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JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

José Massuça, o primeiro português a fazer o desafio sobre-humano Epic5: "Ganhava ao Ronaldo!"

Era o gordinho da família, tinha o vagar alentejano e pé chato. A vida em Angola mudou-o: aos 42 anos fez a 1ª maratona. Agora tornou-se no único português a entrar no Epic5, um desafio sobre-humano.

Em casa, ao pé da estante sem espaço para mais nenhum livro, José Massuça tem um papel com seis frases de cores diferentes. “É a forma como as pessoas me veem. Há quem diga que eu sou um caçador de impossíveis, mas isso não pode ser bem assim. Se eu alcançar uma coisa impossível, ela passa a ser possível. Não sou destruidor: sou antes um caçador de improbabilidades”, explica ao Observador. Mas é mais difícil do que isso. Aos 46 anos, dois filhos, e apenas quatro depois de ter feito a primeira maratona, José Massuça tornou-se no primeiro português a ser convidado para participar no Epic5, a mais difícil prova de triatlo do mundo.

Tudo começou há quatro anos, quando José Massuça, que antes trabalhava em Angola com o Banco Mundial num projeto de recenseamento agrícola, decidiu fazer a primeira maratona. Tinha 42 anos e não os queria terminar sem correr os aproximadamente 42 km da maratona. Trocou a gravata por ténis, algo que até já fazia em Luanda para fintar as saudades de casa, e começou uma nova vida entre pistas de corrida, bicicletas e fatos de natação. Depois de um vasto currículo de corridas, provas de triatlo e um Ironman terminado em menos de 10 horas, sempre com os filhos ao lado, José Massuça aceitou o desafio do Epic5. Não podia ser de outra maneira, garante: “Uma vez feito o convite não poderia recusar, não é? Seria rude da minha parte”.

Pouca gente suporta a magnitude do Epic5. São cinco triatlos em cinco ilhas diferentes do Hawai durante cinco dias, de 5 a 9 de setembro. É um evento épico que Jason Lester e Rich Roll, dois consagrados atletas de “endurance”, quiseram criar para provar os impossíveis não existem. Como? Multiplicando por cinco a prova Ironman, inventada pelo comandante da marinha americana John Collins depois de uma discussão durante uma entrega de prémios sobre qual seria o atleta mais resistente: um nadador, um corredor ou um atleta de outra modalidade. Mas enquanto o Ironman é um triatlo com 3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e uma maratona, o Epic5 é ainda mais exigente: o que José Massuça vai fazer é um Ironman em cada uma das cinco ilhas — Kauai, Oahu, Molokai, Maui e Kona. No total, serão 19 km a nadar, 900 km a pedalar e quase 85 km a correr. Em suma, um desafio sobre-humano para o qual mais nenhum português foi chamado. “É a minha Aljubarrota. Há lá muitos espanhóis”, diz entre risos.

Em casa, com o cão-de-água Iate a guardar-nos pacientemente a porta, José Massuça conta-nos como a passagem por Angola foi uma metamorfose, como a família é a sua melhor equipa e como ainda não trocou completamente a bela da feijoada por um prato de quinoa. A seguir, o “alentejano gordinho com pé chato e sem jeitinho nenhum para o desporto” foi calçar os ténis. E levou-nos para as margens do rio Tejo para o acompanharmos em mais uma corrida. Só que nós não o acompanhámos: levámos uma abada.

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Porquê aceitar um desafio com esta dimensão?
A prova começou há dez anos e foi lançado pelo Jason Lester. Ele não tem um braço e decidiu fazer um Ironman [triatlo de longas distâncias] em cada uma de cinco ilhas do Hawai. Quis mostrar que era possível, que não havia limites para o corpo humano e que conseguira readaptar-se e ultrapassar barreiras. Quando conheci a história através de um amigo fiquei muito impressionado. Sempre fui o gordinho da família, nunca tive nenhum jeito para o desporto e, portanto, não praticava desporto regularmente. Mas nunca deixei de tentar. Aquela coisa de experimentar uma coisa, não gostar e passar para outra coisa não era para mim. Era teimoso. Ainda sou. Teimoso no sentido da procura, de tentar encontrar alguma coisa onde me realize e me sinta bem e seja bom.

Como reagiram os seus amigos quando souberam o que ia fazer?
Quando isto se tornou público, alguns amigos meus disseram, com alguma preocupação, que era preciso cuidado: “Tu já não és novo e também já não és desportista”. Se calhar essa é a minha grande vantagem. Respondi: “Enquanto vocês se desgastaram todos, eu estive a poupar-me”.

E poupou-se muito?
Nunca fui um desportista por incapacidade. Não sou dado ao desporto: nasci alentejano, de Évora. Aos 17 anos, em 1988, fui estudar para os Estados Unidos e vivi um ano em Batesville. Fiz futebol americano e fiz atletismo lá, mas era só força explosiva: corria o mais que podia durante 200 metros e estava feito. Era só isso. Mas nascendo alentejano, tendo pé chato e sendo o gordinho da família, mesmo bolinha, e sem jeito para o desporto, a verdade é que nunca desisti de experimentar e tentar. Experimentei hóquei em patins, experimentei mini-basket, badminton. Tudo o que havia hipótese, andávamos um bocado à solta. Não era como hoje em dia, que é preciso trazer e levar os miúdos… Era tudo na escola. Nós somos três irmãos todos rapazes, eu sou o mais velho. Tinha a responsabilidade de tomar conta deles, que era uma coisa que me chateava um bocadinho e que me prendia porque estava ali de polícia. Mas experimentei uma série de desportos: e aprendi a nadar praticamente sozinho, com o meu pai a agarrar-me pelos calções na praia de Monte Gordo.

Quando é que começou a levar o desporto mais a sério?
Quando tinha uns 15 ou 16 anos comecei a jogar andebol no Lusitano de Évora. Até à fase do andebol, o desporto era só por diversão, era só brincar. Era sempre o último a ser escolhido pelas equipas: os dois capitães começavam a escolher malta e eu ficava para o fim e ia à baliza. Só que essa era a minha vantagem: não me chateava nada. Ia à baliza e dava o meu melhor. E isso é uma coisa que eu ensino aos meus filhos. Dou-lhes a oportunidade de experimentarem tudo o que quiserem. Só lhes peço o compromisso de darem o máximo e têm de se aplicar a fundo. Mas depois até viemos a fundar um clube só de andebol, o Évora Andebol Club. E foi quando o desporto começou a ser algo em que era preciso ir aos treinos, ter jogos ao fim de semana, ter de cuidar do equipamento, ter regras. Para jogar tínhamos de fazer bons treinos, senão o treinador não nos convocava. É uma escola de trabalhos e méritos. E resultados. Foi esse o primeiro contacto com o desporto.

E depois?
Interrompi quando fui para os Estados Unidos, mas aproveitei que a minha forma física ainda estava capaz e fiz futebol americano, uma experiência incrível. Lá o desporto faz parte da educação e está incluído no currículo escolar: temos de fazer os try-outs para fazer parte da equipa. Mas quando voltei dos Estados Unidos vinha com mais 20 kg. E não era em músculo.

Então?
Engordei muito, foi muito desleixo com pizzas congeladas, cerveja e hambúrgueres. Estava lá com uma família de mente muito aberta, já tinham vivido na Alemanha. Eram muito conhecedores da história europeia e isso equilibrou o facto de estar num estado muito conversador como o Arkansas. Há um racismo muito vincado: o refeitório ainda se dividia em brancos e pretos. Mas pelo futebol americano acabava tudo junto. Quando cheguei cá, veio a universidade, começam as primeiras namoradas e aquilo mexeu comigo. Dedicava demasiado tempo a ir às festas e assim. Depois comecei a sentir-me menos bem. Comecei a nadar na piscina do Areeiro com a minha mulher, quer era nadadora do Sporting quando vim estudar para Lisboa — antes estive em Santarém a fazer um bacharelato. Aliás, por causa dela fui a Edimburgo fazer um mestrado e fiz tudo em modelo concentrado para casar! Quando vieram os filhos ainda engordei mais. Uma vez vi uma foto minha com a minha filha Marta ao colo e estava muito gordinho, foi aí que disse basta!

Quando é que passou a uma prova exigente como esta?
Comecei a correr de uma forma mais frequente quando trabalhei muitos anos em Angola. Em Angola há muitos amputados. Em 2001 e ainda se viam mais na rua do que agora. Corria naquela que é agora a marginal toda bonita, mas que era uma baía mais degradada onde viviam e dormiam muitas pessoas que não tinham casa. A grande maioria eram estropiados da guerra. Corria e muitas as vezes as crianças que vivem sozinhas sem pai nem mãe, faziam por me acompanhar. Faziam brincadeiras de miúdos comigo. Alguns em cadeiras de rodas muito velhas e estragadas. Isso marcou-me e levava-me a correr mais. Quero um dia arranjar forma ou lutar pela causa de levar essas pessoas para a prática desportiva, não pela prática, mas pelos valores com ela relacionados. Corrermos por quem não pode correr sozinho. E é fácil porque há cada vez mais gente dedicada ao desporto. As corridas populares até já esgotam!

Créditos: Pawel Naskrent/Maratomania

fot.Pawel Naskrent/Maratomania.p

É a sua próxima causa?
Essas pessoas continuam ser poder ir às provas. Nos regulamentos das corridas populares é proibida a cadeira de rodas, são proibidos os carrinhos de bebé. Dizem que é por questões de segurança e porque o seguro de prova não cobre acidentes em que esses instrumentos estejam envolvidos. As cadeiras para participar nessas corridas têm de ser especiais e entende-se porquê: as nossas ruas têm buracos, há calçadas, há carris de elétricos e as rodas têm de ter algumas características especiais para ultrapassar essas barreiras. Mas nem com essa preparação há abertura para que eles possam participar e essa era uma das coisas que gostava de mudar. Por isso fui correndo…

Até ao triatlo e a estas provas mais duras?
Isso…

Só se entra para um Epic5 por convite, certo?
Sim, não se entra por inscrição, mas sim por convite e por currículo. Eu apareço porque o treinador António Nascimento esteve inclusivamente com um pé no Epic5, mas por razões várias não foi. E disse à organização que conhecia uma pessoa que tinha as capacidades para ir. E eles aceitaram receber o currículo. Ele enviou-o, o “Border of Directors” avaliou e decidiram chamar-me para uma entrevista. É tudo muito à americana porque a prova tem a chancela da Federação Americana de Triatlo e também tem esse grau de exigência. O meu currículo foi muito bem avaliado essencialmente por ter feito um Ultraman e por ter feito um Ironman abaixo das dez horas. Foram as duas grandes chaves. Porque o meu currículo não é muito vasto: tenho três Ironman concluídos, tenho feito muitos meio-Ironman e este ano ainda vou fazer mais um agora em julho. Também fui diretor da revista 4×4 e fiz todo-o-terreno, muitos passeios fiz eu de Jeep…

Como é composta a sua equipa?
Ao contrário do inicialmente previsto, não é a mesma equipa que foi comigo fazer o Ultraman. O Ultraman é uma prova similar, um bocado mais curta, mas já acima do Iroman. O Iroman são 3.800 metros a nadar, 180 quilómetros a pedalar e a maratona no fim. O Ultraman é a etapa seguinte, que são dez mil metros a nadar, 420 quilómetros de bicicleta e depois a dupla maratona. Mas em três dias, com janelas de doze horas entre eles. O Epic5 são cinco dias e cinco Iroman por dia. A parte mais difícil vai ser a logística porque cada um é realizado numa ilha diferente e temos de ir de uma para a outra todos os dias. Até disse à organização que seria mais fácil nadarmos logo para a ilha seguinte, mas eles disseram que não havia essa hipótese porque era um bocadinho mais longe!

Vai sozinho com o treinador e o staff ou leva a família?
No Ultraman a equipa foi a minha família: foi a minha mulher, os meus dois filhos e uma amiga nutricionista que já tinha experiência destas provas. A ideia era levar exatamente a mesma equipa ao Epic5. Só que isto tem uma dimensão diferente. Uma das pessoas que fez comigo o Ultraman de País de Gales foi agora ao Epic5 de maio — este ano é o primeiro que vão fazer duas edições — foi um espanhol. Um outro espanhol já tinha ido fazer o Epic5 de setembro do ano passado. Aliás, há uma guerra, é uma nossa Aljubarrota, porque ainda nenhum português fez a prova e já vários espanhóis fizeram. Mas uma das grandes queixas que eles trazem é a falta de tempo para dormir. Dormem em média três a quatro horas. O atleta faz o esforço e depois desliga de tudo, mas a equipa tem de tratar da bicicleta, tem de tratar dos transportes para levar o material para a ilha seguinte e por aí adiante. E mesmn no caso dos atletas, o descanso é feito a correr também porque, mais do que o descanso, é a regeneração muscular que faz falta. Mas isso faz parte do treino. Agora numa logística de equipa, levar duas crianças — apesar de a minha filha fazer 18 pouco depois da prova e de o meu filho ter feito 16 — é difícil porque a privação do sono é complicada. Por isso, eles não vão.

Foram eles que decidiram não ir?
Sim, partiu deles. Estávamos a jantar. A minha filha gostava muito de ir ao Hawai e tem uma paixão grande pelo Hawai por causa das séries televisivas e ficou com pena, mas partiu deles. E essa foi a parte que me comoveu um bocadinho. Eles viram-me sofrer no Ultraman e se calhar isso também pesou. Percebem que a fasquia é um bocadinho mais alta e que vai ser ainda mais complicado. Mostra uma grande maturidade e uma grande consciência daquilo que é o risco inerente a uma coisa destas. Assim, vai a minha mulher — porque é importante ter este pilar emocional presente –, vai também um fisioterapeuta, porque é essencial ter uma recuperação física mais acelerada por quem sabe o que está a fazer, e vai a mesma amiga nutricionista e que faz um trabalho excepcional em campo. Ela vai por-me comida à boca! Eu sou muito indisciplinado a comer. E ela é muito conhecedora deste mundo. Cá em Portugal tenho um treinador, o José Estrangeiro, que é um atleta de elite do triatlo nacional e que desde o início me chama louco. Já perdeu muitas noites sem dormir para decidir se me ajudava ou não, se era maluquice a mais ou não. Sofreu mais que eu na decisão. E tenho um preparador físico, que trabalha a par do treinador.

Então decidiram todos seguir pelo caminho da loucura.
É. Ainda há uns dias estava a fazer um comentário no Facebook a dizer: “Este gajo é completamente maluco. Há os malucos e depois há os parvos. E este gajo é completamente parvo”. Eu respondi: “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. E ele concordou, disse que eu não podia estar mais correto. Mas temos esta cumplicidade. Evolui muitíssimo com ele nos últimos anos. Nunca fui desportista… Mas num evento destes não estamos a falar de 50% de cabeça e 50% de físico: estamos a falar de 80 ou 90% de cabeça. Se a cabeça decidir que é para ir, o corpo há de lá conseguir ir com a gestão que a cabeça há de fazer da gestão disso.

Créditos: JÚLIO LOBO PIMENTEL/ OBSERVADOR

JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

E como é que mantém esse equilíbrio?
Experiência de vida. Há alguma condição ou predisposição física para o sofrimento e ter este espírito de sacrifício é necessário para este tipo de vida. Não é por acaso — e quanto mais estou envolvido, mais acredito que há aqui uma razão realmente forte para esta realidade — que não se veem muitos jovens nestas provas de endurance. Isso exige uma resiliência que só a maturidade traz. Mas estas questões da superação física não se podem ver apenas de uma perspetiva física. Quando se fala aqui em superação, muitas vezes imaginamos o momento exato de uma grande prova que nos ultrapassamos a nós próprios. Não é só isso, não acontece nesse momento apenas. É feito de pequenas superações todos os dias: acordar cedo, ir treinar quando não apetece mas temos que ir, tudo isso conta. Isto é mais natural para quem já tem uma vida mais experiente e que já tem a consciência de que as coisas acontecem no tempo devido. Hoje em dia, a sociedade quer as coisas no imediato. Nós temos o telemóvel permanentemente na mão e se não nos responderem à mensagem é porque aconteceu alguma coisa! Eu sou de outra geração. E consigo perceber que há coisas que demoram tempo. E isso é algo que tento transmitir aos meus filhos. Aliás, isto do desporto até começou um bocadinho na tentativa de os educar pela experiência. E começou essencialmente para eles perceberem que, para acontecer, é preciso muita coisa. Em primeiro lugar, é preciso coragem para aceitar um desafio que fica fora da nossa zona de conforto. E sabermos que isso pode envolver sofrimento. Para além disso, é preciso ter consciência de que há regras que precisamos de cumprir. Não nos podemos estragar enquanto corpo nem mentalidade e temos de nos manter fiéis a nós mesmos e leais aos nossos princípios. As coisas são mais fáceis assim. Sem dispersar. Mas isso vem com a idade.

E eles seguem esses compromissos?
A Marta foi uma nadadora exepcional. É naturalmente nadadora porque desde os seis meses que anda dentro de água. Depois quando começou a fazer competição a sério, ter de fazer treinos bidiários, acordar muito cedo de manhã, passou a ser muito complicado. Ela nunca gostou muito da natação, havia sempre muita tensão. Mas era muito boa e ainda hoje é. Depois tentei convencê-la a ir a algumas provas comigo. Só que às que foi ganhou, por isso já não a levo mais. Já o Diogo experimentou vários desportos, desde o futebol, até agora ao râguebi. O ano passado foi campeão nacional, este ano perdeu tudo o que havia para perder. Nem era um desporto que eu estivesse muito à vontade porque há uma certa violência, há mais confronto. Ele já fez uma fratura num tendão do dedo, já teve umas coisas complicadas no joelho e no fim de semana passado andava dentro de campo sem saber onde é que estava. De vez em quando acontecem-lhe algumas. A Marta agora esteve mais parada por causa do 12º ano. Critico-os muito quando vou ver um treino e eles andam ali a dormir, a passear. Isso não.

Aos 46 anos, a mente ainda acompanha o corpo ao ponto de realizar provas quase sobre-humanas como o Epic5?
Há artigos científicos que dizem que a idade ótima para fazer provas de endurance é aos 60 anos. Acho um bocadinho exagerado. O corpo fisicamente já não está em condições aos 60 anos, a não ser que esteja muito bem cuidado. Tenho 46 anos, nos últimos anos não tenho parado de subir etapas. Mas têm surgido naturalmente. Fiz a minha primeira maratona aos 42 anos, porque a maratona tem 42 quilómetros e coloquei a mim esse objetivo: “Não posso terminar os 42 anos sem fazer os 42 quilómetros da maratona!”. E fui fazer. E depois — engraçado! — fui com um amigo para a maratona do Porto e tinha andado a treinar, achava que já estava muito bem fisicamente e tal, que fazia a maratona abaixo das três horas e meia. Pois fiz três horas, trinta minutos e dois segundos. E as pessoas disseram: “Mas dois segundos era só esticares a perna!”. Mas não é. Nem que fosse um segundo, o meu corpo não dava mais do que aquilo. E esses dois segundos foi o que me agarrou a isto daí para a frente. Não há nenhuma prova destas que não me dê uma lição de humildade. Quando acho que já sei tudo… é mentira, não sei nada.

Fui com um amigo para a maratona do Porto e tinha andado a treinar, achava que já estava muito bem fisicamente e tal, que fazia a maratona abaixo das três horas e meia. Pois fiz três horas, trinta minutos e dois segundos. E as pessoas disseram: “Mas dois segundos era só esticares a perna!”. Mas não é. 

Então esses dois segundos foram o sinal de que era preciso um bocado mais de respeito.
Total e absolutamente isso. A palavra é exatamente essa. Respeita o quanto puderes todas as iniciativas que tomas. Todos os obstáculos. Já me perguntaram várias vezes se eu tenho medo do Epic5. Tenho medo porque para ter medo é preciso ter consciência do risco. Eu tenho consciência do risco, sei o quanto importa em termos de esforço e de perigos uma prova destas. Há ainda outros riscos que não sei, mas estão lá de certeza.

Mas o que é mais assustador?
Há uma coisa que eu posso dizer à partida: a distância não me assusta. Sei que a água tem tubarões e isso deixa-me desconfortável. Posso dizer, por exemplo, que na prova feita em maio ao terceiro dia [na ilha de Molokai] tiveram de fazer a natação em piscina porque tinha um aviso de tubarões na praia e não puderam nadar no mar. Esse risco existe e é real. Se os virem e lançarem o aviso já não é mau! Tenho medo das condições atmosféricas serem muito adversas. Já fiz provas com muita chuva e vento e não é nada agradável, desgasta muito o corpo. Onde é que está o fundo da garrafa? O gás, onde é que se acaba? E, para não saber onde é que se acaba o gás, tenho de ir conseguir enchendo. Sei que não vou fazer um “refill” total mas vou ter de arranjar forma de ser capaz de ir confortável para o dia seguinte com uma margem de segurança.

Há regras muitas rigorosas?
As regras são federativas e internacionais: não podemos usar fato acima de quatro milímetros de espessura, se a água estiver a mais de 21ºC já nem sequer podemos usar fato, se a água estiver abaixo dos 14ºC nem sequer entramos na água, não podemos andar ‘na roda’ da bicicleta de um adversário, não podemos fazer para cima das horas de cut-off estipuladas. E isto é muito preciso porque, se não fizeres o cut-off, não apanhas o avião para a próxima ilha e simplesmente não participas mais. O cut-off mais complicado é o do primeiro dia: estamos a apontar para 12 horas porque da primeira ilha para a segunda voamos no mesmo dia que a primeira prova. Nas outras voamos na manhã do próprio dia da prova. Podemos correr durante a noite, só que quanto mais tempo passas a correr, menos tempo tens para descansar.

Que regras estabeleceu para si?
Conheço o meu corpo melhor que ninguém e sei que tenho de estar muito atento aos sinais. Sou muito indisciplinado com a comida, às vezes perco o apetite quando faço muito esforço físico ou só como quando tenho fome. Mas se como quando já tenho fome é porque já passou o tempo de o fazer, já vou estar em débito. Se eu for beber quando já tiver sede, já vou estar desidratado e vou sofrer bastante. E é não perder a consciência desses sinais, mesmo sabendo que o alerta permanente vai ser difícil.

Alguma vez sentiu que estava mesmo perto do seu limite?
Já. Já aconteceu em treino logo nos início de começar a fazer triatlo. Sempre gostei muito da ideia de fazer triatlo pela conjugação das três modalidades e, não sendo bom em nada, no triatlo pode-se encontrar o mediano de todas e fazer umas coisas engraçadas. O triatlo tem esta democracia. Há ali um equilíbrio. Num dos primeiros treinos, quando quis experimentar o triatlo, fomos para uma herdade e levantei-me sem tomar o pequeno almoço, fomos nadar e logo na natação senti que não estava muito bem. Depois a transição era a corrida porque íamos deixar a bicicleta para o final do dia. No meio da corrida, começou-se a fechar o túnel, a visão ficou muito fechada, tudo a ficar tudo muito distante e os movimentos muito lentos. Desidratei completamente. Tive de parar. Andei duas semanas a tentar reequilibrar tudo o que são os sódios, os magnésios, tudo no sistema circulatório, todos os equilíbrios químicos. Este é quase um projeto microscópico. Há muitos atletas jovens que têm consciência de tudo, mas é sobretudo uma coisa que a vida nos vai trazendo. Nós, mais velhos, já passámos por muitas bebedeiras, por muitas farras e sabemos que o nosso corpo no dia seguinte está a dizer que não, que nunca mais, nem pensar. E a verdade é que no esforço desportivo também há limites desse género. É preciso respeitá-los, saber que existem e não os ultrapassar.

Fala muito de experiências de vida que nos tornam mais pacientes e sábios. Que experiências foram essas no seu caso?
Mais do que pacientes, porque a paciência só nos elucida de que as coisas não caem do céu. A grande maioria dos bons resultados obtidos na vida não vieram de um momento para o outro: foi preciso trabalhar, foi preciso cultivar e semear, manter e regar, tratar para depois ter o fruto. Isso é um processo de paciência. Nas gerações atrás de nós, um lavrador plantava um pinhal que nunca seria para usufruto dele nem dos filhos, mas talvez dos netos. Isso era uma prática comum — deixar riqueza para as gerações vindouras. Hoje já ninguém pensa assim. Para mim, o longo tempo que trabalhei em Angola foi preponderante. E não se trata aqui de cores de pele, nem de países pobres e ricos, mas de como as pessoas abordam as dificuldades. Vi mulheres com um filho na barriga, outro atado ao pano nas costas, um pela mão e em cima da cabeça um cesta de ananases a vender na rua, e quando nós as abordamos têm um sorriso rasgado e uma simpatia tremenda, ficam nossas amigas, cumprimentam-nos todos os dias. Assim, deixamos de achar que as coisas são difíceis para nós. E este é apenas um exemplo: eles não deixam de fazer nada, mesmo sendo estropiados ou vivendo na rua.

Vi mulheres com um filho na barriga, outro atado ao pano nas costas, um pela mão e em cima da cabeça um cesta de ananases a vender na rua, e quando nós as abordamos têm um sorriso rasgado e uma simpatia tremenda, ficam nossas amigas, cumprimentam-nos todos os dias. Assim, deixamos de achar que as coisas são difíceis para nós. 

Foi essa a grande experiência da sua vida?
Também fui à Bósnia em 2000 e as tropas portuguesas cuidavam de miúdos que tinham ficado sem pais. Em pouco tempo os miúdos já falavam português. E isto é a força de querer, a força de vencer e exemplos de superação permanentes e diários. Mas houve outras. Convivi de muito perto com o Miguel Vieira, o nosso judoca paralímpico invisual. Por acaso é angolano, mas eu conheci-o cá. Parecia que o destino estava a brincar com ele: ele deixou de ver, depois voltou a ver, depois perdeu novamente a visão, mas não desistiu de ir à luta. São pessoas que nos dão esses exemplos. Tivemos uma ação com a Associação Salvador e eu estava a falar com alguns dos membros da associação sobre superação. Eles vieram ter comigo e deram-me os parabéns. E eu disse: “Mas eu sou uma coisinha tão pequenina ao pé de vocês. Vocês são o meu exemplo de superação diariamente”, porque eles estão em cadeiras de rodas, são paraplégicos ou tetraplégicos. “Todos os dias vocês fazem mais do que eu. Eu vou fazer cinco dias e acabou”, disse-lhes eu. E eles responderam: “Não, tu que és um ídolo. Porque tu podias escolher o caminho mais fácil. Tu, tendo opção de escolha, não escolheste o caminho evidente. Nós não temos outro remédio. Tu tens”. Eu disse-lhes que não lhes dava toda a razão, mas via onde queriam chegar. Nós cuidamos mal das pessoas com dificuldades, ou porque são uma minoria ou porque não dão votos.

Falando sobre lições, um dia cruzou-se com um homem mais velho numa prova que lhe deu uma…
Aprendi que o que me custa a mim fazer o Epic5 pode ser o que custa a alguém fazer dez quilómetros. É uma questão de escala. Era um senhor já com uma certa idade que me abordou na partida da maratona de Barcelona. Ia todo contente e eu pensei: “Pronto, mais um que vem à manifestação. Isto agora é comercial, é só pagar bilhete e vimos para aqui passear e se for preciso até tiram selfies a correr”. Mas ele não desistia, estava mesmo entusiasmado e perguntou-me qual era a minha experiência. E eu disse: “Pá, a minha é a terceira”, já todo importante com a minha maratona. E ele sai-se com: “Ah, a minha é a décima!”. Aí comecei a ficar intrigado e perguntei-lhe se já corria há muito tempo. Ao que ele responde: “Não, só corro desde que tenho um coração novo. Fui transplantado e prometi à pessoa que me deu o coração que vou manter este coração saudável. E daí comecei a correr”. Eu fiquei assim, deste tamanho, mesmo pequenino. E ele ainda continuou: “Sim! E para tornar as coisas ainda mais interessantes, quando começa a corrida dou o cartão de crédito à minha mulher e ela pode gastar o que quiser até eu chegar!”.

Tem mais histórias dessas?
É com os meus filhos que aprendo mais. Numa meia-maratona, era um meio-Iroman em Lanzarote, já na parte final e os meus filhos eram mais pequeninos e iam a correr ao meu lado. Comecei muito forte na corrida, que é o meu forte, mas depois acusei a falta de nutrição e abrandei. E eu ia naquela fase de esforço e o meu filho dizia: “Força, pai! Força, pai! Eu sou o teu ídolo! Eu sou o teu ídolo!”. E vem a irmã a correr atrás: “Não, Diogo! É o contrário! O pai é que é o nosso ídolo!”. E ria, ria ria. E eu fui a rir o resto do caminho. Ainda hoje gozamos com isso.

Eu disse: “Pá, a minha é a terceira”, já todo importante com a minha maratona. E ele sai-se com: “Ah, a minha é a décima!”. Aí comecei a ficar intrigado e perguntei-lhe se já corria há muito tempo. Ao que ele responde: “Não, só corro desde que tenho um coração novo. Fui transplantado e prometi à pessoa que me deu o coração que vou manter este coração saudável. E daí comecei a correr”. Eu fiquei assim, deste tamanho, mesmo pequenino.

Como é que eles digerem o sofrimento por que veem o pai a passar?
É complicado e tento disfarçar. Mas eles são dizem que não vale a pena, que eles sabem. Houve uma vez que sofri realmente. Era uma subida de bicicleta no Ultraman do País de Gales. Foram três dias intensos. Eles iam no carro a dar-me apoio porque a equipa pode dar apoio contínuo ao atleta. No segundo dia, já quase no final, há uma subida com 14% de inclinação muito, muito dura com cerca de dois quilómetros. A meio eu já estava cansadíssimo e só pensava: “Não posso por os pés no chão, não posso por os pés no chão”. E andava muito devagarinho. Às tantas não tenho hipótese e encosto-me ao rail com os pés ainda nos pedais. Vem a Filipa, a nutricionista, deu-me um bocado de água. Esperei um bocadinho e lá recomeço. Entretanto, ela passou-me a correr, só para se entender quão devagar eu ia. Quando eu cheguei lá em cima, estavam todos a fazer flexões. E só diziam: “Se o pai sofre, nós sofremos com ele. Se o atleta sofre, nós sofremos também”. Eles nem sabem fazer flexões! Gritei: “Eu não vou parar!” e continuei. O que vale é que depois era a descer. Mas há duas regras em que tento nunca falhar para com a minha família: não ando em “red line”, nem em treinos nem em competição. O outro compromisso é: o treino encaixa na vida e não é a vida que encaixa no treino.

Então como é o seu plano de treinos?
Agora para o Epic5 as coisas foram um bocado alteradas por causa da dimensão, mas só por isso. Profissionalmente, estava envolvido num projeto da ONU com o Instituto Nacional de Estatísticas, onde trabalhava, para fazer o recenseamento agrícola de Angola. Por sorte, o recenseamento foi suspenso, por isso estamos parados e faz um ano que lá não vou. O plano de treinos é dado pelo treinador com mesociclos de três ou quatro semanas. Normalmente, são treinos compridos para o corpo perceber para aquilo a que vai. Hoje tenho três horas e meia de ciclismo e depois uma hora e 55 minutos de corrida. Aproveito os treinos em regime competitivo ou saídas com a família para treinar noutros sítios. Por exemplo, vamos à praia e faço natação em águas abertas. Se vamos visitar alguém que more longe, eles vão de carro e eu vou de bicicleta. Para correr, o meu filho joga râguebi em Monsanto: muitas vezes vou levá-lo e faço o meu treino por lá. Os treinos são complicados de gerir pela dimensão. Porque não podem ser interrompidos, mas também não devem atrapalhar aquelas responsabilidades diárias de ir buscar os filhos ao colégio. Tento ajustar os treinos para que eles não sintam que não os vou buscar porque estou a treinar. Se o Diogo está numa explicação, enquanto ele está lá eu aproveito os jardins da cidade para corrida. A facilidade do triatlo está neste pormenor: não tens desculpa para não treinar porque ou a nadar ou de bicicleta ou a correr tens sempre hipótese de fazer qualquer coisa. Tenho as coisas todas encadeadas e a funcionar de forma fluida. Não há aquela correria. Não, calma! O dia-a-dia é um treino.

E a comida?
Varia um bocadinho porque é onde sou mais indisciplinado. Ggosto de beber o meu copo de vinho, agora com o calor uma cerveja fresca para mim é demasiado saborosa. Sempre fui um bom garfo: sou alentejano, filho de uma extraordinária cozinheira — na minha família todas as mulheres cozinham muito bem. E sou um amante da cozinha, gosto de cozinhar e inventar um bocadinho aqueles petiscos. Felizmente, com estes treinos agora posso comer e beber à vontade porque já nada me afeta. Mas com o álcool é preciso algum cuidado. E em termos de alimentação passou a ser mais equilibrada nas quantidades. Como de tudo. Nos dias antes da prova há aqueles reforços necessários de hidratos de carbono, que são planeados pela nutricionista. Mas foi ponto assente desde o início que em casa não se mudava a ementa do pai à mesa. Ajustamos todos um bocadinho. Deixámos de ter tanto hidrato ao fim do dia, porque um dos maiores erros que eu cometia era comer hidratos com fartura e ir para a cama ainda de barriga cheia. E experimentamos coisas novas, como a quinoa e o arroz integral e basmati. As variações de legumes e de acompanhamentos tem sido mais variado. Assim como os temperos: os molhos não são tão carregados como os da comida alentejano. Mas se eu chegar a casa de um familiar, não digo que não a uma feijoada ou a um cozido à portuguesa com todas as carnes gordas a que tenho direito. A única diferença relativamente ao resto da família é que faço mais refeições durante o dia.

Quando eu cheguei lá em cima, estavam todos a fazer flexões. E só diziam: “Se o pai sofre, nós sofremos com ele. Se o atleta sofre, nós sofremos também”. Eles nem sabem fazer flexões! Gritei: “Eu não vou parar!” e continuei. 

Sente alguma responsabilidade adicional por ser o único português neste desafio?
Pois é, ainda por cima numa altura em que ganhamos tudo. Já disse que quero voltar e ser condecorado pelo senhor Presidente da República. Mas para isso preciso pelo menos de chegar ao fim! Não gosto de me meter em nada que não seja para cumprir. Estar na linha de partida já é importantíssimo! Já mostra que há uma valorização do percurso que fiz até aqui, ainda para mais num evento que está cada vez mais competitivo por causa da selecção cada vez mais rigorosa. Isso provoca alguma pressão. É preciso ser forte mentalmente para conseguir lidar com essa pressão, e se possível usá-la a teu favor! Os outros têm 30 anos, eu tenho 46 e vou jogar com isso. Mostrar que “o velhinho” vai andar a morder os calcanhares aos outros. Quero ser um exemplo, não posso falhar. Porque ninguém quer ser um exemplo do falhanço.

Como é que neste percurso aprendeu a lidar com a falha?
Gostava muito de dizer que nunca falhei, mas de facto falho todos os dias e tenho aquelas lições de humildade em todas as provas. Tenho consciência das minhas capacidades porque sei aquilo que consigo dar de mim. Nunca coloco o objetivo muito distante de uma possível realidade. Às vezes fico ali aquém. Nas primeiras provas, até pela inexperiência, ficava sempre aquém. Falhava sempre um pouco: é quando ficas tão perto.

São os tais dois segundos.
São os tais dois segundos. Era só esticar mais a perna, mas não deu para esticar mais a perna. Era não ter apanhado aquela água lá atrás, era não ter olhado para trás ou não ter chamado alguém, ou não ter perdido tempo a atar o sapato ou não ter dado passagem por aquele lado, mas por outro. Pode ser qualquer coisa. Tudo junto tinha dado muito mais que dois segundos, mas se foram dois segundos já chega para alimentar a frustração. E a forma de lidar com isso é vê-la como um ensinamento.

Consegue identificar o seu calcanhar de Aquiles?
Calcanhar de Aquiles… Não sei bem como responder a essa pergunta. Tenho um mau acordar, por isso o não conseguir dormir pode vir a ser complicado. Agora, eu também sei que entrando numa espiral de doideira e de boa disposição, consigo facilmente dar a volta a isso e trazer o astral para cima. E depois sou teimoso para comer e se não me cai bem ou não me apetece desanimo.

Créditos: Pawel Naskrent/Maratomania

fot.Pawel Naskrent/Maratomania.p

Sente que teve de abdicar de alguma coisa para chegar até aqui?
Não o sinto como uma perda. Mas sinto que há coisas que tive de alterar ligeiramente. Gosto muito de estar no meu sofá a ver uma série e sinto que agora preciso de recolher mais cedo, fazer um descanso mais longo para recuperar e regenerar os músculos. Embora adormeça muito mais vezes no sofá! Um treino de 180 km de bicicleta são seis horas. Podia ter ido ver o jogo do meu filho, podia estar em casa a ser eu a fazer o almoço. Depois há coisas em que começamos a pensar de forma mais cautelosa. Ainda esta semana houve mais um acidente por atropelamento de ciclistas. Morreu o Nicky Hayden. As vezes que aquele homem caiu e foi morrer assim. De resto, tento não ser um pai ausente.

Mas já foi.
Já. Enquanto estive em Angola, aí sim. Era muito complicado. Consegui um contrato, comecei a trabalhar com o Banco Mundial nos primeiros anos e os termos diziam que ficaria no máximo entre dois meses e nove ou dez semanas em Angola e depois vinha para Portugal e ficava cá quatro semanas. Nunca falhei um aniversário, nem uma Páscoa, nem um Natal — só Carnavais. Consegui vir sempre porque organizava o calendário para isso. Mas o vir muitas vezes também tinha muitas vezes a despedida. E não houve despedida nenhuma no aeroporto em que eles não ficassem a chorar. Felizmente, hoje em dia temos o santo Skype que nos permite vermo-nos e falar: “Olha, tu cortaste o cabelo. Olha, tu estás mais crescida”. O Diogo teve muita dificuldade, demorou muitos meses até vir ao Skype. O Diogo tinha na altura seis anos, a Marta tinha oito. Para eles, e para a minha mulher, foi muito difícil. Depois, havia o contexto. Quando fui para lá a primeira vez, em 2001, o país ainda se estava a curar da guerra. Vi muitas Luandas. Não havia Internet — havia no hotel, se tivéssemos sorte ali num canto. Eu vinha fumar um cigarrinho à rua e ficava à porta com o segurança: não podia andar para baixo e para cima na Rua da Missão, uma das principais avenidas da capital.

Nunca falhei um aniversário, nem uma Páscoa, nem um Natal -- só Carnavais. Consegui vir sempre porque organizava o calendário para isso. Mas o vir muitas vezes também tinha muitas vezes a despedida. E não houve despedida nenhuma no aeroporto em que eles não ficassem a chorar. 

Sentiu que estava em perigo?
Risco de vida senti uma vez. E foi com uma polícia numa operação STOP. Uma confusão muito grande e uma situação que se descontrolou completamente. Um dos polícias que estava armado tinha a arma virada para cima — normalmente eles andam com a arma apontada para baixo. Os ânimos estavam um bocado exaltados porque houve um colega dele que me levou a carta de condução e queria “gasosa” [dinheiro]. Chegou a chefe da unidade e criou-se ali um clima tenso. Tu olhas e vês: as armas são velhas, um movimento brusco e dispara com razão. Se ele quiser, dispara e diz que foste tu que tentaste tirá-la da mão. Nunca tentei ser superior nem nunca me inferiorizei: tratei toda a gente por igual. Mas o português, para o bom e para o mau, há de ser sempre o português. Isso está muito vincado. Quando é preciso apontar a culpa a alguém é o português, quando é preciso chamar alguém para ajudar é também o português.

E o seu apelido, Massuça, tem um significado no dialeto angolano, não é?
Sou português e não tenho qualquer raíz em Angola. Mas Massuça em três dos dialetos angolanos — em kikongo, em kimbundu e em côkwe — tem três singificados diferentes. O “ssuça” em kimbundu significa “xixi” e “massuça” é “mijão”. No kimbundu, é alguém que marca o território, um animal territorial. Em côkwe, “ma” é água e “ssuça” é açúcar, então o meu apelido significa “água doce”. E em kikongo é “pai grande”. Se fores a Moçambinque, há uma comuna que se chama Massuça, mas nem lá tenho tenho raízes. A minha família é daqui: este apelido é paterno e vem daqui de ao pé de Alcoentre onde há uma freguesia chamada Massuça. Tive uma vez uma reunião em Angola onde a pessoa se recusou a receber-me enquanto eu não assumisse que era angolano. Estava cá fora e essa pessoa estava lá dentro a gritar para eu ouvir: “Esse pula [português branco] não entra aqui até assumir que a família dele fez merda aqui. E ele está com vergonha, mas vai ter de assumir”.

Do que sente saudades em Angola?
Dos bons amigos. Até gostava de organizar lá um Luanda-Benguela em bicicleta com uns amigos, acho que tinha potencial até para um Ironman. Talvez um dia aconteça. Também tenho muitas saudades da comida angolana. E das paisagens, desde a floresta tropical até às praias no deserto do Namibe. Agora, são um povo muito marcado pela guerra que não cicatriza.

A sua família alguma vez foi lá?
Só a minha mulher e foi há uns três anos. Peguei nela, fomos para Luanda e pusemo-nos de carro a caminho do Uíge. Ela ficou impressionadísisma de ver vender macacos na berma da estrada para comer. No Uíge comi catato [larvas] e ela não caiu nessa. Sabe a manteiga de amendoim e vai muito bem com uma Cuca [cerveja]. Os meus filhos nunca foram. Gostava muito que eles fossem para perceberem que nada é um dado adquirido, que tudo tem de ser conquistado e que há vidas muito complicadas que, apesar disso, as pessoas vivem com um sorriso.

Em Angola a corrida funcionava como escape?
Sim. Foi com a Elisabete Jacinto que comecei a correr, ela andava a preparar-se para um Paris-Dakar. Morava em Benfica, perto dela, e íamos para o antigo Estádio da Luz fazer umas corridinhas. Foi só para lhe fazer companhia. Depois estava a trabalhar no Instituto Nacional de Estatística, onde fiquei dez anos. Era funcionário público e a juntar a isso o facto de ser alentejano com pé chato… Era mesmo para não ter hipótese nenhuma de fisicamente estar “au point”. Fui para um ginásio onde fazia treinos a sério. Conheci o Jorge Pina, na altura ainda via. Éramos amigos na altura em que ele foi a um combate a Espanha e voltou cego. Depois, saí do INE e fui para Angola. E em Angola o escape era correr e quando vinha cá comecei a fazer corridas populares. Na primeira de que me lembro, a Corrida Carlos Lopes no Parque das Nações, acabámos debaixo da pala e o Carlos Lopes é que me ofereceu a medalha no fim. E aquilo foi marcante. Aquele homem era Deus no Céu e ele na Terra. Só me lembro de lhe dizer: “É por causa de si que eu corro”. E isso nem era muito verdade, mas foi o que me apeteceu dizer.

Na primeira de que me lembro, a Corrida Carlos Lopes no Parque das Nações, acabámos debaixo da pala e o Carlos Lopes é que me ofereceu a medalha no fim. E aquilo foi marcante. Aquele homem era Deus no Céu e ele na Terra. Só me lembro de lhe dizer: “É por causa de si que eu corro”. E isso nem era muito verdade, mas foi o que me apeteceu dizer.

Num percurso tão longo, no que é que se pensa?
Há momentos de completo vazio. Os últimos 100 metros são só meus. É a adrenalina toda, é a pele vir toda arrepiada, independentemente de teres ficado a duas horas do teu objetivo ou até teres ultrapassado as tuas expectativas. É o cruzar da linha. Chegaste. Fizeste. Do início até lá pensa-se sempre em coisas diferentes. Mas sem nunca perder o foco, não se pode. Já aconteceu tudo: ir a cantar sozinho, ir a rever notícias com que me cruzei, ir a discutir comigo mesmo determinada atitude que tive ou não tive. Mas também acontecem fenómenos muito engraçados e inesperados, de repente, sentir que estão pessoas ao teu lado a falar contigo, mas estão em países distantes. E depois, não sei porquê, tenho esta mania de falar em espanhol e dizer: “Nadie se riende!”

Há algo que pode justificar essa queda para o espanhol.
Fui forcado. Aconteceu durante a universidade e às vezes esqueço-me de contar. E tivemos muitas experiências em Espanha. Fiquei com muitos amigos. Esta vida do forcado foi o meu desporto radical. O meu pai trabalhava muito com gado e tinha um primo que tinha sido forcado. Hoje já não gosto muito. Mas senti uma paixão enorme pelo forcado, pela honestidade que tem estar a frente de um toiro em igualdade, são oito homens com aproximadamente o peso de um toiro. É uma luta de igual para igual, ao contrário do muito que é o resto da tourada. Muitas vezes expliquei que era uma forma de darmos alguma grandeza ao toiro dentro de uma praça: era irmos lá de peito aberto, olhos nos olhos abraçá-lo. Ponto final. Mas sou o primeiro a defender o animal quando está em situações de maltrato. Nos forcados há irmandade. Todos os que ali estão dentro dependem dos outros todos e têm de ter confiança total.

Créditos: Rui Pires Fotografia

Mas não foi nunca uma procura do risco pelo risco?
Não, isso nunca. Abandonei os forcados há cerca de dois anos e pouco em Alcochete. Acordei numa enfermaria em Espanha depois de uma pega que correu mal à segunda tentativa — a primeira já tinha corrido mal, a segunda foi ainda pior. Pouco tempo depois despedi-me da forcadagem. Mas tenho muita pena, gosto de ir às largadas de toiros em Alcochete, em Vila Franca e em Santarém.

É católico. Alguma vez interpretou essa tendência de aceitar desafios mais exigentes como uma forma de estar mais próximo de Deus?
Há uma frase célebre que diz: “Se queres falar com Deus corre uma maratona”. Há pouco tempo falava com alguém e comentava exatamente que, se queremos falar com todos os que já partiram e estão ao lado de Deus, temos de correr duas maratonas seguidas porque aí toda a gente a que tens direito aparece. Eu sou católico por educação, já fui muito praticante. Agora, a discussão sobre o que é a fé podia levar-nos muito longe. A minha fé é em mim mesmo e naquilo que sou e acredito que sou o que sou devido às pessoas com que me cruzei no caminho da vida. Não falo apenas daqueles que nos deram os ensinamentos com a melhor das boas vontades. Estou a falar também de ensinamentos de pessoas sem valor nenhum. Aprender a combater aquele tipo de personalidade tóxica. E brinco ao dizer que há uma diferença entre fé e fezada. Quando estou na partida, é sempre fezada. Quando chego ao fim, é muito de fé. Foi muita fé que me levou até à meta.

Alguma vez sentiu que essa fé não funcionava?
Sim. Temos sempre momentos de dúvida, sempre! E acho que a nossa grandeza também é por aí. Porque se tudo fosse fácil, qualquer um fazia. Quando somos postos à prova é exatamente quando tudo falha e sentimos que estamos sozinhos. Há um ditado que diz: “Se queres conhecer alguém leva-o para o deserto”. No deserto não tem nada e a pessoa revela-se. Essencialmente é preciso ter o estofo emocional. Agora, se eu tenho fé? Eu tenho uma fé inabalável. Para desistir de mim tinha de ser por algo maior. Portanto, há essa hipótese. Essa é a minha fé: acreditar num bem maior. Posso chamá-lo de Deus, forças que podem ser as mesmas que mantêm juntos estes pedacinhos que nós somos.

Gostava de desafiar vários. Por várias razões diferentes. Olha, logo à cabeça o Cristiano Ronaldo: achava que lhe ganhava na maratona. Não, acho que lhe ganhava em tudo! Fica o desafio. 

Já pensou como vai celebrar quando chegar à meta do Epic5?
Por acaso temos pensado um bocado nisso porque esta prova, como somos poucos e todos diferentes, é normal que vá terminando com muitas horas de intervalo. Há um local de chegada, mas não há um aparato de meta e por isso a festa vai ter de ser feita por nós. E um bocadinho à semelhança do que o que vivemos no Ultraman do País de Gales, faz parte da equipa preparar uma chegada de arromba. Só não sei se nos Estados Unidos agora nos permitem lançar fogo de artifício…

Havia algum português com que gostasse de participar nesta prova?
Gostava de desafiar vários. Por várias razões diferentes. Olha, logo à cabeça o Cristiano Ronaldo: achava que lhe ganhava na maratona. Não, acho que lhe ganhava em tudo! Fica o desafio. Adorava ter comigo a Rosa Mota, o Carlos Lopes… Pessoas que foram marcantes a nível desportivo. A Aurora Cunha! O Herman José havia de ser giro. E havíamos de adaptar a canção do Salvador Sobral para um “Correr pelos Dois”. Tenho um respeito imenso pelo nosso Presidente, como tenho por outras figuras públicas que gostava de ver em calções a sofrer ao meu lado neste tipo de evento. Para conhecer um bocado mais das suas personalidades, porque também há essa curiosidade: saber como reagiriam perante uma situação destas. Este é o meu deserto.

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