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"João Ayres queria pintar, não queria pertencer": um filme para contar a história de um artista independente

Revelou-se no Doclisboa de 2022 e agora estreia-se em sala. Este é um documentário para recuperar um homem e uma obra "caídos no esquecimento". O realizador Diogo Varela Silva explica como e porquê.

Já ouviu esta história em qualquer lado: artista menosprezado durante a vida encontra reconhecimento após a morte. Há diversas razões, algumas naturais à obra, outras menos educadas. O caso de João Ayres (1921-2001), retratado em “João Ayres, Pintor Independente” está noutro nível. O documentário de Diogo Varela Silva — que se estreia esta semana em Lisboa (Cinema City Alvalade), em Coimbra (Casa do Cinema) e brevemente no Porto (Cinema Trindade) — é um de vários acontecimentos na missão de recuperar a obra do pintor, levada a cabo pelo seu neto, Diogo Camilo Alves.

Um e outro Diogo, ambos com avós que deixaram marca no século XX português — Diogo Varela Silva é neto de Celeste Rodrigues, fadista por mérito próprio e irmã de Amália. Por isso, o realizador entende a paixão que gera a preservação do património familiar. E foi isso que o levou à antiga casa de João Ayres, em Vale de Lobos, a meia-hora de Lisboa. Uma casa-atelier-museu-por-acontecer com mais de duas mil obras que o pintor deixou e que o seu neto, Camilo Alves, está a catalogar, organizar e recuperar. Este documentário é fruto deste movimento, tal como a exposição que aconteceu em outubro na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa; tal como a que está planeada para Moçambique.

Quem é João Ayres? Filho de Frederico Ayres, também artista, foi motivado pelo pai desde muito cedo a pintar, assim que lhe percebeu o interesse e o talento. Estuda arquitetura ao invés de pintura, começa em Lisboa em 1939, vê os estudos interrompidos em 1941 por causa do serviço militar e regressa a eles, em 1943, no Porto. Junta-se aos Independentes, grupo de artistas que ao longo do século XX procuravam a modernização, e é na primeira mostra deste coletivo que expõe pela primeira vez. Nessa década vai para Moçambique, regressando a Portugal em 1975.

[o trailer de “João Ayres — Pintor Independente”:]

Em África procura nome e subsistência com a pintura, mas faz vários trabalhos para garantir uma e outra. Em 1956 é convidado para expor individualmente na II Bienal de São Paulo, enquanto pintor moçambicano. Talvez aqui comecem alguns dos obstáculos a um reconhecimento maior: a ideia de liberdade que para uns era motivo de estranheza, para outros podia ser razão de inveja. Ayres, o pintor, não queria pertencer a lugar algum e isso estranhava-se: “para os moçambicanos, era demasiado europeu; para os portugueses, era demasiado africano”, dir-nos-á o realizador do documentário.

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A bipolaridade seria um entrave para apreciar o trabalho na altura. E, aos olhos de hoje, parece absurda quando estabelecemos contacto com as pinturas e o espólio que deixou. Duas mil obras são resultado de um labor constante, diário, para quem a pintura não era uma atividade de lazer, mesmo que daí não viesse grande reconhecimento. Em “João Ayres, Pintor Independente” não ficamos necessariamente fascinados pelo volume, mas pela criatividade, por uma linguagem que absorve, vários detalhes que dão protagonismo a uma vontade visionária, distante daquilo que era tido como convencional. Por isso, logo no início, quando nos é apresentada a história da destruição do ambicioso quadro “Festa Brava”, o impacto é forte.

Não revelemos já todos os detalhes. Digamos, sim, que em menos de uma hora, Diogo Varela Silva passa pela história do pintor num filme que é também sobre a casa em Vale de Lobos, a obra que está lá dentro e a missão do neto, Diogo Camilo Alves, em dar-lhe a atenção que merece. Um trabalho que parece continuar em movimento, é possível que daqui a alguns anos olhemos para “João Ayres, Pintor Independente” de um modo radicalmente diferente. O realizador, que entrevistámos, assim espera. Começámos pelo princípio. E no princípio surgiu o neto do pintor.

João Ayres "começa a pintar nos anos 1940, está na primeira exposição dos Independentes no Porto, em 1942, e pinta até morrer, em 2001", diz-nos o realizador

Como conheceu o Diogo Camilo Alves?
Conheço-o desde que éramos miúdos. Não sabia quem era o avô dele e também não sabia quem era João Ayres. O Diogo andava há muito tempo a insistir comigo para eu ir ver a casa que acabei por filmar, para ir lá ver a obra do avô. Um dia finalmente disse-lhe que sim e quando o fiz fiquei fascinado com a quantidade e a qualidade da obra que o João Ayres deixou. Com os quadros e também com o que ele deixou escrito. A maneira que ele tinha de pensar o que é ser artista, ser pintor, fazer arte. Achei que fazia sentido fazer este filme…

O filme acontece quando acontecem também outras coisas à volta da figura e do trabalho de João Ayres.
Sim, logo a seguir a Galeria Zé dos Bois fez uma exposição fantástica, aconteceu uma em Paris, está a ser organizada uma mostra muito grande em Moçambique, há interesse do MOMA para levar algumas obras para uma outra exposição em Nova Iorque. Ou seja: isto para dizer que não fui só que achei que era importante recuperar a memória do João Ayres e a obra dele, pelos vistos.

Quando foi a Vale de Lobos, à casa onde João Ayres viveu, pela primeira vez?
Há dois anos.

Pergunto isto porque ninguém foi lá entre 2006 e 2019. Contudo, o Diogo Camilo Alves estava sempre a falar-lhe do que estava naquela casa.
A decisão do Diogo de se mudar para lá [em 2019], de começar a catalogar e a recuperar a obrar, tentar arranjar maneiras de a preservar e fazer com que fosse estudada, isso é algo mais recente. Eles são vários irmãos, é uma herança grande, não é só do Diogo. Acho que são cinco irmãos, essas coisas calculo que não sejam fáceis de coordenar entre todos…

"O João Ayres trabalhou imenso, pintava várias horas por dia, todos os dias. Durante muitos anos. Começa a pintar nos anos 1940, está na primeira exposição dos Independentes no Porto, em 1942, e pinta até morrer, em 2001. Passou por muitos períodos distintos, deixou uma obra muito diversa."

São amigos de infância, como o conheceu?
Aquela coisa de miúdos mesmo, amigo dos primos… Não somos “os melhores amigos”, mas damo-nos bem desde muito novos. Desde os 14, 15 anos, por aí.

Lembra-se quando viu o trabalho de João Ayres pela primeira vez?
Fiquei fascinado. Não estava à espera. É como quando ouvimos aquela história, “tenho ali umas coisas do meu avô”, não damos muita importância. Mas achei que tinha de ir lá ver, perceber que “coisas” eram aquelas. Quando entrei naquela casa e comecei a ver a variedade da obra… o João Ayres trabalhou imenso, pintava várias horas por dia, todos os dias. Durante muitos anos. Começa a pintar nos anos 1940, está na primeira exposição dos Independentes no Porto, em 1942, e pinta até morrer, em 2001. Passou por muitos períodos distintos, deixou uma obra muito diversa, ele queria pintar, não queria pertencer. Inclusivamente, coisas pintadas num lado e noutro da tela, ele alimentava um lado meio obsessivo. Fascinou-me essa entrega dele à pintura e a qualidade do trabalho. E depois, fiquei intrigado.

Intrigado com o quê?
Como era possível um pintor deste calibre não ser estudado academicamente em Portugal? Felizmente, as coisas vão mudando e começa-se a perceber a importância que ele teve na pintura moçambicana. Foi professor do Malangatana, da Bertina [Lopes], de alguma maneira acredito que terá influenciado a pintura destas pessoas. Esteve exposto individualmente na Bienal de São Paulo, na Bienal do Rio, com direito aos pavilhões principais. Tudo isto só é possível se existir uma grande qualidade artística. Ele tinha essa qualidade. Se o compararmos com os pintores da mesma altura, percebemos que a qualidade dele está lá. Era importante ajudar o Diogo nesta sua missão de vida, recuperar o nome e a obra de João Ayres. Foi isso que tentei fazer com o filme, mas também quis mostrar o trabalho do Diogo, do neto que inicia esta luta de recuperação da obra do avô e da casa. Esse foi o mote para o filme.

"Festa Brava". Segundo o próprio, "a Guernica" de João Ayres, que demorou 6 meses a pintar (1960/61), com mais de 8 por 4 metros, sobre "a ação do homem sobre outro homem"

O João Ayres era obsessivo?
Acho que trabalhava muito. Um pintor que põe aquelas horas todas por dia, todos os dias, no seu trabalho é alguém que leva a pintura muito a sério, não é ocasional, não é de domingo, como ele dizia. Ele não acreditava naquela coisa da inspiração, ele acreditava que o trabalho tem de ser feito trabalhando, é preciso trabalhar todos os dias, muitas horas por dia, para conseguir fazer com que uma obra nasça. Isso estava patente naquela casa a partir do momento em que lá entrei, via em todas as paredes a quantidade de telas amontoadas em cima umas das outras. E esse é o trabalho que o Diogo tem vindo a fazer, recuperar as telas… até porque, dado o tempo durante o qual a casa ficou fechada, muitas delas ficaram em muito mau estado.

Esse lado também está na escrita? Nos excertos que mostra no filme, deduz-se que João Ayres estava constantemente a pensar e a questionar a própria obra.
Ele estava sempre a pensar nisso, é uma das coisas que achei interessante nele enquanto artista. Ele não fazia nada ocasionalmente, tudo era muito pensado, intelectualizado. Da informação que consegui reunir, das coisas que ele deixou escrito, foi possível perceber que houve essa preocupação de pensar o que ele estava a fazer. Havia uma justificação para tudo, incluindo o que ele escrevia para cada um dos quadros. No filme mostro o que ele escreveu para o “Festa Brava” e para o “Alcácer Quibir” e percebe-se que há esse pensamento constante sobre a obra que está a produzir.

“Festa Brava” foi, aliás, um quadro que foi destruído…
Foi censurado, ele não o pode fazer tal e qual como queria. Teve que fazer concessões artísticas para que o quadro fosse exposto. E essa foi a razão principal para ele o ter destruído. Talvez se fosse mais reconhecido, talvez aí ele tivesse conseguido ultrapassar momentos como esses de outra maneira.

"Quando volta para Portugal não cede aos galeristas porque já vem habituado a viver a sua própria arte. Ele vivia relativamente bem da pintura, quando chega cá não entra no lobby galerista, como tal é votado a um esquecimento quase absoluto pelos espaços onde podia exibir."

E que razões justificam essa falta de reconhecimento de que fala?
Há várias, não sei se o que vou dizer será a verdade absoluta, mas é a sensação com que fiquei. Ele fica perdido ali num limbo: em Portugal é o pintor moçambicano; em Moçambique, é o pintor europeu. E essa dualidade agrava-se com a independência. Foi fruto, também, de algumas invejas, na Bienal de São Paulo teve direito a pavilhões principais em detrimento de outros artistas que vieram daquilo que era a “metrópole” e isso teve consequências. Além disso, João Ayres era realmente independente. Quando volta para Portugal não cede aos galeristas porque já vem habituado a viver a sua própria arte. Ele vivia relativamente bem da pintura, quando chega cá não entra no lobby galerista, como tal é votado a um esquecimento quase absoluto pelos espaços onde podia exibir. Já para o fim da vida acontece uma exposição da Gulbenkian, em Sintra… Além disso, era desbocado.

Falava de mais?
Dizia tudo, coloquemos a questão assim… Muitas vezes, isso dificultava um possível bom relacionamento com o resto das pessoas. Como aliás continua a dificultar, não era uma questão de época. Todas essas coisas misturadas poderão ter resultado neste esquecimento. Porque o João Ayres era uma pessoa difícil de catalogar. Ele faz as primeiras coisas em 1940, próximo do neorrealismo, uma coisa mais modernista… Mas não fica preso… é realmente independente e vai vivendo a vida consoante a sua experiência. Foi independente do início ao fim, isso está patente na obra que pintou e no que deixou escrito. Mas depois… muitas vezes, para se ser imortal é preciso primeiro morrer. Este é mais um desses casos. E acontece muito em Portugal.

Porque diz isso?
Somos um país de invejosos, não lidamos bem com o sucesso dos outros. O que é estranho, o que é estranho…

João Ayres, artista cosmopolita; alguns desenhos guardados na casa de Vale de Lobos; o realizador Diogo Varela Silva

Quando João Ayres vem para Portugal, há uma reação desconfortável, por causa da Guerra Colonial, porque há muita África nele e na obra. E passa três décadas sem ver valorizada essa “novidade” de que fala, essa “independência”.
É estranho. Mas fico contente por ver que há este despertar para a obra dele. Foi bonito ver a exposição na ZDB e a afluência que teve. As pessoas ficaram interessadas em ver mais coisas do João Ayres. Sei que há quadros a serem recuperados nas Belas Artes e há uma aluna de mestrado que está a fazer uma tese sobre ele. Há este despertar da academia sobre a obra. E vamos ver como vão correr estas exposições que ainda são projeto. Se tivermos um quadro dele no MOMA, vai ser importante; voltar a levar a obra para Moçambique… Acho que essa exposição que está a ser preparada é muito grande. Mesmo lá, o João ficou nesse esquecimento, ficou como “o pintor colono que saiu”. É importante ser estudado em Moçambique, nesse sentido a Alda Costa tem feito um trabalho grande no recuperar dessa informação e no descobrir onde estão as obras, para mostrar o João Ayres aos moçambicanos.

Está envolvido nesse processo?
Não, mas tenho sabido através do Diogo. E fico contente que o filme tenha ajudado a despertar o interesse das pessoas.

Como é que o Diogo encara esta missão?
Ele é um neto apaixonado pelo avô, isso é óbvio, e percebe a dimensão da obra do avô e quer que, na medida do possível, mais pessoas a conheçam. Essa missão de vida que ele tem agora é de louvar e é lindíssima, ver um neto com esta força toda e querer mostrar a obra do avô. É fascinante. E faz tudo isto ao mesmo tempo que aprende a cumprir a tarefa.

"Desde o dia que entrei naquela casa até à edição, não parei. Percebi logo que o filme tinha de ser isto: a casa, o Diogo, a relação do Diogo com a obra do avô e a luta toda para recuperar ambas as dimensões, a pessoa e a arte. E com isso consegui mostrar o percurso do João Ayres desde o seu primeiro quadro, aos seis anos, até aos desenhos que faz alusivos à morte da filha."

Ou seja, não tem conhecimento específico na área.
Exato. Ele não é um académico. Portanto, está a aprender à medida que vai fazendo. E tem feito, tem feito um excelente trabalho. Fiquei impressionado com a quantidade de trabalho que encontrei feito por ele quando cheguei à casa. Primeiro, não estava à espera de nada daquilo, à medida que fui tirando as camadas, há ali um trabalho imenso e uma dedicação enorme dele a esta causa. Como também sou neto, acho muito bonito.

Isso também contribuiu para uma certa urgência em fazer o filme?
Definitivamente. Só não foi fácil conseguir financiamento. Este é um filme que nasce com o Garantir Cultura, com poucos meios, mas com uma vontade enorme da equipa que esteve a trabalhar comigo e que foi fantástica, fizeram com que tudo fosse possível. Desde o dia que entrei naquela casa até à edição, não parei. Percebi logo que o filme tinha de ser isto: a casa, o Diogo, a relação do Diogo com a obra do avô e a luta toda para recuperar ambas as dimensões, a pessoa e a arte. E com isso consegui mostrar o percurso do João Ayres desde o seu primeiro quadro, aos seis anos, até aos desenhos que faz alusivos à morte da filha.

Que são perturbadores…
São muito, muito fortes.

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