de ser transfóbico. Basicamente, de fazer bullying aos transexuais. Há gente nas redes sociais a acusar a Joana do mesmo por causa das pessoas com quem brinca no “Extremamente Desagradável”. Como reage?
O bullying tem servido como acusação um pouco despropositada, sabendo nós o que é o bullying. Não tem grande sentido, não me parece sequer parecido. Chamam bullying a um género de piadas que são sobre pessoas específicas num determinado dia. Se o fizesse durante 15 dias, aí já encontrava uma semelhança. Era uma obsessão. O podcast parte sempre de algo que uma pessoa fez, não de uma embirração pessoal. Nunca é. O bullying, que associamos mais às crianças ou que existe até em locais de trabalho, não tem nada a ver com isto. É repetido. É sempre a mesma vítima. No humor também se fala em vítima, meio a brincar. Também não me parece que faça sentido se se falar a sério. Isso acaba por desvalorizar os fenómenos sérios e graves. Chamar bullying a piadas é desvalorizar o bullying. É como às vezes chamar racismo àquilo que não é. No fundo, estás a atribuir uma conotação racista a um apontamento qualquer.
Porque a Joana não tem essa intenção.
Haverá uma definição técnica para bullying, os psicólogos saberão. Tem a ver com identificar uma vítima e persegui-la. O miúdo é atacado recorrentemente. É gozado por caraterísticas físicas. No nosso tempo havia — não lhe chamávamos isso, mas havia. Porque é o gordo, porque tem óculos. Eu não gozo com as pessoas por causa disso. Estou sempre a avaliar um momento específico. A pessoa pode não gostar, mas não é por aquilo que ela é. Não tem nada a ver com isso. É mais porque esta pessoa fez qualquer coisa na entrevista a que achei graça. As pessoas podem não achar. Pode ser algo tão básico como repetir a mesma frase. Ou achar que é convencida, são os casos que mais me atraem, fazendo uma retrospectiva. E isso é o contrário do bullying, parece-me. Não é que tenha de ser sempre assim. Às tantas tens dez alíneas que é preciso respeitar. Não penso assim tanto nisso. Se acho divertido, faço. Se não acho que tenha graça, não faço.
Não deixa de ser curioso que, numa altura em que todos estão mais sensíveis, um podcast como este seja o número um nacional. Já teve até feedback positivo de pessoas visadas…
Não penso muito nisso também. As pessoas que não gostam fazem muito mais barulho nas redes sociais. Quando gosto muito de uma série, não vou comentar. Gosto e pronto. Há mais sangue nas redes sociais. Não acho que seja mais do que as pessoas que gostam. Neste caso, o podcast tem bons resultados. O feedback, de uma maneira geral, é bom. Se as pessoas visadas não gostarem, é normal. Quanto mais ouvido for, mais reações terás.
E nesta onda do politicamente correto, do mais facilmente ofendido, é o humorista que tem de se adaptar ou o público? Ou isto é só uma moda?
É uma adaptação natural. Aquilo a que achamos graça agora não é o mesmo a que achávamos dantes. Só não pode ser imposto. Não pode haver uma entidade que decide com o que se pode ou não fazer humor. É um bocadinho perigoso. Há quem tenha essa visão: tudo aquilo de que não gosto, não deve existir. Em Portugal não temos casos de cancelamento, mas é uma nuvem que paira. Não acho que nenhum de nós esteja em perigo de ser cancelado. Nos EUA é outra conversa, mas aqui já não é só dizer-se que não se gostou. É que a pessoa devia ser cancelada. Porque não gosto, não deve existir. Quem diz isso quer muito que o mundo se adapte a si. Tanto no humor como noutras áreas. É uma ideia meio totalitária, de cada um de nós ser um pequeno ditador. Mas, lá está, só estou a pensar nisso neste momento da conversa. Não teorizo nada sobre isso, só me preocupa a parte prática.
O Ricardo Araújo Pereira, com quem trabalha, gosta, de facto, de teorizar sobre o humor. A Joana já nem tanto. Não interfere no trabalho.
Gosto muito de falar disto, nomeadamente com o RAP. Falamos disso em grupo no “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, ocupa muito tempo dos nossos almoços. Até porque vão surgindo novos exemplos. Interessa-me nesse sentido. No dia-a-dia não posso perder-me em grandes reflexões sobre isso. No “Extremamente Desagradável” há um texto novo para fazer todos os dias, se começar a refletir imenso… Talvez guarde para quando tiver a idade dele, a fumar um charuto. Quando tiver uma vida mais contemplativa.
Está a chamar velho ao RAP.
É [ri-se]. Espero lá chegar. Se calhar, em vez de um charuto, um cachimbo, para ser mesmo como um pensador. Agora não penso nisso, interessa-me ler ou debater sobre isso. Mas há pessoas que pensam muito mais nisso do que eu, nomeadamente no Twitter. Mais do que usufruírem de piadas de que realmente gostam.
Surpreende-a que os visados da sua rubrica a abordem, falem consigo e tenham até comentários positivos?
Sim, sim. Este clima crispado que existe, quando alguém é diferente, surpreende. Percebo que há quem tenha mais poder de encaixe. Claro que posso falar numa pessoa e não fazer ideia do que se passa na vida dela naquele dia. Que está a ter um dia péssimo e só lhe faltava estar alguém a falar nela durante dez minutos. Sei que não é agradável. No outro dia fui ver o espectáculo do John Cleese, onde ele fala neste tema de que a comédia não é para ser agradável. Não é para realçar o que está bem. A poesia faz isso bem. No humor não resultaria muito bem. As pessoas equiparam o humor a falar mal. Sim, no fundo é. É apontar a falha. Há quem ache que é só isso. Acredito que não.
Houve quem ficasse desiludido com o espetáculo. Não sei bem do que estariam à espera, já são 82 anos naquelas pernas.
Foi uma retrospectiva. Estava à espera disso mesmo.
É um pedaço de história.
Claro. Gostei da visão de alguém que começou a fazer comédia nos anos 60. Para ele ainda deve ser mais espantoso não poder dizer certas coisas que dizia na altura. Pensava que seria ao contrário, haveria cada vez mais liberdade. Se já acho a perspetiva do RAP interessante, imagine a do John Cleese… Ele assistiu a tudo. Um certo estilo de comédia começou com ele e acabou também com ele ainda vivo, de certa forma. Há quem diga que “já não se pode dizer nada”. Pelo menos em Portugal acredito que se pode dizer tudo. A reação é que é muitas vezes exagerada.
O tempo dele nem se irá adaptar.
Pois não. É outro tempo. As pessoas vão sempre com uma grande ilusão de ver os seus ídolos, o que é bom, mas é normal que com 80 anos a maioria de nós não surpreenda ninguém.
O que também está muito em voga é as celebridades, tal como os comediantes, pedirem desculpa por piadas passadas. Faria isso? E acha que retira força à piada?
Já vi alguns humoristas dizerem que nunca na vida vão pedir desculpa. Não consigo colocar a questão nesses termos. Imagine que faço algo que sai mesmo mal ou que estou a falar de alguém e essa pessoa tem cancro. Não sei. Há uma data de hipóteses para a coisa ter corrido mesmo mal e não vejo nenhum problema em pedir desculpa. Parece outra regra. É como noutra profissão qualquer. Se sentir que fui nociva, o que ainda não senti que tenha sido… Às vezes dizem “que horror o que ela fez”. Eu penso: estão a dar uma gravidade a isto que não tem. É uma rubrica na rádio que tem princípio, meio e fim, pode ter graça ou não. E é isso. Estar a falar como se fosse uma catástrofe é estar a dar-lhe um poder que não tem. Ninguém perdeu o emprego, não houve uma mudança significativa na vida da pessoa por algo que disse. Felizmente. Uma vez uma colega nossa, que na altura em que a visei não a conhecia, fez uma entrevista à Bárbara Bandeira. Tinha momentos meio bizarros, a Bárbara Bandeira repetia sempre a mesma expressão sem se aperceber. Acho graça a essas coisas da língua portuguesa. A apresentadora tinha a tendência de concordar com o que ela dizia, o que é algo que os entrevistadores costumam fazer.
É verdade, sim.
[ri-se]. Para preencher silêncios. E essa edição até achei que foi das mais inofensivas. Soube depois que a pessoa tinha ficado muito sentida. Era a primeira entrevista dela, teve logo o azar de eu ter visto e de ter achado graça. Percebo esse contexto.
E pediu desculpa?
Sim. Não por achar que fiz algo mau ou que não voltaria a fazer, foi mais de explicar a pontaria que tive. Expliquei que não era destrutivo, não queria dizer que ela não ia a lado nenhum. Não tinha nada a ver com isso.
A entrevistadora aceitou?
Sim. Foi uma história com final feliz. Claro que normalmente não tenho acesso a essa informação. Era impraticável. Tinha de ligar a cada um e perguntar se estava tudo bem. Não dá. Este foi um caso em que, por termos amigos em comum, não tive problema algum em pedir desculpa. Acho que não teve nada de mal, mas percebi que esta podia ser uma fase mais sensível, por ser o primeiro dia dela.
A comédia não tem limites, mas o comediante pode colocar algumas regras no jogo.
Tem de ser assim, cada um coloca as suas. É como a conversa dos limites do humor…
Coloquei essa conversa na mesa, mas de forma dissimulada.
Perguntou sem perguntar. Tenho brincado com isso porque ultimamente temos visto muita gente ofendida. Disse que tenho uma lista e que vamos adicionando os nomes. É a prova de que cada pessoa tem o seu limite. Se houvesse limites impostos pelas pessoas que se ofendem, a lista era interminável. A conclusão era: ninguém fazia humor. Vou dar um exemplo, que é meio rocambolesco e que costumo dar. Uma vez uma senhora ligou muito ofendida para aqui porque falei nos restaurantes que, em vez de usarem pratos, usam tábuas.
Mas não falou no restaurante dela?
Não, não. É a prova de que qualquer assunto pode ser ofensivo. Se se tentasse fazer algo que não ofendesse ninguém, seria missão impossível.
A Joana já gozou com meio mundo. Só quando estava na Antena 3 e se meteu com os YouTubers é que o cenário azedou um pouco mais, não?
Foi o episódio mais ouvido do podcast, de repente, porque foi parar ao YouTube. Um ano depois desse episódio, estava com uns amigos e o sobrinho não me queria cumprimentar. Ficou ofendido porque tinha gozado com os amigos dele. É aquela coisa infantil de achar que os YouTubers são nossos amigos. Achei muita graça. Essa foi a primeira grande polémica em que estive envolvida. Mas mostrou a dificuldade dos YouTubers em perceber que também são figuras públicas. Podem ser tão gozados como o José Sócrates. Estarem a ser visados em rubricas ou programas é sinal de que têm um reconhecimento e não são imunes a essa crítica.
Ou seja, até seria bom para eles.
Sim, e é estranho vindo de pessoas tão novas. Percebo que pessoas mais velhas, como o John Cleese se possam sentir de outro tempo. Ou o José Cid quando não é citado.
Mas o José Cid já tem um enxoval de polémicas.
Exatamente. Acho mais estranho miúdos com 16, 17 anos levarem-se muito a sério. Agora talvez já tenham percebido que faz parte.
Vamos ao livro, “Apontar é Feio”. Há ali muita brincadeira com expressões tipicamente portuguesas. Isso vem de onde?
A minha família é toda muito dada a letras. Fomos todos para humanidades, ninguém é bom a matemática. Sempre gostei muito de ler, é o primeiro passo para escrever. Hoje em dia, infelizmente, não leio tanto como gostaria. Passo o dia a ver vídeos e a ouvir podcasts para trabalhar. Sobram-me as férias. Mas sinto mesmo falta. Esse é o primeiro exercício para escrever o que quer que seja. Achava mesmo entusiasmante esse exercício de escrever, como quem gosta de matemática, junta números e dá outros. Havia concursos de composições, adorava. Tive sorte de perceber rápido do que gostava. Na quarta classe, nem sabia que havia a profissão de guionista, mas sabia que gostava mesmo de escrever. Tinha muito mais jeito para isso do que para as outras disciplinas todas.
Os professores e os pais também perceberam?
Na primária talvez, sim, mas mais tarde percebi, claramente, que só me interessavam as aulas de português. O trabalho de casa era ler, depois nos testes tinha de escrever. Na escola é um bom teste para perceber aquilo de que gostas ou não.
Não sabia era onde encaixava.
Não. No quinto ano dizia que queria ser escritora, depois descobri o guionismo e que o que era dito em televisão era escrito por alguém. Descobri que, afinal, o Herman José não dizia tudo da cabeça dele. Aí fui para a Restart fazer um curso de um ano, mais prático, de escrita de guião. Não foi tanto pelo que aprendi, mas acabei por conhecer pessoas…
… foi para as Produções Fictícias.
Sim. A coisa foi-se encarreirando.
Mas os textos eram sempre humorísticos, mesmo quando era nova?
Logo ao início não, claro. Não os reli, mas calculo que eram sobre as férias ou a primavera. Tenho um em casa dos meus pais sobre o flagelo da droga. Não faz sentido nenhum [ri-se]. Estava muito preocupada com isso. Não sei porquê. Depois, aí no sétimo ano, comecei a escrever peças da escola mais a gozar. Fizemos uma peça sobre o Natal que chegou a ser censurada. Tinha umas professoras católicas que acharam muito mal.
Começou a tomar o gosto ao lado mais ácido.
Sim. De gozar com os professores, coisa que quase todos fazemos. A minha rebeldia sempre foi assim.
A escrita era uma arma.
Mesmo as piadas também. Estar em grupo, esse lado mais trocista. Na adolescência desenvolves o teu estilo de humor ou de não humor. Só mais tarde é que entendi que podia ser profissionalizado. Não era a engraçadinha que estava a falar, eram umas alfinetadas. Os amigos eram a plateia. Depois fui para Ciências de Comunicação, não havendo um percurso óbvio para guionistas e para os meus pais não me chatearem.
Também servia para se integrar?
Na faculdade fui bicho do mato. Percebi que era um curso teórico, lia os livros e ia lá fazer os exames. Todo o ambiente da praxe, das tunas… sou muito avessa a isso. Fiz um ou dois amigos numa turma de 80. Ao fim do segundo ano já estava a trabalhar nas Produções Fictícias. Na faculdade era a vida aborrecida, com pessoas que queriam ser jornalistas. Depois fui para o curso com malta meio esquisita da Restart, que queriam ser guionistas. Pensei: é mais isto. Quero lá saber se falto à cadeira de Sociologia. Claro que também terminei a licenciatura. Onde aprendi mesmo foi quando comecei a escrever. É tipo ginásio, tentativa e erro. Prática. Com alguma orientação, sozinho em casa a escrever é difícil melhorar. Aliás, é como ter um personal trainer.
Houve algum PT que contribuiu mais?
Foram vários. Fui sendo incluída em vários projetos diferentes. Também estava perto de outros com quem trabalhei. Não consigo destacar um, esse conjunto era muito útil, mas hoje em dia não vejo nada parecido com esses tempos. Para alguém começar hoje como guionista há mais facilidades, porque tens a internet toda, és mais auto-suficiente. Mas no sentido de haver uma espécie de start-up incubadora, não há. Talvez já não fizesse sentido.
Em casa também gostava de “torcer” os pais?
Sempre do contra. Dei muita luta aos meus pais. Espero que os meus filhos não sejam iguais.
Às vezes dá a volta completa.
É. O mais pequeno já bate com a cabeça no chão. A minha mãe diz com contentamento que ele é igual a mim.
Tem irmãos?
Sim. Ele era a versão calma. Sempre fechado no quarto a ouvir Nick Cave. E eu no quarto a ouvir Backstreet Boys. Eram todos mais calmos do que eu. Não era a ovelha negra porque não era mal tratada. Estavam todos à mesa a discutir um ciclo de cinema da RTP2 e eu a querer ver o “Não se esqueça da escova de dentes” da Teresa Guilherme. Agora faz sentido. Podia não ter feito. Parece que na altura já estava a guardar material para agora. Os meus pais achavam que era uma perda de tempo ver programas péssimos, não imaginavam que fosse falar disso.
O que dizem sobre isso hoje?
Acham curioso. Houve programas que me proibiam de ver. O primeiro reality show, por exemplo. Não era educativo, de facto. Também comentam o facto de querer ter uma televisão no quarto quando era miúda. Era o meu grande objetivo. Mesmo quando estava a estudar, tinha a televisão ligada. Aprendi mais com o que via do que com as matérias que dava. É triste dizer isso, mas é verdade.
Em “Apontar é Feio” toca na maternidade, volta muitas vezes aos seus filhos. Tê-los mudou a forma como olha para o humor?
Não. Acho que aconteceu naturalmente. No livro tenho crónicas de quando eles nasceram. Queria imortalizar o momento de uma forma humorística, para um dia mais tarde lhes mostrar. Como se fala de atualidade, e nem sempre é fascinante, nessa semana a atualidade era ter um filho. O que é sempre marcante. Porque não? Um deles nasceu em julho. Falei de uma perspetiva não egocêntrica. Daquela ideia de que quando nasce o segundo já não é a mesma coisa. Já não há o impacto do desconhecido. Achei que podia ser uma reflexão engraçada. E foi esse texto em específico que me deu a ideia de juntar tudo em livro porque fiquei a saber que tinha saído num exame de admissão a uma universidade. Não fazia ideia, eles não pagam… fiquei surpreendida. Quando li o enunciado, como tinha uma certa distância, porque não costumo ler ou ouvir o que fiz, foi como se não fosse eu a escrever. Avaliei e achei que o texto não estava mau. Se as pessoas não me tivessem enviado, nunca mais os releria. Pensei que podia selecionar destes dois anos de crónicas por temas, com histórias recorrentes como esta do Natal em que não se podia ver ninguém ou dos negacionistas. Coisas super atípicas, que parecem de uma realidade paralela.
Sim, uma realidade distópica.
É, os números de Covid-19 agora podem ser péssimos mas já não acompanhamos. Ou as regras para não mudarmos de concelhos ou mesmo o regresso às esplanadas. Tendemos a esquecer, mas achei engraçado deixar aquilo registado.
Uma espécie de arquivo. Não retira piada ao texto essa realidade parecer tão fantasiada?
Sim, sim. Nessa altura toda a gente estava a falar sobre o mesmo. Portugal tem muitos humoristas não profissionais. Muita gente com graça que não faz do humor profissão. É uma espécie de concorrência desleal, são muito rápidos, não recebem nada. Talvez a descontração também ajude. Há um médico que sigo no Twitter, por causa do meu lado hipocondríaco, que tem muita graça. As compotas ou as vendas ao postigo era material para dez milhões de pessoas. Tenta-se sempre dizer algo que ninguém disse.
Isso dá-lhe mais vontade de explorar o tema?
É um exercício de sobrevivência, aquilo de haver uma obrigação, que é a que tenho na revista Visão. Gosto de a ter. De fazer um texto novo. Se não tivesse quem me obrigasse, não escrevia. Só fazia se tivesse uma ideia ótima, mas no dia-a-dia não pode ser assim. É a tal ideia do ginásio. Na pandemia, os temas eram aqueles, tinha de sacar qualquer coisa. Há um dia, de vez em quando, que acho que correu bem. E depois há aquela coisa de olhar para os textos e pensar “nós vivemos mesmo isto e não fazia ideia”.
Falando de crónicas, o que se nota é que há aqui um bocadinho, de facto, de cronista em si. De alguém que regista o tempo, o momento, a história, e dá-lhe um corpo humorístico. Até que se encaixa na definição clássica de uma crónica.
Não me colocaria o selo de qualidade de cronista dos nossos tempos. Uma cronista das coisas que não interessam assim tanto. De notas de rodapé. Quando fui reler, algo que nunca faço, até achei que estava ali uma cronologia curiosa. De termos animais selvagens a andarem em Odivelas. Coisas que parecem inventadas e não são. É um registo alternativo do que se passou. Não são grandes questões, são umas mais ao lado.
Sendo alternativo, já podemos dizer que a Joana Marques é mainstream.
Nesse caso ainda bem. Se a escolha for alternativo ou mainstream, sendo que o primeiro é visto como mais cool, para quem tem de fazer disto profissão, faço um esforço para chegar ao segundo. Não penso que vou escrever sobre um tema só porque vai dar não sei quantas visualizações. Não penso nas métricas. Parece meio poético, mas faço o que acho graça. Se tiver sorte que muita gente ache, ainda bem. Há humoristas a que acho graça e que nunca vão ser mainstream — e não quer dizer que não são bons. Só que neste caso há quem se identifique com os meus temas, ouça todos os dias — existe o efeito de grupo que chama e convence outras pessoas. É quase obrigar os outros a fazer parte “deste grupo”.
Nunca colocou uma meta na sua carreira? De estar, um dia, a avaliar possíveis músicos num programa de televisão….
Não. São acasos. Nada que tenha procurado. Já disse também que não a projetos porque tenho noção das minhas limitações. No caso do “Ídolos” fiz logo a ressalva de que não percebia nada de música. Garantiam-me que o objetivo era mesmo ser uma pessoa mais fora. Tenho uma atração pelo abismo. Nunca fiz, vou fazer para ver como era. E também o lado de uma pessoa que consumiu televisão desde sempre, de ver o outro lado, vamos lá. Já vi milhares de concursos de talentos, já gozei com muitos, incluindo este.
Perdeu o encanto quando descobriu como era?
Não, não. Acho genuinamente graça às pessoas neste contexto.
É como uma Disneyland?
É. Não me diminuiu o entusiasmo, até pelo contrário, mas não, não é algo que planeei.
Ou esgotar Coliseus.
Não, muito menos. Não pensava esgotar, sequer, nem tão depressa. Para mim era só uma data. Claro que me vai dar prazer, mas dá-me mais angústia. Estou habituada a trabalhar para o dia seguinte, agora estou a trabalhar para setembro. Não tenho tudo escrito. Para não dizer nada. Sinto-me quase uma burlona. As pessoas compraram bilhete para algo que ainda não existe, que eu ainda nem sei bem o que é. Tenho quem me diga que vai com muita felicidade e nem sabem que estão a pôr-me nervosa. Estou habituada a trabalhar com imediatismo, de repente ter algo que é maior e tem de ser pensado a longo prazo, cria-me uma certa angústia.
Essa vontade de saltar para o abismo é contrária a uma pessoa que tem “cagufa psicológica”, como escreve num dos textos.
[ri-se] Eu disse isso?
Sim, sim. É uma grande dualidade.
Pois é, pois é. Penso muitas vezes porque é que me meti nisto na minha vida. No “Ídolos”, por exemplo. Há um momento em que penso nisso. Ou quando estou a escrever o “Extremamente Desagradável” à uma da manhã porque me meti numa empreitada, há um momento em que penso nisso também. Sofro com isso, mas não é algo dramático. O trabalho que tenho não bate certo com a personalidade que tenho. Há quem adore ser o centro das atenções, nada contra, e não a conseguem ter. Eu é ao contrário. A atenção é boa, sim. Mas não gosto de entrar num sítio e sentir que está uma pessoa a olhar para mim.
Isso não mudou?
Estou mais habituada. Consigo conversar com qualquer pessoa. Ir aos correios e falar com alguém. Mas não nasci para isso. Não é fácil. Mas pronto, se todos os problemas fossem esses… Sou pessoa de estar em casa a escrever. E a ver coisas péssimas. A vida é que me obrigou a estar assim. Claro que me divirto imenso. Se me dissessem que não podia vir para aqui gravar com elas, era péssimo. Gosto muito. Foi sempre sair da zona de conforto.
Mas já é um pouco menos anti-social?
Sim. Continua fortíssimo. Continuo a não gostar de festivais, de sítios com muita gente. Um jantar para mim é com duas ou três pessoas, não é com vinte. Os aniversários com muita gente percebo agora que eram angustiantes. Dispenso que me estejam a dar muita atenção ou ter de a dar a muita gente. Acho que sou sociável a trabalhar. Na vida normal, não. Há amigos que me dizem que nunca mais me viram.
E a Joana pensa: ainda bem.
Está tudo bem. Na pandemia, as pessoas queriam falar no House Party. Pensava que era uma chatice, pedia uma energia que não tenho. Claro que continuo a falar com as pessoas e gosto delas. Mas não sinto uma necessidade de estar sempre acompanhada. Se vir um grande amigo uma vez por mês por mim está bom.
O estar na Renascença também ajuda nisso.
Na vertente social a maioria das pessoas não dirá que sou anti-social. Trabalhei à força essa característica. Até a falar para plateias grandes. Não sou um animal de palco, como alguns colegas meus. Invejo essa característica. Mas sei que não vou ser. Este é o meu registo.
Nunca pensou em desenhar um programa seu, mesmo que não fosse a Joana a apresentar?
Nada. Não quer dizer que não aconteça, mas mentiria se dissesse que tinha um plano. Têm sido anos muito intensos. Já é uma piada recorrente em casa dizer que vou ter tempo. Lá para maio vou ter tempo, mas ando a dizer isto desde maio de, sei lá, 2015. Cada ano tenho mais trabalho. Todos os dias. No podcast, nas crónicas, no “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”. Mais filhos. Um dia pode acontecer. Sei que é decepcionante para quem pergunta…
Nem uma nota num Excel?
Mesmo nada. O formato “Extremamente Desagradável” como existe, satisfaz-me completamente. Se me pedissem para assinar e fazer mais três a cinco anos, faria. Desde que as pessoas tivessem paciência para ouvir. Há aquela ideia de ter de fazer coisas novas. Em entrevistas ao RAP perguntam-lhe porque não tenta outra coisa. Mas, se fizer bem, não vejo o problema de fazer o formato durante dez anos. Não se esgota, mesmo com o mesmo formato. Aqui sinto o mesmo. Não sinto essa urgência. Se me divertir, está bom. Não sinto que tenho de inventar a roda. Consegue ser diferente todos os dias na sua monotonia.
Mas essa ideia de repetição não nos cristaliza num tempo da comédia que não evolui? Em que não vamos à procura de outras coisas?
Nada disto de que falámos foi pensado por mim.
Agora já estamos a teorizar…
Exato. É tipo ir ao psicólogo. Comecei a fazer o “Altos e Baixos” por uma coincidência, porque não havia dinheiro para apresentadores e fomos nós. Fui para a Antena 3 depois de fazer um workshop com o Diogo Beja, em que eram precisas pessoas novas. Lá fui. Fui um bocadinho à experiência em tudo. Como nunca tive plano e isso funcionou, o plano é manter-me sem um. Porquê mudar a receita?
Só que em televisão existe uma grande ausência de comédia. Não será porque nos mantemos a fazer os mesmos formatos?
É verdade. Percebo isso. Acho que se arrisca mais na rádio. A televisão está mais preocupada com as audiências. Talvez considerem que é um grande risco. Embora não seja, o “Isto É Gozar Com Quem Trabalha” é líder de audiências todos os domingos. Pode-se achar que por ser política as pessoas não vão gostar, mas não é verdade. Só os diretores de programas é que podem justificar a ausência de humor. Ou quando me perguntam se não podia fazer o podcast em formato televisivo, digo que acho que não. Que não faz sentido. Que até podia estragar. Há formatos que funcionam por causa da interação entre as três. Os comentários até, por vezes, são sobre isso. Como se fôssemos uma personagem de uma sitcom. Já sabemos que a Ana vai fazer piadas secas. Gosto disso. É quase como escrever uma sitcom. Há um universo que as pessoas já conhecem. Posso fazer piadas recorrentes. Estamos a incluir as pessoas na conversa. Acho que isso só é possível na rádio, diariamente. A televisão é muito mais complicada, seja para fazer um “Ídolos” ou um programa de domingo. Envolve muito mais gente. Aqui chego com a minha folhinha, desde que o microfone esteja ligado eu faço. Tenho o fascínio de espectadora de televisão, mas não é um sonho fazer um programa de televisão.
Na sua falta de tempo, há algo a que não ache mesmo graça?
Não sei. Há temas que não estou nada por dentro. Temas económicos, por exemplo. No programa do RAP há quase departamentos. O Cláudio Almeida é o nosso especialista de economia. Ele troca-nos tudo por miúdos. Admiro isso nele, nunca teria essa capacidade. Há temas que me dizem mais, a que acho imediatamente graça. Coisas absurdas que se passaram na televisão vão ser terrenos mais fáceis. Ou quando a tal realidade é mais distópica e vamos fazer um piada por cima.
A cereja já está colocada e a Joana ainda tenta colocar um molho.
Exatamente. Há coisas tão engraçadas que já não há nada a fazer. É tentar meter-me em caminhos que não domino. Claro que também vejo sessões plenárias, mas acho muito mais chato. Não me diverte tanto, apesar de saber que o resultado vai ser bom.
O que é que a ocupa a cabeça, mesmo que seja muito ocupada?
Adorava ter para contar, mas a minha vida tem sido muito pouco interessante. É sair daqui e ver o conteúdo para o dia seguinte, como podcasts portugueses. Quando tinha tempo, ouvia muitos podcasts sobre crime. Parecem quase séries da Netflix. É um nível que ainda não temos cá.
A Joana Amaral Dias tentou…
…pois tentou. Fiz um episódio sobre isso. Mas de facto, ando sem tempo. Tenho sempre notas de séries ou documentários para ver nas férias. O Olivier Bonamici falou-me da “Quinzena do Ódio”, que fala sobre os insultos online feitos a desportistas. O que fazem é ir buscar o hater e colocá-lo frente a frente com o desportista.
E não diz?
Não. Sem ser um psicopata, 90% das pessoas não sente o que está a escrever nas redes sociais. Perguntavam se desejava a morte daquele desportista, e ele responde que não. Mas, lá está, toda a gente me dá sugestões, fico com a sensação que não vou conseguir, tenho aqui a lista para as férias.
A Joana considera-se, acima de tudo, guionista. Já há novos guionistas a chateá-la para conselhos? É raro um guionista fazer o percurso que fez.
Infelizmente, sim. Até porque não há assim tanto trabalho. Não temos uma escala tão grande de programas. As pessoas vão-me pedindo isso na internet. É-me difícil porque não tive propriamente um plano e também porque tive a sorte de ter estado no sítio certo à hora certa. Fora isso, é praticar. Voltamos sempre a isto. Se gostas de escrever, escreve. Não estejas quieto e a esperar que alguém te convide para escrever uma série. É um pouco como um jogador de futebol. Pode ser frustrante escrever para a gaveta, bem sei. Escrever e rescrever. Perde-se mais tempo a decidir qual a palavra a usar, mas gosto desse processo. Se não achar, o melhor é não ir por aí. Há quem só veja o lado glamoroso. Nem chega a ser, talvez. Um lado divertido. É como ver um humorista no palco a ter muita graça e pensar: também vou. Não veem a parte aborrecida de um humorista à frente de um computador. Da velocidade que a vida leva agora e a necessidade de ter de trabalhar bastante em Portugal. Se calhar nos EUA, não, podem estar um ano sem trabalhar. Aqui sim, implica tanto trabalho que a pessoa tem de gostar. Mas isso é em qualquer profissão, parece-me. Não se vai estudar medicina se não se adorar. É não se deixar enganar pelo lado que é só divertido. Agora vou terminar esta conversa, vou para casa e ter de escrever. Tenho de ir buscar os miúdos, amanhã repete-se. Ainda bem. É bom parecer fácil. A ideia não é parecer que deu imenso trabalho. Como alguém dizer que um cantor faz com que pareça fácil cantar. A ilusão de facilidade para o público é ótima.
Nestes tempos mais trágicos, o humor salva alguma coisa?
Salvar é uma responsabilidade grande. Ainda assim, continua a impressionar-me que, no meio do insulto e da ofensa, quando partilho comentários negativos que me divertem, há quem me contacte a dizer para continuar. Surgem muitas mensagens de pessoas que estão desempregadas e que durante aqueles dez minutos não pensam nas contas que têm para pagar. Uma senhora que veio aqui e se emocionou porque tinha estado numa relação tóxica, e durante o podcast estava fora desse ambiente. Mostra que, tal como um filme ou um livro, é possível sair por uns minutos de um sítio onde estás mal. Ou quem está doente, também.
É o “beijinho lá para casa”.
Sim. O que faço pode ter muito mais valor do que o que dou. Acho isso impressionante. Não salva o mundo, mas, por uns minutos, são importantes para alguém. Estou sempre à espera que me digam que se riram. Isso é ótimo. Se, além do rir, vem um feedback importante, é uma cereja no topo do bolo.
Dá um conforto.
Sim. Respondendo: acho que não salva, mas aqui e ali dá um certo alívio. Retira pressão. Não nos levamos tão a sério.
Só não falámos de futebol…
Sim. E este ano foi tão mau para o…
[Esta parte da entrevista foi cortada por ser extremamente desagradável.]