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Reportagem em Luanda
(Se este texto tivesse banda sonora, seria este aviso afro-house a João Lourenço, que no sábado passado se ouviu nas ruas para assinalar os seus três anos de poder)
O pedido é claro: “Por favor não escreva o meu nome. Ainda me matam”. O homem cala-se para ouvir a mulher que se aproximou sem ele perceber.”Madrinha, dá-me o teu ‘bidon'”. Quer a garrafa de plástico vazia que a jornalista tem na mão. É esse o seu sustento. Por dia, consegue juntar um saco delas, depois vende-as para “sumo de múcua [fruto do embondeiro] e outros…”. O que lhe vale 300 kwanzas (40 cêntimos). “Não chega para dar de comer à família, uma caixa de coxa de frango [congelada e de 10 kg] custa 9 mil kwanzas [12 euros]”, encolhe os ombros, o rosto fechado.
Conseguido o que queria, explica como a vida está “muito pior desde que o Zédu [alcunha dada a José Eduardo dos Santos] foi embora” para logo a seguir desanuviar a expressão com um sorriso reconciliador: “Vou ver esse mar maravilhoso que o Nosso Senhor nos deu”. O ex-tanquista das FAPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, o exército do MPLA de 1974 a 1991) vê-a afastar-se e retoma o raciocínio posto em pausa. Duplica a ideia: “Ouviu bem. Não escreva o meu nome”. Mas porquê tanto medo, se a liberdade de expressão é uma das garantias que João Lourenço trouxe? “Não é bem assim, as pessoas mudaram, mas o sistema é o mesmo, as práticas não se transformaram muito.”
A 500 metros dali, sentado num outro banco de betão da elegante marginal de Luanda, Domingos Jaime Ngola, há 29 anos nascido no Huambo, licenciado em Direito e desempregado, diz o mesmo: “Substituímos o seis por meia dúzia”.
O Observador ouviu esta ideia ser repetida por diversos interlocutores em Luanda, em março — quando a pandemia ainda não tinha imposto uma cerca sanitária à capital angolana. E agora, ao telefone, quando a Covid-19 obriga ao uso da máscara em todos os espaços abertos ou fechados, incluindo dentro do carro, mesmo que se viaje sozinho, o que já teve um desfecho trágico (já lá vamos).
O mesmo desabafo-queixa foi reproduzido nos últimos dois sábados marcados por manifestações em Luanda. Os dois protestos tocam em dois pontos nevrálgicos do plano traçado por João Lourenço quando tomou posse a 26 de setembro de 2017. A grande luta contra a corrupção, que neste sábado levou uma centena de pessoas às ruas pedindo a demissão de Edeltrudes Costa, chefe de gabinete do Presidente da República (terá recebido 15 milhões de euros sem proveniência explicada e uma reportagem da TVI revelou que uma empresa de que é proprietário estaria a alegadamente beneficiar do Estado).
E a grande promessa da recuperação económica que no sábado passado, quando o calendário assinalou três anos da chegada de Lourenço ao poder, levou às ruas de Luanda centenas de descontentes com a política seguida pelo palácio da Cidade Alta. Foi a quinta marcha contra o desemprego, reclamando a promessa de João Lourenço da criação de 500 mil empregos; a última tinha sido no início de agosto.
Descontentamento e protestos em Luanda marcam 3 anos de governo de João Lourenço
A contestação social à governação de João Lourenço tem subido de tom, findo o estado de graça aberto no dia 26 de setembro de 2017. A dois anos de novas eleições, João Lourenço tem recebido a promessa de um movimento de jovens que está em crescendo nas redes sociais com o slogan irónico: “JLo [ acrónimo de João Lourenço, verbalizado em Angola como Jeilô], em 2022 vais gostar” já perpetuado neste ritmo. Resta saber se esta onda salta da internet para a ação com propostas concretas pois “não são os slogans que vão alterar o quadro político de Angola em 2022. Isso não remove o MPLA do poder” como disse o ativista cívico Jeremias Benedito “Dito Dali” à Deutsche Welle.
Na marginal de Luanda, o ex-militar diz-se “desesperançado”. Trabalhador de uma empresa estrangeira ligada aos petróleos, desvia o olhar da mulher dos “bidons” e fixa-o num homem que, em frente, na baía, meio corpo mergulhado no Atlântico, desenha no meio dia luminoso uma coreografia com uma espécie de caça borboletas gigante branca. “Está a apanhar peixe. O povo não o consegue comprar. Quando JLo chegou ao poder, comprávamos uma caixa de peixe carapau por 15 mil kwanzas [20 euros]” — o salário mínimo, “o verdadeiro, não aquele que dizem aí na TPA [Televisão Pública de Angola], é de 25 mil kwanzas [33 euros]”. Agora, “essa mesma caixa está a 38 mil”, atualizou neste sábado à noite por Whatsapp (a via preferida de muitos angolanos para comunicar e fazer passar informação).
“As pessoas já estão a começar a sentir saudades de Zédu”
“Se João Lourenço continuar assim, não sei se vai fazer segundo mandato… ele fala dos marimbondos [vespas, metáfora usada pelo Presidente para se referir aos que enriqueceram à custa do erário público] para aqui, marimbondos para ali, mas ele está a marimbar-se para o povo, que está mesmo a passar mal, falta comida”. E, continua o ex-FAPLA: “As pessoas já estão a começar a sentir saudades de Zédu porque ele ia dando comida, mais ou menos barata”.
O sociólogo angolano Paulo Inglês diz que isso era expectável: “José Eduardo dos Santos é muito mais inteligente do que João Lourenço. Se este não resolver o problema da situação económica vai ser vítima da síndrome da cebola do Egipto [passagem bíblica em que o povo hebreu, depois de fugir da escravidão egípcia, chora pela comida que tinha no cativeiro], as pessoas vão ter saudades do tempo de JES”.
Já há muitos que o dizem sem rodeios. “O outro Presidente podia roubar, a filha roubou muito, mas quando não havia comida ele mandava trazer barcos cheios de alimentos e enchia os armazéns” acredita um outro ex-combatente das FAPLA, nascido em 1961. A descansar num banco de jardim perto do porto de Luanda, sem um olho, apagado por um estilhaço no Uíge que o tratamento em Cuba não recuperou, pergunta com o desalento de estar sem trabalho há muito tempo: “Quem cuida da gente? Ninguém”.
Durante muito tempo, admite o general na reforma Pedro de Morais Neto, foram adotadas “medidas populistas, o sistema dava pão, tudo era subsidiado,” pelo que não admira que alguns suspirem pelo passado. “Vêm aí tempos difíceis com a crise do petróleo e o coronavírus, nem quero imaginar…”, prevê o membro do Bureau Político (BP) do MPLA e antigo Chefe de Estado Maior da Força Aérea.
“Antigamente, no tempo do JES, também havia quem suspirasse pelos tempos do colono”, desvaloriza uma funcionária de topo de uma petrolífera estrangeira. O que ainda se passa hoje, nota Pedro de Morais Neto, ao fazer um balanço do consulado de João Lourenço.
Apesar de elogiar a ação do Presidente em vários setores, o antigo Chefe de Estado Maior da Força Aérea constata que “tarda a chegar, e a consolidar-se, a melhoria das condições de vida e de trabalho para as populações mais necessitadas, que devem ser o alvo preferencial” da governação. “Há velhos nossos das zonas mais rurais que não conhecem o sabor da independência [de Portugal, alcançada em 1975] e quando lhes dizemos que estamos independentes perguntam: ‘Então quando é que essa independência vai embora?’”.
Com a grande promessa — recuperação económica — a falhar e a grande luta — contra a corrupção — a trazer-lhe inimigos, João Lourenço pode ficar encurralado, percebeu o Observador depois de conversar com mais de duas dezenas de angolanos que pensam o país. Numa profunda crise económica, com o desemprego a ultrapassar os 30%, agravada pela pandemia da Covid-19, e uma ação governativavisível muito focada no combate anti-corrupção, JL arrisca-se a perder o apoio em duas frentes: o do povo que viu a sua vida piorar de uma forma dramática e o das elites endinheiradas do MPLA, que enriqueceram no sistema montado por JES.
Uma coisa é certa, há uma ausência omnipresente em Luanda: a de José Eduardo dos Santos. E se um regresso do eduardismo parece inverosímil, segundo os políticos e analistas com quem o Observador falou, a prudência aconselha a não menosprezar o impacto negativo que pode ter no músculo político de João Lourenço, como veremos mais à frente.
“Promessa não se come”, lia-se num dos cartazes da manifestação contra o desemprego do sábado. Que promessas não se cumpriram? Afinal, Angola mudou com João Lourenço? Alguma coisa, mas não o MPLA. E aí poderá residir o problema que deixa o país numa “encruzilhada”, expressão cada vez mais ouvida em Luanda em círculos académicos e políticos.
“Este é o nosso 25 de Abril”
Três anos é muito tempo? Depende. Talvez não seja o bastante para dar razão a uma das expressões mais em voga em Angola entre 2017 e 2020 (tanto quando a palavra “marimbondo”) — a “mudança de paradigma” que João Lourenço terá protagonizado ao chegar ao palácio cor-de-rosa do tempo colonial, na colina de São José, na Cidade Alta.
É para aí que se inclina uma das vozes académicas mais avisadas e reputadas sobre assuntos angolanos, a de Ricardo Soares de Oliveira: “Ainda é prematuro dizer isso”. O que não significa que não tenha havido “uma evolução política relevante, que não se pode pura e simplesmente ignorar ou rejeitar porque ela está lá”, ressalva o professor de estudos africanos da Universidade de Oxford. Tendo em conta que o atual Presidente “tem mais dois anos para realizar algumas dessas alterações prometidas desde 2017, pode ser que, cumulativamente, elas resultem na tal mudança de paradigma”.
No conhecido restaurante Convés, do Clube Naval, na ilha de Luanda, Alexandre Lages, funcionário de uma multinacional angolana, prende o olhar nos barcos dos milionários que enchem a marina em frente — “São tantos e ninguém sabe de quem são, enquanto o povo não tem de comer…”— , para os arranha-céus do outro lado da baía, um sky-line à moda Dubai: “Este é o nosso 25 de Abril, e é o Presidente Lourenço que no-lo está a dar”.
Ignora o grito “Chuta!” vindo de uma mesa ao lado para o ecrã de televisão que passa o jogo do Porto com o Rio Ave para dizer: “Precisamos de mudar a sociedade. E JLo tem vontade política para o fazer, de uma forma subtil está a fazer uma revolução social, a acabar com os privilégios dos intocáveis”. A exoneração de figuras ligadas ao anterior Presidente, os processos instaurados a dois dos filhos de JES (Filomeno dos Santos foi mesmo condenado a 5 anos de prisão no processo dos “500 milhões” do Fundo Soberano, Isabel dos Santos viu as suas contas e bens serem arrestados e foi constituída arguida), bem como a antigos governantes e a algumas peças-chave de Zédu, entusiasmaram muitas pessoas como Alexandre Lages. Mas ele vê mais em João Lourenço do que o “exonerador implacável” como lhe chamaram depois da vaga de demissões em 2017.
O “Mimoso” que não saía do quintal agora é o “exonerador implacável”
Vê um Deng Xiaoping (como o próprio se intitulou) que vai ser o “Presidente do desenvolvimento” — tal como o líder chinês o foi entre os anos 70 e 90 do século passado —, mais do que um Mikhail Gorbachov, a quem um quadro sénior da banca angolana que falou ao Observador sob reserva de identidade comparou. “Só receio que lhe aconteça o mesmo que ao líder russo [que depois da glasnot (transparência) e da perestroika (reestruturação) teve de renunciar ao poder]”.
Já o académico de Oxford não subscreve, nem de perto nem de longe, a analogia a Gorbachov e a sua Perestroika: “Esses termos são exagerados”. Se é verdade que não “é business as usual e que há uma viragem em relação aos anos de José Eduardo dos Santos”, também “importa compreender as profundas linhas de continuidade”.
Com uma interpretação ambivalente sobre os três anos da Presidência de Lourenço, despojada de visões entusiásticas de uma qualquer revolução angolana e de ilusões sobre a natureza do partido no poder, Ricardo Soares de Oliveira diz o mesmo que Sérgio Calundungo, do Observatório Político Social de Angola (OPSA): “Angola mudou mais do que alguns dizem mas muito menos do que outros apregoam”.
Num aspeto, o autor do livro Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil não hesita: “O grande fator inovador da administração do Presidente Lourenço desde 2017 foi o uso político da luta anti-corrupção”. Esta foi hasteada como a grande bandeira da sua governação mas tem sido duramente criticada (veja o balanço desta ação aqui) por ser alegadamente seletiva e hipócrita (nem todos os que lucraram com uma corrupção endémica e sistémica estão na mira objetiva da justiça) e ser ineficaz num dos seus objetivos pragmáticos: a recuperação do capital desviado para interesses privados.
Combate à corrupção: a bandeira de João Lourenço que se tornou numa espada de dois gumes
“Há muitas forças contraditórias. Há muita ambivalência. Isto ainda está muito aquém de um Estado de Direito que de forma impessoal implementa a lei”, conclui Ricardo Soares de Oliveira.
Mas “o tempo é uma variável contra quem governa”, diz o alto quadro com quem o Observador conversa num dos últimos pisos de um banco muito movimentado, no centro de Luanda, na expectativa de que JL consiga levar a bom porto as mudanças preconizadas.
A 15 minutos de carro dali, na tarde quente do Sambizanga, musseque onde José Eduardo dos Santos terá nascido, Francisco Silva, de 67 anos, carrega nas palavras para se queixar — “A vida está cada vez mais pior” — mas diz que três anos é pouco tempo para saber se João Lourenço “vai mudar as coisas”. Ao lado, de fala rápida e olhos nervosos, Horácio Gil, 49 anos, que foi militar e não tem emprego “há tempo demais” não está para contemplações: “As pessoas achavam que com o novo Presidente as coisas iam mudar, ele ia resolver algumas coisas, mas não se dá conta de nada. Ouvimos nos noticiários que ele faz isto e aquilo, mas não vemos nada, não se faz sentir nada. Não melhorou NA-DA”, soletra para enfatizar .
Encosta o tronco semi-nu enfiado numa camiseta de alças na parede: “As coisas estão péssimas. Dantes eu comprava um saco de arroz de 25 kg a 3 ou 4 mil kwanzas, hoje pago 14 mil, o preço das coisas não condiz com o nosso salário”. Afasta as moscas e corta o ar com gestos que contabilizam os seus encargos: “Como fazer a despesa da minha casa? Tenho cinco filhos, tenho mulher, a mulher precisa fazer o cabelo, preparar-se, né? Com 30 mil kwanzas o que é que eu vou fazer? Não chega para nada, não dá nada. Preciso beber uma cerveja, fazer compras de casa, com que dinheiro? Salário está muitas vezes atrasado, fazemos vales, quando chega dinheiro tenho de pagar o vale, é comer adiantado para depois pagar atrasado”.
“José Eduardo dos Santos não levou o petróleo nem os diamantes…”
Lembrança Teixeira pega no funge com as mãos e molha-o no caldo de uma panela larga e funda, assente num banco dentro do mercado de São Paulo, onde trabalha há 39 anos (o mesmo onde a mãe de José Eduardo dos Santos vendia hortaliças e fruta). “Difícil, a vida tá muito difícil para todo o mundo”. Já estava complicada antes da pandemia, mas agora piorou. Só pode ir alguns dias por semana para o mercado, onde tem a sua banca cheia de remédios tradicionais coloridos e “muitos quitutes” — neste caso são doces, como as deliciosas paracucas de amendoim e caramelo, por exemplo. Compõe o lenço branco e rosa que lhe esconde o cabelo e quase sorri: “Mas estamos de pé, a respirar. E sem guerra”.
Mais perto do mar, no bairro Azul, por trás do memorial gigante e solitário de Agostinho Neto, três zungueiras (vendedoras ambulantes) queixam-se do IVA (imposto estabelecido pela administração de Lourenço). Vieram de Viana, de onde trazem fruta da Praça do Trinta, uma viagem de quase duas horas de candongueiro (táxi coletivo) até à porta do Shoprite, cadeia de supermercados. “Estamos tristes, muito tristes, porque os negócios estão mal, venda não está a andar, os clientes não compram, está tudo muito caro, a culpa é do IVA, não vêm aqui à loja, ou então gastam tudo lá dentro “, diz a mais velha atrás de uma bacia grande cheia de tomates.
A carga fiscal a que os angolanos não estavam habituados é uma das queixas constantes a par da moeda fraca que não lhes deixa atravessar fronteiras para comprar bens para depois comercializarem ad hoc no país. A quebra da economia informal — de que 70% da população angolana vive, segundo o Instituto Nacional de Estatística —, muito causada pela política do governo de tentar controlar a venda nas ruas, agora sofreu um forte abalo com a pandemia.
No mesmo bairro Azul, num escritório simples, David Mendes, que em tempos foi conhecido como o “advogado dos pobres”, diz que há muito tempo que há fome em Angola, e em Luanda, mas as pessoas não estão “a querer aceitar isso. Quais são as famílias que conseguem fazer três refeições por dia? São raras. Aquelas que têm alguma capacidade económica, estão com duas refeições, no máximo, ao dia”. Nem isso agora, em tempos de Covid-19, comprova ao telefone Maria Pereira, dona de uma pequena loja, a que chama de cantina, no bairro do Prenda. “Há gente que não tem nada mesmo para comer”.
O balanço económico destes três anos é “extremamente negativo”, atesta o economista Carlos Rosado de Carvalho, que integra o Conselho Económico e Social criado nesta terça-feira por João Lourenço. O também jornalista e ex-diretor do jornal Expansão lembra que o novo Presidente já herdou um país em recessão económica antes de prosseguir: “Todos os indicadores económicos são maus: inflação em 23,41%, com previsão de chegar a 25%, desvalorização da moeda, endividamento em alta”. O desemprego não para de crescer — está na casa dos 32,7%, o que traduzido dá 4,7 milhões de angolanos —, a pobreza de aumentar, Angola está nos 20 países com os piores ambientes de negócio do mundo e o investimento estrangeiro não chega.
Num país que é 95% dependente do petróleo — 60 a 70% da receita pública vem daí —, a queda do preço do barril, que chegou a estar a mínimos de 20 dólares (quando o Orçamento de Estado de Angola fez as contas a 55) este ano, foi um rombo tremendo na economia angolana. A agravar um cenário, há um gigante polémico: a dívida pública que está em 113% do PIB, calculando-se que chegue aos 130%. Sérgio Calundungo lamenta que nunca tenha sido objeto de uma auditoria. “Há uma sensação coletiva de que contraímos dívida junto de uma série de países, empresas e instituições, mas há dúvidas se estes serviços foram prestados ao Estado”.
O economista dá um exemplo: “Um empresário que realizava muitos espectáculos, o Riquinho, que trazia artistas como Júlio Iglesias ou Roberto Carlos e muitos outros ao país, para o aniversário do então Presidente da República JES ou para eventos do partido, agora publicamente reclama que o Estado lhe deve. Mas como? Que país é este? Como é que o Estado lhe deve? Então não é um agente privado?”
A somar a isto há ainda o acordo com o FMI que trouxe “políticas recessivas, embora necessárias (é preciso arrumar a casa antes de começar a crescer outra vez) que tiveram impacto na vida das pessoas”, adiciona Carlos Rosado de Carvalho.
Contudo, o balanço das reformas — como as leis da responsabilidade fiscal e do branqueamento de capitais deste ano — encetadas neste domínio não é tão negativo quanto os indicadores, embora sejam manifestamente “insuficientes”, comenta Carlos Rosado de Carvalho.
Uma delas, imposta pelo FMI, e muito atacada, foi a tal “liberalização da taxa de câmbio”. Num país onde o peso das importações é elevadíssimo a repercussão negativa não se fez esperar nos negócios e nos preços. “O kwanza estava sobrevalorizado e agora está no sítio certo, é uma moeda fraca”, certifica o especialista. “Dantes as pessoas iam comprar coisas fora, roupas, carros em segunda mão, por exemplo e vendiam aqui e faziam o seu dinheiro, agora os kwanzas não valem nada, não dá para esse pequeno comércio”, queixa-se Maria Pereira.
O governo tem alguns programas de diversificação da economia, mas faltam fundos para os concretizar. João Lourenço fez nos primeiros anos do seu mandato uma grande ofensiva de diplomacia económica procurando apoio internacional. Por outro lado, como pode ler aqui, está a tentar recuperar algum do dinheiro desviado do erário público para o domínio privado através do combate à corrupção e do programa de privatização.
Todavia, o dinheiro de fora não está a entrar. “É difícil atrair investimento estrangeiro para diversificar a economia, há muita desconfiança”, refere Carlos Rosado de Carvalho. Alguns “‘tiros nos pés’ também não ajudam”, acrescenta. O mais recente foi a “subconcessão de uma licença de telecomunicações, da estatal Angola Telecom, a um investidor egípcio sem concurso público”. Ou uma outra prática mais generalizada, a de “a maior parte dos contratos públicos não estarem a ser por concurso público como manda a lei”.
Não admira pois que na terça-feira passada (29 de setembro), João Lourenço, no discurso da tomada de posse do Conselho Económico e Social que agrega 46 nomes da sociedade civil (algo impensável no reinado de José Eduardo dos Santos) tenha dito que perante “o mar de dificuldades” decorrentes do baixo preço do petróleo e da Covid-19, a “única saída” de Angola é a produção interna.
David Mendes, que também é deputado independente pela UNITA, e presidente da Associação Mãos Limpas, está convencido de que “esta é a pior crise de sempre, salvo a vivida nos anos 80 — fruto da intensidade da guerra, da falta de circulação de pessoas e bens”. Garante que não se compara à de 2014. “As pessoas querem demonstrar a falta de crises pelo produto interno bruto, querendo demonstrar que há maior distribuição per capita: mas isso são só números. As pessoas não são números: são necessidades”.
Acérrimo opositor de José Eduardo dos Santos no passado, o advogado não aceita a responsabilização do anterior Presidente pelo estado depauperado em que o país se encontra como o governo de João Lourenço fez no início. José Eduardo dos Santos viu-se mesmo obrigado a justificar-se, em 2018, numa conferência de imprensa a partir da sua Fundação, para dizer que deixara 15 mil milhões de euros nos cofres do Estado.
https://www.youtube.com/watch?v=ybvxF8rJ_1U
Não podem “passar as culpas para José Eduardo dos Santos”, reitera David Mendes. “Essa é uma forma mais limpa de mostrar a incompetência. Porque se não dermos água e dissermos ‘não dou água porque José Eduardo dos Santos levou todo o dinheiro’ isso serve de fundamento para que não haja prestação de contas. Mas ele não levou o petróleo. O que é que se está a fazer com dinheiro do petróleo (tudo é temporário, tal como está em baixo, também vai subir)? Ele não levou os diamantes…”
O general na reforma Pedro Neto não pessoaliza, mas fala de “um determinado espírito de oportunismo, ganância e falta de patriotismo” na viragem do país para a economia de mercado a partir de 1991. “Não temos outra saída se não ir lutando pelas medidas mais acertadas, que nem sempre são muito populares”. O membro do BP do MPLA (nomeado por JES ainda como presidente do MPLA mas já não Presidente de Angola) não perspetiva um futuro risonho: “Como durante muito tempo adoptámos medidas populistas, o sistema dava pão, tudo era subsidiado, vêm aí tempos difíceis, nem quero imaginar, com a crise do petróleo e o coronavírus”.
A situação piorou drasticamente com a pandemia que veio acentuar as vulnerabilidades estruturais de Angola. Mais de um terço dos angolanos estava privado de comida e água potável e sofreu situações de extrema pobreza em 2019 segundo um estudo do Afrobarómetro, divulgado em junho último. Para combater a Covid-19 é preciso lavar as mãos, mas só 3 em cada 10 cidadãos têm água canalizada em casa ou no quintal e metade não tem eletricidade da rede pública, por exemplo.
“Há pessoas a morrerem de fome, a falência das empresas é assustadora, o número de desempregados é dramático”, confirma, ao telefone, Adalberto da Costa Júnior, o presidente da UNITA. “O país está no limite do desespero. Recebo diariamente, incluindo de professores universitários, pedidos de ajuda para comer.”
O líder do maior e histórico partido da oposição condena algumas decisões do executivo como a do fecho de todas as escolas e universidades. “É verdade que algumas escolas não poderiam estar abertas porque não têm água nem casas de banho mas isso não é comum a todos, há muitos estabelecimentos do ensino privado que poderiam estar a funcionar bem como muitas universidades que agora se viram obrigados a despedir. Isto teve consequências gravíssimas, lançou milhares de profissionais no desemprego”. Dá o exemplo da Universidade Católica, que teve que suspender todos os contratos “de um dia para o outro, depois de estarem meses parados, sem propinas e sem qualquer tipo de apoio”. Isto foi “desastroso, uma irresponsabilidade, representa uma visão escandalosa e criminosa da governação”, acusa o dirigente do partido do “Galo Negro”.
A decisão do fecho de todo o ensino também é contestada por Mário Pinto de Andrade, secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político do MPLA e reitor da Universidade Lusíada: “É um erro gravíssimo, são oito meses sem receita. Todos trabalham, menos o setor da Educação”.
Embora o governo tenha criado programas de apoio às empresas e às famílias mais vulneráveis, bem como a distribuição de cestas básicas de alimentos e de água a milhares de famílias no país, Adalberto da Costa Júnior contesta a sua existência: “O governo não esteve capaz de distribuir cestas básicas a ninguém, diz que não tem capacidade financeira mas depois vemos os “Jovens Unidos e Solidários”, com T-shirts com a cara do Presidente a distribuir centenas de toneladas de alimentos em nome de João Lourenço, demonstrando que ele tem mais dinheiro que o seu governo! É claro que estamos perante um acto puro de campanha eleitoral (explorando a pobreza) com utilização de dinheiros públicos! Isto é um escândalo, uma vergonha, uma ditadura.”
O líder da UNITA contesta ainda a assinatura, em agosto, de um contrato de 148 milhões de kwanzas (198,7 mil euros) pelo Ministério da Cultura com uma empresa para fazer um hino que assinala os 45 anos da independência que se celebram a 11 de Novembro. A música, que apela ao perdão “sem ódio” e à união, varrer “as cinzas” para abraçar e “construir Angola”, levantou um coro de protestos pelo valor elevado. “Dava para construir três escolas”, calcula Adalberto da Costa Júnior. Fonte oficial do Ministério da Cultura respondeu ao Observador que o valor iria ser renegociado.
https://www.youtube.com/watch?v=R426pCmUtLo
Por seu turno, Justino Pinto de Andrade não descarta a responsabilidade do governo na atual crise. Reconhece os “inevitáveis impactos da COVID-19 e da anterior baixa do preço do petróleo”, mas junta-lhes “enormes erros de política económica: com algumas das suas medidas, está a desfazer o tecido económico nacional, alvejando muitos dos que com ele partilharam os benefícios do poder e, que eu saiba, na altura não terá questionado. Prometeu criar 500.000 empregos e, na realidade, está a destruir empregos”. O dirigente do Bloco Democrático reforça “que a classe média está a desaparecer, e os pobres passam à condição de miseráveis, porque todos os preços sobem, fruto não só da pesada carga fiscal, mas, também, da galopante desvalorização da nossa moeda, num país que vive essencialmente de importações”.
Se o Afrobarómetro relativo a 2019 e publicado na semana passada revelava que oito em cada 10 angolanos dava nota negativa ao desempenho económico do governo, não é difícil perceber o que dirão agora. “Dá dó ver como as pessoas sobrevivem, a malta não se revolta, tem medo que venha bala ao caminho, tem medo da guerra”, diz ao Observador um antigo elemento das milícias do MPLA, que trabalhou para um dos grandes generais. “Tinham tanta esperança neste Presidente…”
“O pintaínho acabou de sair do ovo, não podemos querer que seja já um galo”
Num tom sempre conciliador, o almirante “Miau”, André Mendes de Carvalho, líder da segunda maior força de oposição no parlamento angolano, a CASA-CE (Convergência Ampla de Salvação de Angola-Coligação Eleitoral) pede paciência: “O pintainho acabou de sair do ovo e não podemos querer que seja já um galo ou uma galinha. Tivemos uma situação muito má no passado e agora houve uma abertura, temos de encorajar esses passos, vigiando para que não se desviem da situação certa”. Claro que “nem todos os que rodeiam João Lourenço são santos, nada disso, alguns são grandes pecadores que cometeram erros no passado, mas são os homens com quem ele tem de trabalhar e compete-nos ajudar, o que não significa passar-lhe um cheque em branco”.
Adalberto da Costa Júnior é menos complacente: “Como ajudar, se JLo não aceita fazer consensos com os outros partidos? Como vigiar, se JLo não retira o acórdão do Tribunal Constitucional que limita a fiscalização dos deputados ao governo? Como encorajar, se o MPLA não aceita as várias Comissões de Inquérito, bem documentadas, sobre vários escândalos, que a UNITA apresentou, negando a abertura dos dossiers, e permanecendo a Assembleia Nacional de mãos atadas? Como acreditar na transparência, se JLo não aceita fazer a sua declaração de bens? Estamos numa era da democratização e tudo o que citei não é uma prática”.
A mesma leitura desencantada é feita por Filomeno Vieira Lopes, professor da Universidade Católica de Luanda e membro do Bloco Democrático, um dos seis pequenos partidos com assento na Assembleia Nacional inseridos na CASA-CE. “No essencial o regime mantém o seu sistema”, lamenta o economista, não se convencendo sequer com a luta anti-corrupção: “Está limitada à Procuradoria Geral da República e aos órgãos do Serviço de Investigação Criminal, dependentes do Presidente da República que os manobra politicamente, indicando não só os alvos, mas também os procedimentos, mantendo-se o fundamental que é não manchar o prestígio do partido no poder, importante instrumento para a reeleição de João Lourenço”.
Este “não teve a coragem nem de romper com a praxis de partido absoluto, nem com a Constituição (que, permitindo um exacerbado poder no Presidente da República, facilita a corrupção), nem restabeleceu o poder fiscalizador da Assembleia Nacional”, critica o académico e político.
Por seu turno, o escritor luso-angolano José Eduardo Agualusa, que sempre foi crítico do regime de JES, diz que “há mais ambiente democrático mas falta concretizar muitas coisas, como as eleições autárquicas que continuam a ser adiadas sem data. E não há nenhuma democracia digna desse nome sem poder local. JLo não completou esse processo de democratização”.
Ora aqui está uma promessa para 2020 que não foi cumprida, o que muito irrita os outros partidos. Este seria o ano da estreia de eleições autárquicas em Angola. O seu adiamento ganhou novo pretexto com a Covid-19 mas a verdade é que até março elas ainda não tinham calendário previsto. Serviam para que grandes parangonas enchessem a parte frontal do edifício do Ministério da Reforma, no subúrbio de condomínios ricos de Talatona, mas pouco mais.
O governo foi fazendo um pacote legislativo que teria de ser aprovado pela Assembleia Nacional. “Um gesto inteligente, ganhou tempo quando percebeu que o MPLA estava a perder popularidade”, explica ao Observador um ex-ministro de JES e homem próximo da Cidade Alta, dentro de um carro de vidros fumados enquanto dá voltas pelas ruas de Luanda.
“O nível de descontentamento social é tão grande que existe a leitura de que o MPLA possa perder as grandes autarquias. E que, por isso, não há uma intenção de fazer com que as eleições ocorram este ano”, clarifica Sérgio Calundungo. O executivo já disse também que não tinha capacidade para organizar 164 eleições, logo só as faria em algumas municipalidades, o que deixa a “porta escancarada para a escolha daquelas em que o MPLA poderá ter melhor performance”, lamenta o ex-político.
Adalberto da Costa Júnior não se conforma com o postergar sine die das eleições: “O governo diz que com a Covid não se podem fazer eleições, mas fazem-se em todo o lado com as devidas precauções como no Malawi, que até tem mais casos do que Angola, ou em Cabo Verde, onde ocorreram tranquilamente”. Queixa-se de a pandemia ser usada para criar mais restrições de movimentação aos partidos: “Nós líderes partidários temos tudo afunilado num gabinete que decide se podemos sair ou não de Luanda enquanto vemos a CNE e o governo a circular sem problemas e a preparar a campanha eleitoral”. A Covid, avança, “veio complicar ainda mais a vida, porque para além dos problemas comuns e os riscos de saúde, o Governo anda feliz com a limitação da circulação e justifica com a pandemia todas as leis que não está a aprovar e as promessas que não está a cumprir”.
Também o almirante “Miau” se opõe ao “atraso tático das eleições locais”, reclamando que “devem ser realizadas tão cedo quanto possível, mas respeitando as regras de segurança sanitária e não de forma atabalhoada”.
No entanto, chama a atenção para a necessidade de as leis já aprovadas terem de ser corrigidas. Com o quadro legal em vigor, “apenas o MPLA tem dinheiro para fazer eleições já (porque no passado se apropriou dos bens públicos e pode dispensar agora verbas do Estado)”. A lei diz que o poder central “só apoia à posteriori e para os partidos que atinjam 15%. Nas últimas eleições nenhum dos partidos da oposição teve mais de 10%, com excepção do maior, a UNITA (26,7%)”.
A discussão em torno das eleições locais, bem como a polémica escolha do presidente da Comissão Nacional de Eleições, Manuel Pereira da Silva “Manico”, investigado pela Procuradoria Geral da República (PGR) pelo crime de corrupção, animou nos primeiros meses do ano a oposição e a sociedade. Foi, aliás, num protesto a favor das autárquicas, que o conhecido ativista Luaty Beirão (que esteve preso e fez uma greve de fome de 36 dias no reinado de José Eduardo dos Santos), apesar de ter sido anteriormente recebido por João Lourenço, se viu detido algumas horas. E o alerta para que a repressão policial também era uma realidade no “paradigma” de Lourenço surgiu numa manifestação da UNITA contra a escolha de “Manico”, em fevereiro.
A morte do jovem médico e dez ativistas em greve de fome
A ação da polícia tem servido de argumento aos que dizem que a abertura de João Lourenço ao respeito dos direitos cívicos e políticos não é o anunciado. Antes da Covid-19, já os partidos da oposição e os ativistas sociais e políticos se queixavam da repressão em alguns protestos nas ruas. Mas o assunto dos excessos das forças de segurança, que nesta “nova normalidade” está quase permanentemente nas redes sociais, ganhou outra dimensão a 1 de setembro, quando Silvio Dala, um jovem médico pediatra, morreu na esquadra.
A trágica história conta-se em poucas palavras, aquelas que Luaty Beirão escreveu na sua conta do Twitter: “Estava no seu carro, sozinho, sem máscara. Violou a estupidez tornada lei. ‘Vamos para a esquadra!’. Lá ‘caiu’, bateu com a cabeça, morreu! A discussão é só se foi morte acidental ou ‘assistida'”.
Na versão do comando da polícia de Luanda, Sílvio Dala apresentava “sinais de fadiga, teve uma queda aparatosa” e morreu no caminho para o hospital. O Sindicato Nacional dos Médicos Angolanos não demorou a contrariar essas informações: os ferimentos resultaram de “pancadarias e duros golpes” de que terá sido vítima na esquadra. Muitos revoltaram-se, houve várias manifestações em quase todo o país e a PGR abriu um inquérito.
Esta não foi a única morte por violência policial na fiscalização das regras da pandemia: no final de agosto, a Amnistia Internacional tinha contabilizado sete mortos às mãos dos agentes de segurança, por não usarem máscara, entre maio e julho, avisando que o número pecava por defeito.
O problema ultrapassa as circunstâncias da Covid-19 e as agressões policiais nas manifestações — que também já atingiram os apoiantes de Abel Chivukuvuku, antigo dirigente da UNITA que está a tentar formar um partido, o PRA-JA Servir Angola, desde 2019, sem sucesso: o Tribunal Constitucional chumbou-o três vezes alegando irregularidades nas assinaturas. Há várias relatos de pessoas, sobretudo jovens, que morrem em circunstâncias pouco claras durante operações das autoridades ou que são vítimas da sua ação violenta.
Há duas semanas, por exemplo, no dia 24, ficou a saber-se que dez ativistas tinham sido libertados em Malanje depois de uma semana de cadeia pelo alegado crime de desobediência às autoridades, quando tentavam manifestar-se contra as más condições de vida em Kalandula. Em protesto pela sua prisão e por alegadas agressões da polícia, chegaram a fazer seis dias de greve de fome.
“Apesar de haver uma abertura intangível do regime, “a repressão policial e o controlo securitário continuam”, denuncia Sedrick de Carvalho, ativista e um dos révus — de “revolucionários”, os 15+2 jovens críticos do regime de JES que estiveram presos em 2015. Aliás, “o país ainda tem presos políticos de quem não se fala: estão oito jovens detidos em Cabinda”, recorda.
Em sintonia com o ativista está Filomeno Vieira Lopes: “A repressão sobre as manifestações, a prisão arbitrária de manifestantes, penalizados com multas nos tribunais bem como a perseguição personalizada de oponentes voltou a níveis sofisticados do anterior poder”.
O tema é caro a muitos jovens — faixa predominante dos 32 milhões de angolanos, em que a esperança média de vida é de 61 anos. Vários políticos e analistas sublinham o peso que a juventude angolana pode ter e que JL não deve ignorar se não quiser cometer o mesmo erro de JES. (O movimento dos “révus” marcou o princípio do declínio político do anterior Presidente.)
Este grupo populacional tornou-se numa gigantesca massa de descontentes, repara Filomeno Vieira Lopes: “É uma juventude sem grande esperança”. O ensino é débil, o emprego inexistente. “Muitos chegam à porta da universidade e não têm dinheiro para continuar mas também não têm trabalho”. O caminho para o protesto fica aberto: “Há ali pessoas com grande potencial que entretanto estão paradas, onde é que vão pôr a sua energia?”
A juventude insatisfeita tem uma arma que JES não previra. Os telemóveis, a internet, as redes sociais. “Os jovens comunicam a uma velocidade que nem o Presidente nem os seus serviços controlam, podem deixar de comer mas não deixam de comprar a recarga do telemóvel”, nota o quadro bancário que pediu anonimato. “Passaram a ter formas de luta que ainda não eram conhecidas pela própria segurança do Estado”, acrescenta Filomeno Vieira Lopes. “A oposição tradicional trabalhava dentro do politicamente correto, numa linha perfeitamente previsível para quem está a defender o regime”, reflete o professor universitário. Agora é diferente, como se viu com JES, e João Lourenço já começa a sentir os efeitos deste fenómeno.
Polícias sentados em cima de advogado no banco do carro e a saída da SIC Notícias de Angola
A abertura do regime sempre foi relativa, “as expectativas das pessoas é que as levaram a acreditar que seria muito maior”, declara Sérgio Calundungo. E se em Luanda, onde houve manifestações no início do ano com “a polícia a reagir repressivamente (uma vergonha), porque alegou que os manifestantes não estavam à distância regulamentar dos órgãos de soberania”, imagina o que será nas províncias. “Houve abertura, mas o ADN da repressão policial continua lá. Não houve reformas significativas na polícia”.
Todavia, o economista prefere valorizar outro ângulo: “O nível de mobilização: nos últimos dois anos e meio, cresceu o movimento reivindicativo. Alguma coisa se está a gestar. As pessoas atuam mais do que no tempo de José Eduardo dos Santos. Ou seja, os cidadãos estão muito mais à vontade para falar. Receio que, se Lourenço não for suficientemente cuidadoso, não souber gerir bem e apostar na velha lógica da repressão policial, a situação vá piorar”.
Sergio Calundungo ressalta que “o país ainda está a fazer aquela curva apertada que se pode ver em três elementos fundamentais: o aprofundamento democrático, a recuperação económica e a reconciliação social”. As três “ainda estão por alcançar”, apesar de “o Presidente ter promovido uma série de mudanças: a Angola de Lourenço não tem nada a ver com a Angola de José Eduardo dos Santos”.
O coordenador do OPSA insere aqui aquele que parecia ser um dado adquirido no primeiro ano de JLo: a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa. “Há uma tendência positiva, mas ainda está por se confirmar e assegurar que não vai haver um retrocesso”. Um episódio ocorrido este sábado (dia 3) fez alguns franzir de sobrancelhas e o Sindicato dos Jornalista emitir um comunicado acusando a TV Zimbo, que agora está no domínio do Estado, de censura. Em causa estava uma rubrica de Carlos Rosado de Carvalho que não foi para o ar no espaço habitual porque se referia ao caso Edeltrudes Costa.
Na perspectiva de Filomeno Vieira Lopes o recuo já começou. “Renasce a tendência de controlo da comunicação social, conjugada com a manipulação da informação e omissão das posições da oposição, o impedimento dos profissionais constituírem os seus próprios órgãos com independência e do controlo estatal de órgãos expropriados. A aparente abertura da comunicação social estatal situa-se apenas no marcos da crítica à anterior presidência”.
O seu correligionário e líder do Bloco Democrático, Justino Pinto de Andrade, especifica: “A comunicação social pública serve de verdadeira correia de transmissão do MPLA. Com a diferença de que, no passado, o partido apresentava-se como uma força unida em torno do seu líder. Agora, temos um MPLA aparentemente unido em torno do líder, mas somente na aparência pois, em surdina, é claro e evidente a enorme clivagem que está aberta. É indisfarçável o descontentamento que grassa no seu seio. A comunicação social oficial faz questão de dar voz apenas aos que publicamente se manifestam favoráveis ao atual Presidente”.
O decano de Economia da Universidade Católica de Luanda refere o arresto de “uma vasta rede de meios de comunicação social antes controlados por importantes dirigentes da época de José Eduardo dos Santos, alegadamente porque se apropriaram de recursos públicos” para mostrar como “os colocou sob os equivalentes órgãos públicos que ele hoje controla de um modo absoluto. As suas linhas editoriais já se confundem”.
Adalberto da Costa Júnior concretiza: “Veja-se o caso da televisão Zimbo e do jornal O País, entregues à TPA (Televisão Pública de Angola) e ao Jornal de Angola. O que é que o senhor João Lourenço fez? O setor público, que é partidário, ficou com a gestão de mais meios de comunicação social. O que se perde? Pluralidade e independência das agendas editoriais, fica tudo no domínio de um estado-partido. Este é o senhor João Lourenço. É a continuidade do anterior Presidente. Pelo menos o JES tinha estes sectores na área privada, embora os donos fossem seus assessores”.
Não é só a oposição a estar apreensiva com esta concentração dos media na esfera pública. O Sindicato dos Jornalistas Angolanos manifestou-se recentemente: “A sociedade e a própria classe jornalística vão sentindo já um afrouxar da abertura que os media públicos vinham tendo desde o início do consulado do novo governo”, disse o secretário-geral à agência Lusa. Teixeira Cândido não entende, por exemplo, porque é que as manifestações sobre a morte de Sílvio Dala em quase todas as províncias não foram noticiadas pelos órgãos de comunicação estatais.
Ou porque é que se suspendeu o canal português SIC Notícias da plataforma de distribuição de televisão por satélite DSTV. “Esta interrupção não é original”, salienta Reginaldo Silva, um dos mais reputados jornalistas angolanos, atualmente membro da Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana, que desconfia do argumento usado para o canal português sair da circulação em Angola. “Não acredito, como não acreditei no passado”. Em 2016 a SIC N “também desapareceu da DSTV num processo estranho que punha em causa toda a lógica da concorrência numa economia de livre mercado”, lembra.
“Hoje sabemos que a DSTV foi pressionada ao mais alto nível a retirar a SIC N, sendo demasiado evidentes as motivações em vésperas das eleições de 2017 e sobretudo depois daquela reportagem sobre o assalto ao castelo onde os milhões de Angola se passeavam pelo Dubai na maior das calmas”, recorda Reginaldo Silva. Passadas as eleições, a SIC N voltou a Angola “pela DSTV tendo este regresso sido encarado como um sinal de abertura do ‘novo regime’ liderado por JLo”.
Embora possa haver um abrandamento na liberdade de imprensa, o jornalista e economista Carlos Rosado de Carvalho defende que não se compara com o que havia no tempo do JES: “As entrevistas são mais livres e os debates da Assembleia Nacional são transmitidos pela TPA e pela Rádio Nacional de Angola”. Claro que “ainda há muitas pontas soltas” mas as “pessoas falam mais, criticam mais”. (Um dia depois de ter proferido estas declarações ao Observador o jornalista viu-se envolvido num caso que considerou de censura).
Será?, interroga-se David Mendes. “Para analisarmos uma abertura, temos dois paradigmas importantes: a opinião que se emite que é agressivamente criticada pelo próprio Presidente e pelos seus ministros, e os órgãos judiciários”. O também deputado independente pela UNITA dá dois exemplos deste último aspeto: um, o do general Kagamba, casado com uma sobrinha de JES, “algemado em público por uma dívida, trazido para Luanda e metido na cadeia para dois dias depois o libertarem”. Com este caso “estão a passar um sinal de ameaça — ‘Portem-se bem ou há consequências’. Se fazem isto a um general, membro do Comité Central do partido no poder, o que farão a um cidadão comum?”
O outro caso é o de um “advogado em Benguela, algemado e posto no banco de trás de um carro de polícia com os agentes sentados em cima dele, porque interveio num caso de uma cliente que estava a ser presa”. Com isto “estão a passar uma mensagem de autoritarismo”.
A nomeação da filha de João Lourenço para a Bolsa de Valores
Paulo Inglês, vice reitor do Instituto Superior Jean Piaget de Benguela lê isto de outra maneira ainda menos estrutural. “JES e JL0 têm personalidades diferentes e isso influencia o modo como a gestão política no quotidiano é feita”, diz o sociólogo. O estilo de governação tem consequências e uma delas pode ser a maior abertura na comunicação social. Mas “a máquina partidária não mudou e isso conta muito”. Não há dinheiro, logo aquela “arrogância do quero, posso e mando” diminuiu. Isto é, “não temos a certeza se esta mudança de paradigma de maior aproximação é por princípio, ou porque [o MPLA] perdeu o poder económico”.
O investigador adverte para o facto de já se respirar algum ambiente de pré-campanha eleitoral que não causa só um controle mais ténue da comunicação social. “Alguns académicos estão a ser contactados para desistirem de criticar do Presidente”. O mesmo disse ao Observador um professor e ex-político: “Não é oportuno falar agora, familiares meus têm sido pressionados para me aconselharem a ficar calado sobre o Presidente e eu quero poupá-los, para já, a problemas”.
Certos de que “dentro do MPLA os fiéis de JES estão a fazer uma espécie de bloco, de contrapeso ao JLo” algumas pessoas “pensam que é preciso apoiar o Presidente, para que ele possa ter capital político suficiente para poder fazer reformas no MPLA e no país”, indica Paulo Inglês. Um comentador político, que sempre foi muito crítico do poder, advoga basicamente isso ao Observador: “Temos de apoiar Lourenço para evitar que a ala mais conservadora escolha alguém que nos leve de volta para uma ditadura”.
O sociólogo não entende o argumento. “É como se o Presidente, que tem tanto poder constitucional e dentro do partido, não consiga dominar o MPLA”. O sociólogo, que esteva alguns anos afastado de Angola, a investigar numa universidade alemã, diz “não esperar grande coisa do Presidente”, que “dá uma no cravo e outra na ferradura”.
O ponto principal, concordam vários interlocutores do Observador, é institucional: o poder está concentrado num só homem, o Presidente, apoiado num partido-estado. E ele não está disposto a abdicar desse desenho constitucional, para o qual precisa do MPLA.
Esta ideia de que tudo depende do Presidente, que em Angola é mais forte do que noutros sistemas presidencialistas, é um problema para o fortalecimento das instituições, insiste Sérgio Calundungo. Mesmo “os aspetos positivos que verificamos ainda remontam à ideia de que o ‘Presidente é que é'”.
Por exemplo, a abertura na comunicação social pública: “Lourenço não teve de mexer na legislação. Foi a atitude dele que fez com que ela ocorresse”. Ou o que aconteceu na Procuradoria-Geral da República, ou nos tribunais — com muito mais investigações a figuras alegadamente corruptas —: o Presidente também não mexeu na legislação. “Tudo subjaz à ideia de que temos um homem forte que faz as coisas moverem-se. Mas nunca temos a ideia de que temos instituições fortes que movem”. Na verdade, a comunicação social e os tribunais têm os mesmos meios (e em alguns casos as mesmas pessoas, adiciona Sedrick de Carvalho).
“Obviamente que isto é a vontade de um homem de fazer com que tudo isto avance”, tal como sucedia com José Eduardo dos Santos. “Há aqui uma mudança, mas não de atmosfera. É como ter mudado a estação do ano, por exemplo. Mas a atmosfera que respiramos é a mesma”, diz Sérgio Calundungo.
“É desejável que, quanto antes, João Lourenço transfira o exercício de poderes que lhe permitem mover as coisas para as instituições. É a tal máxima: queremos instituições fortes e não pessoas fortes. A História provou que a existência de pessoas fortes, na fase pioneira de um projeto político, pode ser algo muito bom, mas se não se conseguem ler os sinais dos tempos — e passar os poderes para instituições que trabalham de forma autónoma — acaba por haver um problema”.
As palavras de Sérgio Calundungo, no Morro Bento, em Luanda parecem ter sido ouvidas por Paulo Inglês, em Benguela: “Pode haver um ambiente mais desanuviado”, aceita o investigador, mas não se retirou o Presidente do centro, que é quase mágico — quando há erros, não são dele, são dos outros”.
Um dos exemplos é o do primeiro caso que fez vacilar a seriedade do combate ao nepotismo prometido por Lourenço. A filha, Cristina Dias Lourenço, foi nomeada administradora executiva da Bovida, a Bolsa de Dívida e Valores de Angola – Sociedade Gestora de Mercados Regulamentados, totalmente detida por capitais públicos, em março. Mas só se soube em agosto pelo Jornal de Negócios. Imediatamente se levantaram os fantasmas de Isabel dos Santos, nomeada pelo pai José Eduardo dos Santos para a Sonangol. O Presidente foi cilindrado pelos detratores, a Bovida saiu a terreiro com um comunicado para explicar que João Lourenço nada tinha a ver com a escolha, fora a ministra das Finanças quem a chamara. Tratava-se do “regresso a casa” de uma profissional altamente qualificada.
Cristina Lourenço tem um currículo inatacável: licenciada em Gestão, pela London School of Economics and Political Sciences, em 2012, concluiu o Mestrado em Gestão de Investimentos, pela Pace University, Lubin School of Business, Nova Iorque. Já tinha estado na Bodiva em 2014 como analista de mercados e era diretora-geral adjunta da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos de Financiamento Externo do Ministério das Finanças. “Não é isso que está em causa, a Isabel dos Santos também tinha curriculum para gerir a Sonangol. Ela é uma ‘pessoa politicamente exposta’ e dá um sinal negativo para a popularidade de Lourenço”, argumenta Paulo Inglês.
Adalberto Costa Júnior não perde a oportunidade para cavalgar a polémica: “Está a copiar os erros do anterior Presidente com a agravante de que este esteve lá quase 40 anos no poder, JLo começou mais cedo, está lá há três anos, isto não é bom”.
Contactado pelo Observador, o Palácio da Cidade Alta preferiu não comentar nem esta nem qualquer outra das polémicas que têm vindo a público, nem as críticas da oposição.
Ninguém se lembra do aniversário do Presidente
São quatro da tarde do dia 5 de março de 2020, em Luanda. A avenida 21 de Janeiro continua a ser um shopping móvel a céu aberto em que jovens, ou nem por isso, vendem tudo o que possa ser transportado nos braços, mãos, peito ou cabeça no meio do trânsito de Luanda, entre as filas de carros: pilhas, vassouras, óculos de sol, telemóveis, cintos, água, lâmpadas, jornais, cintos, roupa, baldes, remédio para ratos…
“Tudo normal, ninguém se lembra sequer que hoje o Presidente Lourenço faz anos”, observa José Teixeira, ex-trabalhador da Transocean, sentado numa pastelaria de mesas cobertas com toalhas de pano do Benfica. “Nada acontece. Se fosse no tempo do anterior Presidente, seria completamente diferente: no 28 de agosto, dia em que Zédu faz anos, era quase feriado, estava tudo engalanado, havia festa por todo o lado, fotografias dele em cada canto, jantares comemorativos”. Como este, por exemplo.
https://www.youtube.com/watch?v=G56GLqtLPEw
O mesmo reparo é feito por Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político Social de Angola (OPSA): “Realizavam-se até torneios internacionais desportivos, grandes eventos”, seguindo a lógica “do endeusamento do Presidente, do culto da personalidade”.
Esse tem sido um trilho evitado por João Lourenço desde que tomou posse como Presidente de Angola, embora haja alguns sinais em sentido contrário, vai avisando Sedrick de Carvalho. O ativista conta ao Observador, num subúrbio barulhento de Viana, como a fotografia do anterior Presidente tem estado a sair de algumas administrações municipais, ficando apenas a do primeiro Presidente do país, Agostinho Neto e a de João Lourenço. “Há um novo chefe e é preciso cerrar fileiras, como eles [do MPLA] gostam de dizer, em torno dele. E como o antigo chefe está em vida então é preciso eliminar o rosto do outro chefe. É assim que funciona o partido”.
Porém, em junho, o rosto de JES saiu dos kwanzas, mas a de João Lourenço não entrou.
Tanto Reginaldo Silva quanto o ativista Rafael Marques assumem que está uma mudança em curso. Mas ambos, na linha de Sérgio Calundungo, apontam para a necessidade de não ter um sistema assente num homem.
“O sistema continua, obviamente, enquanto não se mudar a Constituição nem as mentalidades. Até porque o próprio angolano está preparado para pensar que todas as soluções devem depender de um homem”, declara o líder da organização não governamental Ufolo — Centro de Estudos para a Boa Governação “É mais uma questão de mentalidade do que de argumento constitucional. Nota-se que, mesmo quando as pessoas têm a oportunidade de se organizar, esperam que alguém o faça por elas”. Há uma dependência “extrema e crónica”.
Rafael Marques tem um quase mantra: não se cansa de repetir a urgência de a sociedade se organizar e ter ideias estruturantes. “Depois da experiência que tivemos, porque é que havemos de esperar que seja mais uma vez um homem a dizer, de per se, para onde devemos ir?”, pergunta. “O país não é do MPLA, nem é de João Lourenço, é de todos nós”.
Não basta mudar o Presidente, sustenta. “O governo e as instituições são as mesmas há 45 anos. São os mesmos dirigentes. É o mesmo MPLA. Para mudarmos mentalidades e fazermos surgir sangue novo, precisamos de outras armas: ideias, solidariedade e, sobretudo, algo que nos falta muito — capacidade de raciocínio crítico.”
Por seu turno, Reginaldo Silva, fundador do Sindicato dos Jornalistas Angolanos, aborda uma questão muito discutida em Angola (e em Portugal): a independência do poder judicial do legislativo.
O antigo correspondente da BBC no país africano está convencido de que a administração de João Lourenço está a dar alguns passos nesse sentido: “Não se pode continuar, como no passado, a atribuir ao Presidente o controlo político de todas as instituições governamentais, legislativas ou judiciais”. Agora, “as outras instituições do Estado, nomeadamente as judiciais, têm que efetivamente ser responsabilizadas, porque já têm a chamada luz verde ou a carta branca para tomarem e assumirem as suas responsabilidades como órgão de soberania”. Não é que a separação entre os poderes judicial, executivo e legislativo seja já uma realidade, mas “começou-se” finalmente a fazer alguma coisa nesse sentido, garante.
O juiz do Supremo que condenou o ex-ministro por desvio de verbas e fez o mesmo
Não foi com muito boas cores que este tema foi abordado no primeiro texto sobre o balanço da governação de João Lourenço que Rafael Marques publicou no Maka Angola no dia 26. O jornalista e fundador da Ufolo, discorrendo sobre o ataque à corrupção, chama a atenção para o facto de “as instituições com mais poder e relevância política serem a Procuradoria Geral da República e o Tribunal Supremo”.
Este é chefiado por Joel Leonardo que “representa o retrocesso do sistema judicial”. Rafael Marques considera-o inábil para o cargo e entre os vários exemplos que dá, figura o da condenação do ex-ministro dos Transportes, Augusto Tomás, a 14 anos de prisão (em sede de recurso baixou para oito) por usar receitas do Estado em despesas em áreas diferentes do mesmo setor público. “Acontece que quem o condenou, Joel Leonardo, faz o mesmo, mas com total impunidade.”
O juiz serve a Sedrick de Carvalho para dar um exemplo da manutenção das mesmas pessoas que estavam nas instituições do tempo de JES: “Foi uma das pessoas que votou contra o pedido que membros da sociedade civil fizeram para impugnar a nomeação da Isabel dos Santos para a Sonangol, disse que ela estava muito bem nomeada. Agora ele é quem, em última instância, vai decidir o julgamento da Isabel. Certamente vai dizer que agora ela é culpada. Há muitas contradições neste regime.” Estas são “as mesmas pessoas que compactuaram com o governo de JES, até o atual Procurador, Helder Pitta Gróz, já lá estava, era o adjunto do PGR”.
A Procuradoria Geral da República também não é poupada por Rafael Marques: “A PGR tem revelado um comportamento discriminatório que não se coaduna com os conceitos de justiça e celeridade no pronunciamento e aplicação de medidas de coação”. O jornalista e ativista diz que há rapidez “na detenção de suspeitos de corrupção sem relevância sociopolítica ou peso familiar, para além de meia dúzia de figuras marcadas para o sacrifício; também há celeridade na aplicação de medidas penais graves a quem rouba uma botija de gás ou uma galinha. Os verdadeiros predadores, no entanto, continuam a ser protegidos com medidas brandas”. Por estas e outras razões, defende que o Tribunal Supremo e a PGR passem urgentemente por uma reforma e modernização.
Mas há, de facto, mais abertura do atual governo para a sociedade civil, admite Sedrick de Carvalho: “Já não temos tantos entraves. A Friends of Angola, organização não governamental de que sou membro, pediu um encontro com o ministro da Justiça e, conversaram, abordaram os assuntos naturalmente, coisa que antes simplesmente não acontecia”.
Não passou de uma “mudança cosmética”, contesta Justino Pinto de Andrade, dirigente do Bloco Democrático. “Fez, realmente, uma aparente aproximação à sociedade civil, somente para a domesticar. Aproximou-se de alguns líderes de opinião que eram muito críticos em relação a JES, conseguindo neutralizá-los”, critica o sobrinho do primeiro presidente do MPLA Mário Pinto de Andrade (embora o partido esteja com outra narrativa, atribuindo esse lugar na história a Ilídio Machado). “São hoje muito dóceis nas suas intervenções públicas e ainda bastante contundentes em relação a JES e cercanias. Perderam o fulgor crítico, dando a ideia de que tudo está bem, ou a caminhar para aí…” acusa o dissidente histórico do MPLA.
Esta acidez na apreciação não é partilhada por José Eduardo Agualusa. O escritor diz que “o que o Presidente conseguiu fazer melhor foi o processo de pacificação. Quebrou o clima de tensão que havia antigamente, de inimizade permanente, ou se estava num lado ou se era inimigo de José Eduardo dos Santos”. Ao receber “pessoas da sociedade civil como Luaty Beirão e ao condecorar Rafael Marques, por exemplo, veio autorizar essa reconciliação. Esse clima de crispação que existia no tempo de JES desapareceu”.
“O MPLA deveria reconciliar-se consigo próprio”
Para haver a verdadeira reconciliação, muito cantada no controverso hino da independência, é preciso que o MPLA mude de atitude, avisa Sérgio Calundungo, do OPSA. “Durante muito tempo, o comportamento das elites ligadas ao MPLA foi típico dos vencedores da guerra”, começa por explicar. Foi nessa atitude que trataram não só os que consideravam perdedores da guerra, a UNITA, mas também o resto da sociedade”. Esta postura não ajuda porque, “embora tenha havido vencedores e perdedores — que ninguém tenha dúvidas, a paz aqui foi uma paz militar —, é preciso pensar que as causas profundas do conflito — a exclusão social, a falta de oportunidades e a aceitação da diferença — permaneceram”.
O mais importante, frisa o economista, “é que a paz agora possa emergir de mais justiça e maior compreensão de que podemos ser diferentes, mas isso não justifica sermos desiguais”. E isso ainda não foi conseguido.
Nem vai ser se o MPLA não se pacificar primeiro, assegura Justino Pinto de Andrade referindo-se à divisão que o combate à corrupção estará a criar no meio do partido. “O ajuste de contas que estamos a assistir não conduzirá a bom porto. Está a lançar-nos, novamente, para a estaca zero, como sucedeu quando ascendemos à independência, em que tudo era provisório e improvisado e a esperança de dias melhores uma utopia”, prevê o economista que lutou pela libertação de Angola do domínio português. “O MPLA deveria reconciliar-se consigo próprio, reconhecendo os seus enormes erros que muito prejudicaram o país inteiro, ao ponto de haver quem tenha saudades do passado colonial”, aconselha.
Não se pense, porém, que foi isso que JLo fez ao dizer que ninguém ficaria impune. O quadro sénior do setor bancário angolano chama a atenção para a estratégia perigosa de Lourenço: “Tivemos um líder que apesar dos seus erros passou entre os pingos de chuva como se fosse Deus durante 38 anos e agora temos um que está a pôr esses erros numa ventoínha. Para onde vão parar esses erros?”
Poderão vir a fragilizar o próprio João Lourenço como Ricardo Soares de Oliveira bem explicou ao falar no combate à corrupção como uma espada de dois gumes. João Lourenço, “tendo ido buscar uma linguagem, e de alguma forma prática, anti-corrupção, foi buscar uma arma útil na luta política contra o ex-Presidente mas uma arma que também limita de alguma forma a sua capacidade de manobra”.
Por muitas críticas “que as elites façam ao antigo Presidente, para o bem ou para o mal, durante os anos do JES eles enriqueceram e ninguém andava atrás deles, punham o dinheiro onde quisessem”, explica o especialista em assuntos africanos. O contexto de João Lourenço não só lhes é mais desfavorável por causa “das ‘vacas magras’ mas também pelo clima político de crítica da corrupção, dos ricos. Há uma certa utilização de uma retórica anti-elite”.
Essa crítica “aos poderosos que utilizaram mal o dinheiro do boom petrolífero está agora muito disseminada na sociedade angolana e muitos quadros do MPLA acham que isso acabou por enfraquecer a legitimidade do partido, afinal de contas, responsável pelo país desde 1975”. Por conseguinte, remata o professor da Universidade de Oxford, “o apoio interno a JLo é muito condicional”.
Ricardo Soares de Oliveira adianta que “praticamente ninguém gostou de JES durante esses 38 anos”, mas, “de uma forma ou de outra, ele foi sobrevivendo porque as pessoas, algumas por medo, outras por cálculo, decidiram que era no interesse delas, no mínimo, serem passivas politicamente”.
E se no último trimestre de 2017 e início de 2018 era bastante óbvia a animosidade em relação a José Eduardo — “o Presidente João Lourenço beneficiou muito dessa frustração acumulada em muitos anos daquela família ali sentada na cadeira do poder” — o mesmo não se sente agora com a mesma força em Angola. “A intensidade dessa raiva foi-se dissipando e hoje José Eduardo é um mais-velho na cabeça de muitas pessoas, merece algum respeito e, alguns dizem, nem tudo foi mau nos tempos dele”, anota Ricardo Soares de Oliveira. Isto mesmo foi confirmado pelo Observador em Luanda, quer nos musseques à volta de uns pinchos (pedaços de carne assada na rua) ou no sofisticado Delmar (onde uma empregada abre e fecha a torneira da casa de banho para que o cliente não propague nem apanhe a Covid-19) na ilha de Luanda.
Os “contorcionistas” e o eduardismo que fragiliza João Lourenço
As pessoas também se incomodam com “uma certa hipocrisia no discurso anti-JES ser articulado por aqueles que até eram eduardistas aparentemente leais, os chamados bajuladores”, acrescenta Ricardo Soares de Oliveira. Sérgio Calundungo chama-os de “contorcionistas, alguns mais-velhos que deviam ser um símbolo de integridade e de coerância”.
Em alguns círculos, “até há uma certa forma perversa de admiração de Isabel dos Santos, uma angolana que mesmo assim, dizem, se ‘conseguiu desenrascar lá fora’”, observa o professor de Oxford. Já para não falar do comentário muitas vezes usual quando se fala da filha mais velha de José Eduardo dos Santos ouvido transversalmente em várias classes: “Pelo menos ela deu emprego a muita gente, não roubou só, como outros”.
Contudo, isto não quer dizer que haja terreno fértil para o regresso do eduardismo, assegura um familiar próximo de um dos homens fortes (dos poucos que não lhe viraram as costas) de José Eduardo dos Santos, análise com a qual Ricardo de Oliveira Soares concorda: “Politicamente isso não significa muito para Isabel nem para JES, que terão de carregar o fardo de terem perdido o poder”. Mas significa muito para João Lourenço. Ou seja, “a vida política do eduardismo continua a ser importante especialmente como forma de fragilização do poder de João Lourenço”, calcula o professor.
Se a situação económica não melhorar e o descontentamento social continuar a crescer o risco de o MPLA perder nas urnas em 2022 é “elevadíssimo”, diz o quadro sénior da banca angolana. Para isso não basta que as coisas corram mal ao MPLA, contrapõe Ricardo Soares de Oliveira, “têm de correr extraordinariamente bem à UNITA”.
É que o “MPLA continua a ter o edifício do Estado, as polícias, os mecanismos de controlo das eleições”, pondera o académico que aposta “num cenário de continuidade política mas cada vez mais contestada, cada vez mais fragilizada. De fora, mas também de dentro. Porque João Lourenço hoje não é uma personagem consensual dentro do próprio MPLA”.
Nada disso, “que disparate”, contraria Mário Pinto de Andrade, secretário para os Assuntos Políticos e Eleitorais do Bureau Político (BP) do MPLA. O reitor da Universidade Lusíada assegura ao Observador que o partido está “unido e coeso em torno de João Lourenço, as pessoas é que inventam”. A “máquina está afinada para as eleições autárquicas, quando elas acontecerem” e “estamos todos unidos”. O MPLA “continuará a dar total e incondicional apoio ao Presidente para que prossiga com as mudanças necessárias para fazer de Angola um país melhor para todos os angolanos, na certeza de que voltará a merecer a confiança dos eleitores em 2022”.
Foi basicamente isso que o BP escreveu no sábado, dia 26, para assinalar os três anos de mandato de JL: reitera a confiança no Presidente, e encoraja-o “a reforçar as medidas de políticas para garantir a dinamização da economia nacional e consolidar as conquistas alcançadas em sede dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos”.
A declaração do órgão máximo do partido enfatiza a “transformação do combate contra a corrupção como imperativo nacional, a reforma do Estado e da Justiça, o alargamento dos espaços de liberdade de expressão e de manifestação política, bem como a maior aposta nos jovens e nas mulheres no processo de decisão política e a promoção da diplomacia económica para a captação de investimentos estrangeiros”.
E aproveita para “denunciar as campanhas de intoxicação movidas contra as instituições do Estado Angolano e ao Camarada Presidente João Lourenço” e repudiar “veementemente todas as manobras de diversão visando desacreditar as ações no âmbito do combate contra a corrupção”.
A verdade é que, se em termos eleitorais, o MPLA perder a maioria absoluta, “Lourenço vai ter de negociar com algum partido da oposição e a sua liderança vai ser contestada dentro do partido. É que o MPLA não está habituado a partilhar o poder, tem a tal arrogância dos vencedores”, sublinha o quadro sénior da banca angolana.
A “geringonça portuguesa”, o mais antigo funcionário do Palácio e uma encomenda de diamantes
Num partido-estado, é natural que as muitas reflexões venham todas dar ao MPLA. “Tivemos um Presidente que punha os seus interesses, da sua família e amigos, acima do país. Se calhar, agora temos um Presidente que põe os interesses do partido acima dos do povo”, diz Alfredo Jair, técnico do frio, cabelo todo branco num rosto negro com uns intrigantes olhos azulados. “Só ainda não percebi se é o partido que manda mesmo nele, ou se é ele que finge deixar-se mandar pelo partido”, sorri, antes de entrar para o candongueiro.
Está no partido uma das razões que levam Reginaldo Silva (tal como todas as pessoas com quem o Observador falou, com excepção de algumas do MPLA), a não ser taxativo: “Só se mudou de consulado, o que já não é nada mau após 38 anos de ‘eduardismo'” porque em relação à badalada mudança de paradigma, “a procissão ainda vai no adro, com as dúvidas a aumentarem em relação à possibilidade de ela conseguir chegar em tempo útil ao futuro”. Lembra que há pessoas “que acham que a procissão nem vai conseguir sair do adro, porque os muros à volta da igreja não têm porta de saída”. E continuando com a imagem, adiciona: “A confirmar-se que o adro não tem porta de saída então corremos o risco de ter a procissão a dar apenas voltas à Igreja antes de se desfazer.”
Reginaldo Silva julga mesmo que, sozinho, o MPLA não vai conseguir mudar um paradigma de 45 anos, para isso era necessário “democratizar-se, caminhar no sentido de um equilíbrio político ou partidário mais de acordo com o que o país precisa”. Por outras palavras, “o MPLA precisava era de uma geringonça como a portuguesa”.
Tendo a consciência de que com “esta constituição, o MPLA dificilmente perderá as eleições”, pois até com 40 por cento ganha, trabalha com o cenário de se ficar apenas com essa percentagem nas urnas. Teria de negociar, de fazer compromissos, “de pensar no país não com base apenas nos seus interesses mas com base nos interesses de todos os angolanos”.
Surge então outro desafio: “O de termos eleições transparentes sem nenhum dos escândalos de 2017, sem uma comissão nacional eleitoral completamente anexada aos interesses do partido no poder. Cada vez acredito mais que as nossas urnas não têm produzido o resultado que tem apenas a ver com o número de votos que elas recebem, sem mais nada.”
Todas estas tendências atrás referidas mostram, na opinião de Filomeno Vieira Lopes, “que depois de algum tremor de terra as placas tectónicas ajustaram-se à primeira forma do atual poder, agora num contexto de profundo agravamento da economia, do desemprego e da pobreza. Nesse sentido, o poder permanece igual e si próprio do que vem resultando, sobretudo entre a juventude a ideia da impossibilidade de transformação da realidade pelo atual poder e advoga uma mudança no próximo pleito eleitoral alertando o Presidente que ‘… em 2022 vais gostar’. O que significa “não votaremos em ti…”.
Numa vivenda da Vila Alice, bairro de elites no tempo colonial, em Luanda, com a televisão ligada num canal português — “Nós não vemos a TPA (Televisão Pública de Angola) — uma tecnocrata de uma importante petrolífera internacional impacienta-se: “Já estou farta dessa expressão mudança de paradigma. 2017 foi o ano da utopia, da esperança. Mas três anos depois, desanimei. Há mais liberdade de expressão mas existe pouca transparência, e o pior é que não houve melhoria do nível de vida das pessoas, há fome”.
Sem falsos pudores, confessa: “Eu tenho um salário pornográfico, os ordenados da indústria petrolífera são uma ilha, estão indexados ao dólar, não foram reduzidos. Mas eu não vivo no país real”. A funcionária descreve como a sua classe média alta educa os filhos à parte: “Um jovem familiar que anda numa escola estrangeira, quando vem passar uns dias a minha casa e eu o levo a caminhar na estrada de Catete, onde se vê muita miséria, muita gente a pedir comida, diz que está tudo podre e fica com medo das pessoas”.
Nada disso “mudou com João Lourenço”, lamenta, para logo a seguir se moderar: “Ao mesmo tempo penso que as coisas não podem ir assim tão rápido, não queremos cair noutra guerra. Eles, os ‘marimbondos’, têm o poder económico. João Lourenço tem de ir devagar…”.
Fora do centro de Luanda, num escritório da organizada Cidade Financeira, em Talatona, um jovem empresário é mais tolerante: “João Lourenço está a aprender a ser Presidente, tem direito a falhar”. Com 35 anos, o empresário da classe média alta com família no partido, também tem medo de que a guerra volte: “Vi mortos nas ruas, não quero que os meus filhos vejam isso”.
Muito mais pragmático, é Domingos Bandeira que, num apartamento da centralidade Kilamba, com maçarocas e feijão a secar na varanda, passou por três guerras: 1961, 1975, 1992. O funcionário mais antigo do Palácio Presidencial, reúne a mulher e os filhos para falar com o Observador, canta um hino cristão e faz uma oração, antes de contar a sua história que pode ler aqui:
Domingos Bandeira, o funcionário mais antigo do Palácio Presidencial
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Veio da missão católica de Kibala, no Cuanza Sul, para Luanda, antes dos anos 70 e instalou-se na que é hoje a rua da Rainha Ginga, onde está um dos edifícios da Sonangol. Dali passou em 1972 para a residência do governador geral de Angola. “Fui como criado, empregado de mesa, do engenheiro Santos e Castro, que para mim foi um pai”. Depois do 25 de Abril, “revolução de militares, não podia ser um civil no governo de Angola e mandaram o general Silvino Silveira Marques”, continua Domingos Bandeira, o funcionário mais antigo do palácio presidencial.
Do tempo guarda boas recordações. Lembra-se bem dos dois uniformes que tinha: “O principal, sapatos branco, meias brancas, calça branca, casaco branco, luvas brancas para o dia a dia. O outro com jaqueta preta, camisa branca, laço preto, calça preta, meias pretas, sapato preto e luvas brancas, era um fato muito bonito”. Este servia para as festas e jantares e almoços oficiais. Não havia muitas — “tantas quantas as necessárias” — mas Domingos gostava particularmente delas, porque ganhava 500$00 extra, “era quase um salário de um cozinheiro numa residência particular”.
Depois do 25 de Abril de 1974 vieram os altos comissários, Rosa Coutinho, António da Silva Cardoso, Leonel Cardoso. Dos portugueses, nenhum o marcou tanto como o Silveira Marques, o “mais especial”. “Ele mandou fazer um fato para mim como se fosse de piloto de aviação e eu viajava com ele por Angola, no avião. Estávamos a preparar a viagem para o Huambo que antigamente se chamava Nova Lisboa, quando veio o 25 de Abril”.
Recorda-se de ter servido “boa comida e bebida” a Agostinho Neto, quando chegou a 4 de fevereiro de 1975 e foi “de helicóptero com a mulher e a mãe e alguns elementos do movimento” almoçar ao palácio. Só o voltou a ver a 16 de novembro, como Presidente de Angola. Está-lhe grato porque, contra a vontade da segurança pessoal que considerava os “antigos empregados bufos” por terem “trabalhado para os colonos”, Agostinho Neto não os despediu.
Passou com este Presidente os momentos em que Luanda ficou cercada pelos inimigos, “cortaram-nos a água, mas Nosso Senhor deu-nos a chuva e aproveitávamos essa água” e todas as aflições da guerra sentida por quem não foi militar.
Outro dado que guardou registado foi o de as filhas nunca terem ido estudar para o estangeiro, apenas o filho. Viu-o ficar doente, “mas não de cama”, depois de vir de uma viagem a Malange, e partir para a Rússia onde morreu.
Quando José Eduardo dos Santos chegou ao Futungo de Belas, para onde Agostinho Neto se tinha mudado enquanto decorriam obras no palácio, que ficaram prontas, mesmo antes de ele adoecer, Domingos Bandeira é afastado da residência presidencial. Passa para as residências protocolares, que em 1985 passa a chefiar antes de em 1992 ser transferido para o complexo presidencial do aeroporto.
“Os hábitos dos Presidentes são com eles”, recusando com um sorriso comentar o que sabe daqueles a quem serviu: “A Bíblia diz que o servo não sabe o que faz o seu senhor”. Apenas diz que a casa de José Eduardo dos Santos era muito “assegurada”, tinha muitos seguranças e que o anterior Presidente era muito bom no desporto, “jogava basquetebol com os seguranças”.
Chegou às suas novas funções no aeroporto pouco depois de a sala presidencial que foi dirigir, explodir com uma bomba, e afligiu-se com os três dias do chamado “Massacre do Dia das Bruxas”, em que a UNITA foi dizimada. “Foi muito perigoso, dei água a todos os que me pediram, amor ao próximo não tem partido”.
Conheceu João Lourenço quando passava por essas áreas no aeroporto, como vice-presidente da Assembleia Nacional e ministro da Defesa. Agora, só o vê quando é chamado ao palácio, para num fato preto e camisa branca e luvas brancas levar as credenciais dos novos embaixadores numa bandeja com uma almofada, ao Presidente. Não compara Presidentes — “não vou dizer que um foi melhor do que o outro, empregado de mesa não tem opinião nessas coisas” — tão pouco as ações do novo inquilino da Cidade Alta.
“Tenho vida, tenho família, tenho este apartamento”. Este é a única dor de que se queixa: “Devia ser custo zero, com tudo o que trabalhei, mas ainda me faltam 22 anos, já estou nos 70 e tenho uma dívida ao pescoço”. Recebeu o T3 novinho na centralidade do Kilamba em 2012, o serviço da presidência ajudou no concurso, mas não lhe paga a prestação ao Fundo de Fomento Habitacional. “Conheço gente que se reformou com 14 anos de serviço, e há quem não tenho este historial todo e tenha casa a custo zero. O que é que eu vou levar de recordação do Palácio? Esta dívida”.
Mas, sorri sentado no sofá branco, com Maria Eduarda, a mulher vestida de panos africanos ao lado: “Como a esperança é a última a morrer, acho que melhores dias virão”.
Começou em 1972, como “criado” — “mudaram o nome para empregado, mas eu adoro o nome de criado, porque vem de Criador” — no tempo colonial. Serviu à mesa dos portugueses, do Governador Geral de Angola, “o engenheiro Santos e Castro”, depois Silveira Marques, passou por Rosa Coutinho, Silva Cardoso e Leonel Cardoso, até chegar Agostinho Neto que se recusou a despedi-lo como a segurança queria por ter servido os colonos, chamavam-lhe “bufo”. Depois foi afastado da ala residencial do Palácio por José Eduardo dos Santos que mudou toda a equipa de Neto e, já depois da reforma, continuou ao serviço de João Lourenço.
Tem 70 anos, sabe imenso de história, e fala pausadamente de tudo, menos do estado atual de Angola e da corrupção: “Vamos deixar os políticos e a justiça fazer o seu trabalho”. Não cala, porém, uma reivindicação: “Facilitaram eu ter esta casa, mas tenho de pagar empréstimo durante trinta anos. Oito já estão. Uma vida de serviço e ainda tenho uma dívida ao pescoço…”
À porta de Domingos Bandeira, um táxi espera a jornalista do Observador. “A dama atrasou-se muito e atrapalhou o meu esquema”, refila o motorista, assim que a porta do carro se fecha. “Já não consigo ir levar um pacote de diamantes ao aeroporto”. Mas essas coisas ainda são assim aqui em Angola? O homem de trinta anos, óculos escuros rayban por cima de um riso trocista, responde: “A tia está aqui há quanto tempo? Dez dias? E não percebeu que quase pouco mudou?”