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Leonardo Negrão / Global Imagens

Leonardo Negrão / Global Imagens

José Mattoso (1933-2023): o historiador moderno

Criou uma "escola" que foi um milagre da historiografia portuguesa, revolucionou o estudo da Idade Média, arrojou nos métodos e tornou-se central na História publicada em livro. Morreu aos 90 anos.

A História “moderna” tem dois grandes momentos fundadores. O primeiro, no século XIX, é o tempo de Michelet e da extinção dos conventos, o tempo em que surgem documentos guardados há séculos, que define o cânone documental da historiografia europeia e em que o texto, o documento, ganham um destaque inigualável na produção historiográfica.

Em Portugal, é o tempo de Herculano e da polémica sobre o milagre de Ourique, mas também o das grandes obras sobre a administração e a organização dos governos. É deste contexto que saem obras como a História da Administração Pública em Portugal, de Gama Barros, ou o trabalho do Visconde de Santarém sobre a nomeação e organização das cortes: trabalhos que aproveitam os manuscritos e editais, que exploram as ordenações e, de facto, conseguem trazer uma luz extraordinária sobre a organização formal das sociedades. Todos aqueles temas caros a Herculano – o município, até mesmo, depois, a Inquisição – são temas centrais no corpus legal da documentação historiográfica. Se é certo que Herculano também revela, estuda e publica crónicas desconhecidas, que usa relatos coevos de episódios mais ou menos conhecidos, a verdade é que não é essa a sua grande arma. Ele tem poder narrativo, sim, consegue, no meio a sua vertigem de informação, trazer uma história escorreita, sim, mas nisso só é uma novidade pela quantidade de informação de que dispõe. Tirando os casos antigos em que a informação aparece em bruto, como na História Genealógica, a grande diferença de Herculano para os historiadores anteriores não é narrativa, vem sobretudo do teor das fontes mais valorizadas.

A revolução “científica” do século XIX é, no campo da história, inegável. As fontes são mais seguras, o trabalho historiográfico, em geral, mais rigoroso e cava-se, de facto, uma diferença grande entre a historiografia erudita e a historiografia popular.

Mattoso, além de um historiador moderno no sentido metodológico, o foi também num sentido escolar muito significativo

LUSA

Alguns anos depois, contudo, surge uma escola francesa um tanto polémica, é certo, com alguns problemas graves em vários dos seus pressupostos ideológicos, sim, mas que operará uma revolução análoga. O princípio fundamental, mesmo que não declarado, mesmo que escondido no meio de uma ganga um pouco mais pretensiosa, o princípio que de facto torna a escola dos Annales, a escola de Bloch, Braudel ou Duby que surgiu à volta desta revista, realmente revolucionário é este: é possível confiarmos nas fontes? Ou seja, diante de um documento, é possível confiarmos naquilo que está lá escrito, ou precisamos de saber porque é que aquilo foi escrito daquele modo ou com aquelas palavras?

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Esta pergunta simples, de aparência conspirativa e que trará também uma série de vícios à produção historiográfica, altera, só por si, o campo da História. Basta usar uma ordenação, um qualquer documento legal, para percebê-lo. Quando surge uma lei, a lei surge para alterar uma situação existente. Daí que, se usarmos a lei como fonte “pura”, aquilo que tenhamos seja muito diferente daquilo que surge de um olhar desconfiado para a fonte. A lei dá-nos a situação final, o modelo comportamental, mas também nos dá, vista de outra maneira, aquilo que existiria e que se quer alterar. A fonte dá-nos, assim, a história formal, os fins dos governos e as aspirações organizativas, mas também mostra o fosso que existe entre esse fim e aquilo que se passa verdadeiramente no quotidiano das sociedades.

Um olhar destes altera, assim, o foco da história. Deixa de estar nas grandes formulações governativas e legais, deixa de estar na organização formal do município ou do concelho, e passa a tratar fundamentalmente da organização informal ou subterrânea da sociedade. De uma História política passa, sobretudo, a uma História social.

Mattoso vem da história eclesiástica e, mesmo que não tivesse uma imaginação histórica e uma elasticidade de pensamento impressionante, poderia sempre ter uma obra de uma importância erudita no estudo dos conventos medievais, da sua organização, entre outros aspetos.

Ora, não deixa de ser significativo que esta escola dos Annales tenha surgido em força, sobretudo, entre medievalistas. A diferença entre a quantidade de documentos à disposição de um medievalista e de um historiador que se dedique ao século XIX obriga, naturalmente, o medievalista a um esforço de interpretação das fontes que não tem par em outros campos do saber. É a história da Idade Média que vai aparecer, então, como o campo privilegiado das histórias sociais, em que se desenvolverá, sujeita ao mesmo princípio, uma instrumentalização de outros campos das ciências sociais. Isto é, se a fonte é alvo de desconfiança, é preciso estar atento a outros sinais que revelem o modo de organização da sociedade – sinais que passaram ao lado dos cronistas, que estão subentendidos, e que podem exigir outros métodos para os revelar.

É neste quadro, no quadro que surge dos Annales e da consciência de que a História Medieval tem uma série de alvos por conhecer, que surge a obra historiográfica de José Mattoso (que morreu este sábado, 8 de julho, aos 90 anos). Mattoso vem da história eclesiástica e, mesmo que não tivesse uma imaginação histórica e uma elasticidade de pensamento impressionante, poderia sempre ter uma obra de uma importância erudita no estudo dos conventos medievais, da sua organização, entre outros aspetos.

Contudo, a importância da sua obra vai muito para lá disso e não se cinge, também, ao facto de ter sido uma espécie de introdutor de um método relativamente novo. A centralidade da obra de Mattoso advém do facto de encarar a aspiração dos Annales como mais do que um método. Não é muito relevante, para Mattoso, o uso da antropologia em si ou de uma espécie de psicologia mais ou menos estruturalista; o relevante é a consciência de que os problemas historiográficos exigem ser conhecidos do modo que mais luz dê sobre eles e que isso pode implicar uma certa vagabundagem nos modos de análise. Tanto se podem usar os conceitos geográficos de Orlando Ribeiro como a estrutura do parentesco trazida por Levi-Strauss; a escola de Mattoso não é uma ou outra, mas a consciência de que tudo pode ser usado como método historiográfico.

Ora, se isto não fosse suficiente, Mattoso teria, além do mais, os resultados para defenderem a sua ideia. A história medieval de Portugal é um campo completamente diferente depois de Mattoso, precisamente porque ele soube encontrar campos que beneficiam largamente com a mudança do foco.

A história medieval de Portugal é um campo completamente diferente depois de Mattoso, precisamente porque ele soube encontrar campos que beneficiam largamente com a mudança do foco

NUNo ALEGRIA/LUSA

Dos conceitos confusos ou intermédios, como os de ricos-homens e infanções, às famílias que povoavam o norte do Douro e que constituem o centro de poder pré-fundação de Portugal, o grande estudo de Mattoso escora-se nestes centros de poder não declaradamente político ou formal (como, de resto, se verá também na história eclesiástica) cujas fontes são, de um modo ou de outro, crípticas. Aquilo que se vê nas suas análises das crónicas dos Infantes de Lara ou na não tão rica documentação portuguesa é precisamente um exercício interpretativo que encontra sinais de poder ao lado das narrativas principais. Esta atenção também lhe permitirá transferir o foco do seu estudo para uma nobreza vista, não só como subsidiária de um rei ou sua rival, mas com um projeto próprio de consolidação do seu prestígio. E se este trabalho será especialmente desenvolvido por alguns dos seus discípulos (Luís Krus à cabeça), Mattoso integra-o em períodos em que este é especialmente importante.

Isto é, tratar o papel das famílias de Riba Douro não tem a mesma pertinência ou a mesma porosidade num tempo em que se estão a definir os centros de poder que teria numa época em que estes estivessem perfeitamente consolidados. O estudo de Mattoso não nos traz, assim, apenas novidade: traz novidade em alguns aspetos críticos, que são centrais para a compreensão do país.

O mesmo se passa, por exemplo, com aquilo que é estudado na sua grande obra, Identificação de um País. A ideia de procurar zonas de comportamentos específicos, quer no tipo de trabalho quer na organização familiar, seria sempre interessante. Identificação do país é uma espécie de suma de campos e métodos historiográficos a que, mesmo que estranhemos um carácter por vezes fragmentário, é impossível fugir; mas é especialmente importante quando visto em relação com um país que se está a construir e que tenta forçar, por um lado, uma certa unidade e, por outro, resulta mesmo do embate entre a coroa ou o poder e essas organizações e mentalidades estabelecidas.

Os trabalhos de medievalistas direta ou indiretamente orientados por Mattoso foram, pelos anos noventa, de uma qualidade que dificilmente se viu noutra época do ensino universitário português. Além disso, porém, Mattoso coordenou uma História de Portugal cuja importância didática também é importante realçar.

Os livros de linhagens, os romances velhos, as crónicas de Santa Cruz, os manuais de espiritualidade, tudo serviu para Mattoso olhar para a história medieval e de tudo Mattoso tirou mais do que aquilo que se encontra numa leitura simples. É claro que esta leitura não está isenta de perigos. A sua interpretação do papel de Egas Moniz – tão contestada por Almeida Fernandes, por exemplo – é bastante frágil e o próprio Mattoso, quando procurou encontrar uma consciência teórica para o seu trabalho, não esteve à altura dele. As suas ideias de “história contemplativa”, até as suas reflexões sobre a escrita da história, resvalam para um filosofismo que não tem, nem de perto nem de longe, a clareza e a inventividade do seu trabalho historiográfico propriamente dito.

Resta acrescentar, ainda, que Mattoso, além de um historiador moderno no sentido metodológico, o foi também num sentido escolar muito significativo.

A “escola” que Mattoso criou foi, durante muitos anos, um milagre da historiografia portuguesa. Os trabalhos de medievalistas direta ou indiretamente orientados por Mattoso foram, pelos anos noventa, de uma qualidade que dificilmente se viu noutra época do ensino universitário português. Além disso, porém, Mattoso coordenou uma História de Portugal cuja importância didática também é importante realçar. Não só pelo bom trabalho historiográfico – que é, de facto, inegável – mas porque inaugurou uma era de produção historiográfica monumental acessível ao grande público.

É depois da sua História de Portugal que surge a coleção dos Reis de Portugal (em que Mattoso escreve o primeiro volume, sobre D. Afonso Henriques) e, mais tarde, a sua história da vida privada. O modo como a vida editorial se alcandorou em Mattoso para fazer da história uma disciplina do grande público, como aliás se nota pela quase simbólica passagem dos seus livros da editorial Estampa para o Círculo de Leitores, tem um grande impacto em Portugal, porque reconcilia a disciplina universitária com o público. O público lê Mattoso e os historiadores universitários como 100 anos antes se liam Rocha Martins ou outros historiadores populares. O facto de Mattoso ter conseguido, também, elevar o público é, assim, um feito extraordinário (mais um) da sua longa vida.

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