Há menos de um ano, João Frazão foi apontado por Jerónimo de Sousa como um potencial sucessor na liderança dos comunistas. Agora, em entrevista ao programa da Vichyssoise, da Rádio Observador, o membro do Comité Central defende a escolha de Paulo Raimundo e comenta essa referência de Jerónimo: “Nem sempre o secretário-geral do PCP acerta e, portanto, talvez nesse momento não tenha acertado.”
O dirigente comunista congratula-se com o facto de mais de 200 pessoas saberem durante uma semana que Paulo Raimundo era o sucessor de Jerónimo de Sousa e de nada ter saído para a comunicação social. João Frazão que as “opções de classe do PS” e o facto de “preferir servir os interesses do grande capital” é que o que tornou “difícil”.
[Ouça aqui o programa Vichyssoise desta semana na íntegra:]
No site do PCP, na apresentação dos membros do Comité Central, aparece referido como “intelectual” o que não é tão compreensível para quem está fora do PCP. O que o define como intelectual?
Nós temos essa como uma caracterização social e eu estava a fazer economia quando decidi vir para funcionário do partido, na altura na JCP. Por isso, deixei a economia a meio. É a solução para encontrar a caracterização social.
Mas parece um termo até um bocadinho burguês.
Não, os termos são, aliás, bastante marxistas. Precisamos de caracterizar a sociedade para saber como intervimos nela. E há intelectuais, há operários, há trabalhadores, há empregados. Portanto essa é a caracterização possível para alguém que por razões de opção de vida deixou o curso de economia a meio.
Não sei se o marxismo faz propriamente a apologia dos intelectuais…
Não se trata de ser a apologia, em toda a história do marxismo-leninismo os intelectuais tiveram sempre um papel determinante e essencial que não dispensa o papel da classe operária e de todos os trabalhadores que sempre central na luta que há-de transformar a humanidade.
Jerónimo de Sousa disse o seu nome a 31 de dezembro de 2021 como um potencial sucessor. Em algum momento pensou que podia ser secretário-geral?
O que o secretário-geral fez naquela altura foi face a outros nomes dizer que no PCP, tendo em conta o trabalho de quadros e o conjunto de camaradas que temos na direção do partido, teríamos muitas outras possibilidades para assegurar uma transição no momento em que ela se colocasse. E naquele momento nem estava colocada como a seguir se veio a colocar. Nem sempre o secretário-geral do PCP acerta e, portanto, talvez nesse momento não tenha acertado.
É dos que ficaram surpreendidos com a escolha de Paulo Raimundo? Houve militantes e antigos membros do Comité Central que se mostraram surpreendidos.
Eu sou membro da Comissão Política do PCP, portanto alguma responsabilidade hei-de ter na discussão.
Mas o secretariado é que fez a proposta?
Sim, e os organismos executivos discutem a proposta e são eles que fazem a auscultação aos membros do Comité Central.
Jerónimo de Sousa admitiu que houve alguma surpresa no Comité Central, ou seja fora dos órgãos mais restritos. Compreende essa surpresa?
É natural que cada membro do partido, em particular os dirigentes, até seria irresponsável que face a uma situação de saúde tão grave como a que foi a do secretário-geral do partido e a idade que tem, não tivesse pensado para si: se for necessário qual será a solução? É natural que cada um, em face do que conhece mais, tenha feito as suas opções, tenha considerado uns e não tenha pensado noutros. Perante uma proposta concreta podem ter ficado surpreendidos. O que marca esta decisão não é a surpresa, mas uma muito grande convergência, unidade e coesão no PCP. Durante vários dias houve quase 200 pessoas que sabiam que isto estava a ser tratado, sabiam o nome e compreendo a surpresa que na comunicação social terá havido quando anunciámos. Como é que ao longo de uma semana há este conjunto enorme de camaradas que sabem do que se trata e não há nenhuma fuga de informação.
Mas isso é motivo de orgulho ou criticável porque cada vez mais pede-se aos partidos transparência e abertura e o processo no PCP parece não ter nem uma coisa nem outra?
Não vejo ninguém criticar a opacidade de partidos que não discutem nenhuns conteúdos. Organizamos uma conferência nacional e temos milhares de membros do partido a discutirem os conteúdos. E agora até a comunicação social se apercebeu que a conferência também tem conteúdos. Temos milhares de membros do partido a dar a sua opinião e contribuição, a fazer propostas de alteração. Temos uma abertura imensa sobre o que são os conteúdos da intervenção do PCP, que naturalmente terão de ser protagonizados por pessoas (neste caso por um secretário-geral), mas não vejo ninguém achar estranho a opacidade dos conteúdos dos outros partidos, não se discutem e mais: apenas se elege uma pessoa que no fim fará mais ou menos o que entender.
Mas os órgãos de topo também fizeram o que entenderam. Quando diz que durante uma semana soube-se do nome dentro do Comité Central, isso não é propriamente um debate com as bases, não é?
Na nossa experiência temos um trabalho de ligação ao partido que é incontornável. A sucessão do meu camarada Jerónimo de Sousa vem a ser tratada indevidamente pela comunicação social há anos.
Falamos na sucessão de António Costa e ele tem mais quatro anos de Governo pela frente…
Estou a dizer que isto é um facto, há anos. Em milhares de reuniões que fazemos todos os anos, nas comissões de freguesia, de concelhia, nas células de empresas, nas direções regionais, no contacto com tantos e tantos membros do partido, sejamos capazes de ouvir e saber o que os camaradas dizem. Se há coisa de que não nos queixamos no PCP é de falta de democracia interna.
Parece que existem muitos militantes e o partido dá importância e visibilidade, mas para a escolha há um pequeno comité que decide entre eles. Isto causa alguma estranheza para as práticas doas outros partidos, onde há um sufrágio..
Sim, e há sindicatos de voto, há malta que se organiza para pagar as quotas de outro. Não queremos essa experiência.
Mas esta é melhor?
É, claramente. Sobre isso não temos nenhuma dúvida. Não temos nenhuma dificuldade com o processo democrático de discussão no PCP que envolve as pessoas na discussão dos conteúdos. Parece que a única questão que se põe é saber quem é. Ora, saber o que se vai fazer é muito mais importante. Quando estamos perante problemas tão sérios como o aumento da inflação, da precariedade, do alojamento no ensino superior, do aumento do custo de vida, que está a esmagar as pessoas, e do outro lado temos os grandes grupos económicos a anunciar lucros de muitos milhões, como nunca tiveram, e que este é o melhor ano de sempre. Essa é a questão colocada ao país, e não tanto a de saber como é a eleição do secretário-geral do PCP. Embora nós não tenhamos nenhuma dificuldade com a democracia interna do partido.
Paulo Raimundo esteve, pelas contas do PCP, no máximo a trabalhar quatro anos fora do partido. Não é uma apropriação do termo “operário”? O que se vê é uma pessoa que trabalhou pouco tempo fora do partido a ser classificada como operário, quando na verdade é um funcionário do partido.
Nós temos essa caracterização, que é rigorosa. O que se passou esta semana, com toda a franqueza, é uma tentativa de menorização do meu camarada Paulo Raimundo, até fazendo confusão entre currículo e biografia. Houve tanta surpresa quanto ao desconhecimento da pessoa, e depois há tanta surpresa relativamente ao facto de o PCP fazer uma biografia para que se conheça a pessoa… Estamos muito habituados a isso: ser presos por ter cão e por não ter. Não há nenhuma apropriação. Se o meu camarada fosse médico, ninguém acharia estranho que se dissesse que era médico. Porque é operário acham estranho…
Mais pela curta experiência como operário do que pela profissão em si.
Se fosse médico e tivesse tido quatro anos de experiência, ninguém acharia estranho. Sabe qual é o período experimental, que até achamos demasiado? É de seis meses… Ele esteve quatro anos.
Arménio Carlos disse à rádio Observador que há outros militantes que reúnem condições. Isto não é uma crítica velada à escolha?
Não, isso até o meu camarada secretário-geral disse, e várias vezes. O que ouvi de Arménio Carlos foi que havia surpresa, o que o secretário-geral também disse, e que agora era preciso unir o partido em função das tarefas que temos pela frente. Sinceramente, acho absolutamente normal.
O facto de Raimundo não ter lugar no Parlamento é uma fraqueza? Ou nesta legislatura o PCP quer mesmo concentrar-se nas ruas e é de lá que pretende fazer oposição, já que ficou com uma bancada muito reduzida?
Paulo Raimundo não está no Parlamento porque não foi candidato e não poderia ser assim. Não escolhemos o secretário-geral em função dos lugares que ocupe, no plano institucional. Temos uma intervenção institucional a que dedicamos toda a importância, como se vê nestes dias no quadro no debate do Orçamento, é evidente que com mais dificuldades, porque temos menos deputados — mas nem por isso com menos qualidade ou deixando de dar resposta aos problemas nacionais. Lidaremos com esta situação enquanto ela se colocar. Raimundo e o partido terão todos os espaços para intervir, no plano institucional e político, nas ruas mas também dentro de casa, nos comícios, ações…
Nas ruas, e nessa contestação, o Chega passa a ser um concorrente. O PCP tem motivos para estar preocupado com o Chega?
Há uma tentativa de empolar uma área à direita…
O Chega vai criar uma central sindical.
Já ouvimos dizer.
Se para a UGT para o PCP é sindicalismo amarelo, o que será o do Chega…
Veremos o que vai ser. Para já, parece uma coisa à semelhança do que o Vox fez. Mas é possível anunciar tudo e a vida se encarregará de dizer… O Chega também anunciou que ia tomar todas as ruas e que a partir dali a rua era da direita. Até agora ainda não se comprovou, e a vida determinará. A ação e participação dos trabalhadores e das massas é determinante para condicionar o andamento da vida do país. E essa ação nem nunca se quebrou nem está agora menorizada, se for ver nos últimos meses o conjunto de empresas que lutaram…
Pode agora até estar aumentada, neste contexto político e económico.
É natural, perante o agravamento da situação social. Por vezes há uma espécie de tentativa de dar uma ideia de maniqueísmo sobre o momento em que as lutas estão mais acesas ou não — mas estará sempre mais acesa quanto mais dificuldades existirem. Quando a Navigator tem um aumento dos lucros de 137%, 3200 trabalhadores e 270 milhões de lucro, se aplicar o aumento que a CTGP está a pedir são 10%. O custo disto já com TSU dá 1,427 milhões anuais. Qual é a dificuldade? O grupo Jerónimo Martins, com 30 mil trabalhadores, tem um custo, com um aumento de 100 euros por trabalhador, de 8,820 milhões. Teve nos primeiros nove meses 419 milhões de lucros. Qual é a dificuldade? A questão colocada hoje é exatamente esta. Aqui, nos problemas da habitação, nos trabalhadores da Cultura, nos jovens…
O PCP está sempre a fazer avaliações sobre o partido, como agora nesta conferência nacional. Admitem que têm perdido militantes devido à posição que têm quanto à Rússia? Na conferência admitem fazer algum ajustamento em relação a essa posição?
Acompanho diretamente no partido a JCP e aquilo que conheço é uma adesão crescente à JCP. Centenas de jovens que aderem à JCP — que aliás se expressaram em grandes ações no centenário do PCP no comício do Campo Pequeno, com centenas de jovens a participar no desfile, em ações por todo o país. E até lhe posso adiantar uma coisa que pode vir a ser dita na Conferência que é que os meus camaradas do Ensino Superior decidiram ir para as escolas e em três semanas conseguiram 500 contactos de estudantes para participarem connosco, para serem formados nas nossas iniciativas e para agirem com jovens comunistas em muito lado. Essa é a realidade que eu conheço.
A conferência pode ser um espaço para reformularem a posição sobre o conflito?
Quanto à Ucrânia temos uma posição que está muito consolidada desde a primeira hora. Nesta conferência está presente pelas implicações que — quer a Guerra, quer as sanções, e particularmente as sanções têm na vida do povo português — , mas não está prevista uma abordagem mais específica sobre a matéria.
O PCP tem perspetiva de ter alguma das suas propostas aprovadas no Orçamento do Estado? É cada vez mais difícil falar com o PS?
O problema de ser difícil falar com o PS são as opções de classe do PS, que acho que ficaram muito bem visíveis no acordo que fez com a UGT e os patrões na concertação social. Enquanto o PS não se libertar dessas suas opções de classe, de servir os interesses do grande capital, é evidente que é difícil.
O PS, quando estava no acordo conhecido como geringonça, não serviu o grande capital?
Durante esses cinco anos, aquilo que nós tivemos foi o aumento do poder de compra dos trabalhadores, o aumento dos salários, a redução das taxas moderadoras ou a contenção das propinas. Nós orgulhamo-nos muito de ter dado uma contribuição para que a vida do povo português ficasse melhor nesses anos. Foi apenas isso que nos norteou.
Vamos avançar para a fase do Carne ou Peixe em que tem de escolher uma de duas opções: quem preferia levar a comer um bacalhau à Braga: Catarina Martins ou António Costa?
Catarina Martins, com certeza.
Se tivesse de pedir aos militantes do PCP para engolirem um sapo nas próximas presidenciais, qual era o sapo mais fácil de engolir: votar em Santos Silva ou Carlos César?
Nós teremos candidatos, seguramente.
A quem pedia ajuda para tirar uma imperial, ou um fino, na festa do Avante: Paulo Raimundo ou João Ferreira?
Os dois tirariam muito bem imperais, mas creio que na próxima festa do Avante o meu camarada Paulo Raimundo estará com muitas dificuldades em tirar finos, já que terá novas responsabilidades.
Preferia uma nova geringonça — aliás, um regresso à “nova fase da vida política nacional” ou um Governo apoiado pelo Chega?
Prefiro um Governo que seja capaz de dar resposta ao povo português. A nova fase da vida política nacional esgotou-se naquele período.
Mas preferia ter uma solução do género geringonça do que um Governo liderado pelo Chega ou para o PCP era igual?
A comparação teria sempre de ser feita com gente séria. E, portanto, nesse caso é difícil. Nesse caso, é óbvio.