Quando Julián Fuks publicou A resistência, obra que lhe valeu os prémios Jabuti e Saramago e a fama de ser um dos melhores jovens escritores do Brasil, propôs a si próprio fazer uma coisa diferente no livro que escrevesse a seguir — não olhar tanto para dentro e mais para fora, procurando ver o mundo pelos olhos dos outros. Para ser capaz de cumprir esse objetivo, foi fundamental o convite inesperado que recebeu para participar na residência literária da Ocupação Hotel Cambdrige, no centro de São Paulo, que abriga cerca de 170 famílias que não têm onde viver, mas também a participação num programa de tutoria com Mia Couto, promovido pela Rolex.
Tudo isso foi importante para que um livro que originalmente se chamava Os olhos dos outros se transformasse em A ocupação, título que aponta para a Ocupação Hotel Cambridge onde Fuks conheceu várias das personagens que enchem as páginas da obra de ficção, mas também para uma proposta literária que o escritor quer apresentar — a de fazer “literatura ocupada”, integrando a política, tão central nos dias de hoje, na literatura.
“[A literatura] é também um lugar a ser ocupado. Pode ser ocupado de forma contingente ou temporária, mas que se deixe ocupar pelo presente, pela política, por essa urgência que a gente tem vivido de diversas maneiras, talvez mais no Brasil do que noutros lugares”, explicou em entrevista ao Observador. “No Brasil, a política se tornou uma coisa completamente pervasiva, que domina a vida quotidiana de cada um. Então, era impossível que isso ficasse de fora. Me pareceu fundamental que fosse um tipo de ocupação dentro do livro.”
Foi sobre a necessidade de integrar “algo que se tornou tão constante, tão absoluto na experiência quotidiana” naquilo que escreve, respondendo igualmente a um apelo que surgiu após a publicação de A resistência, obra baseada na vida dos seus pais, que fugiram da Argentina para o Brasil durante a ditadura militar que na altura foi muito associada à situação política brasileira, que conversámos com Julian Fuks, ele lá, em São Paulo, e nós cá, em Lisboa. Mas também sobre a necessidade de integrar o que lhe é próximo nas histórias que conta e sobre o que há de verdadeiro nas tramas que ficciona, como a descoberta, narrada em A ocupação, de que os seus bisavós, pais do seu pai, morreram no campo de concentração de Auschwitz.
Em A ocupação, o sucessor de A resistência, voltou a recorrer ao tom autobiográfico e a ficcionar a sua história e a da sua família. É mais fácil partir do seu mundo para falar do dos outros?
Acho que sim. Encontrei uma forma mais confortável, uma voz mais confortável, onde me posso instalar e uma perspetiva em que consigo sentir mais confiança. Nunca fui um grande inventor de mundos, não sou um escritor muito imaginoso, então a minha tendência é a de ter sempre um olhar muito pessoal e narrar coisas que conheço ao máximo. É essa a proposta para que consiga algum aprofundamento sem recorrer tanto à fabulação. Ao mesmo tempo, tinha uma vontade, uma necessidade, de não falar só sobre mim, de escrever um tipo de auto-ficção que fosse uma aproximação ao outro, que levasse em conta a autoridade.
Sinto que há uma espécie de processo expansivo de mim em direção ao outro. No meu primeiro romance, Procura do romance [2012], já aparece Sebástian [personagem principal de A ocupação e de A resistência], essa voz que se tornou numa espécie de alter-ego constante para mim, mas as questões dele como escritor estão muito mais presentes do que em quaisquer outras [obras]; depois, [em A resistência, aparece] um olhar mais para os outros, mas outros muito próximos — o irmão, os pais, a família, um núcleo ainda bastante íntimo. A proposta de expansão em A ocupação é justamente chegar a outros mais distantes. É uma composição de círculos concêntricos, [que me deixam] cada vez mais longe de mim mais, mas sem sair da minha própria voz, que é onde me sinto à vontade para existir literariamente.
Mas continuando sempre a manter uma base que é muito real.
Sempre. Não consigo me afastar disso. Para mim, a literatura se tornou isso, uma tentativa de me aproximar ao máximo do real.
E também numa forma de auto-reflexão?
Também. [A literatura] sempre com um elemento auto-reflexivo, fundamental para que o narrador e personagem reflita sobre isso mesmo, problematize tudo o que pensa que vê e para que o próprio livro se problematize, para que não exista pacificamente no mundo como um objeto que não é problematizado. Antes pelo contrário, para que ele ganhe outras camadas e se mostre ele próprio como um problema.
Antes de chamar a este livro A ocupação, pensou em chamar-lhe Os olhos dos outros.
Sim, era essa a proposta inicial. Tinha essa ideia de procurar alcançar a autoridade, associada à ideia que surge na primeira página, de que nos olhos dos outros a gente também se vê refletida. O projeto inicial tinha basicamente as características que o livro tem, exceto a ocupação de moradores sem teto. O livro responde a certas circunstâncias que não são totalmente decisão minha. Recebi um convite que alterou o projeto que estava iniciando. Tinha escrito um, dois capítulos, quando fui convidado para estar [como escritor residente] na ocupação [Hotel Cambdrige] de moradores sem teto, no centro de São Paulo, um convite totalmente aberto, em que podia fazer com aquilo aquilo que bem entendesse. Pareceu importante, uma janela que se abria, e me situei ali. Com o passar do tempo, me dei conta que aquele livro não se podia chamar outra coisa que não A ocupação, porque dialogava muito diretamente com A resistência. Tinha a proposta de manter algo desse olhar, da forma como a política acaba interferindo nas vidas individuais. São dois olhares quase complementares, que acabam encarnando “ocupar e resistir”, a palavra de ordem fundamental do nosso tempo.
Esse diálogo também é mantido através das próprias personagens. Na Ocupação Hotel Cambridge, vivem muitos migrantes e refugiados. No seu livro anterior, falou dos seus pais, que se exilaram no Brasil.
Exato. Depois de ter contemplado um pouco a noção de exílio na Resistência, mas a partir de um exemplo único, tinha a possibilidade de compor um quadro um pouco mais vasto — ainda que dessa forma contida, num livro curto –, um quadro um pouco mais plural do que pode ser essa questão, que é também uma questão contemporânea fundamental, esse trânsito constante de seres de países vários.
Na carta a Mia Couto, fala em escrever “literatura ocupada”. O que é que quer dizer com isso?
É uma espécie de reflexão sobre as possibilidades de atuação política no presente. O que vejo, o que narro, a possibilidade de ocupar praças, ruas e prédios vazios, tem sido a ação política mais contundente no tempo presente. Comecei a me perguntar, enquanto escritor preocupado em fazer algo como uma literatura política neste tempo, se não era possível a ocupação de espaços mais abstratos do que esses. A ocupação da literatura foi uma ideia que surgiu no meio dessa escrita. De repente, se acendeu uma luz — [a literatura] é também um lugar a ser ocupado. Pode ser ocupado de forma contingente ou temporária, mas que se deixe ocupar pelo presente, pela política, por essa urgência que a gente tem vivido de diversas maneiras, talvez mais no Brasil do que noutros lugares. No Brasil, a política se tornou uma coisa completamente pervasiva, que domina a vida quotidiana de cada um. Então, era impossível que isso ficasse de fora. Me pareceu fundamental que fosse um tipo de ocupação dentro do livro. [Que a literatura fosse] ocupada pela política, pelo presente, pelas vozes dos outros, e também que esse narrador não fosse um ocupante dos outros. Que não fosse eu a ocupar a voz do outro, mas que a voz do outro fosse convocada a tomar lugar no meu livro e a se deixar falar.
Arranjar uma forma de abordar as questões políticas atuais tornou-se uma preocupação para si?
Não era noutro tempo. Nunca pensei que a literatura devesse ser necessariamente política; nunca olhei para literatura como necessariamente engajada, e não acho que isso se deva converter nalgum tipo de imperativo. A literatura não tem porque responder a esses imperativos. Em tempos recentes, acho que vou por dois caminhos. Meu sentimento é o de se que algo que se tornou tão constante, tão absoluto na experiência quotidiana, não pode ser subtraído quando a gente vai fazer literatura. Se subtraísse isso, subtrairia muita coisa da experiência da existência. Era preciso incorporar isso. Por outro lado, [tenho] a perceção que vem desde A resistência de que o pessoal é político. Na Resistência, comecei a escrever um livro sobre a adoção do meu e, pouco a pouco, me aproximei da questão política. Era inevitável, era impossível não me aproximar pelas circunstâncias daquela adoção, por ter sido feita em plena ditadura militar [na Argentina], pela história do meu irmão, a minha e a dos meus pais estar totalmente atravessada pela perseguição que eles sofreram e a necessidade de escapar para o Brasil. Enfim, uma série de circunstâncias biográficas que faziam com que aquele livro que se pretendia só pessoal se tornasse necessariamente político.
Depois, [há o facto de que] publiquei um livro chamado Resistência no Brasil em 2015, às vésperas do que foi o impeachment e da rotura democrática bem evidente que se deu em 2016, que foi quando a circulação da Resistência foi mais forte aqui. Aí, acho que fui automaticamente convocado a falar sobre resistência, sobre a relação entre política e literatura, que era uma coisa, como disse, que tinha acontecido ao longo do livro e que não tinha sido uma decisão prévia. Ao ser convocado a falar, também me vi num lugar em que pude ver a importância daquilo. Encontrei importância nesse apelo e fui, de facto, me envolvendo mais e mais com esses processos, e pensei que era impossível não [os] internalizar à partida no livro seguinte. A ocupação nasceu assim de um projeto muito mais político do que era A resistência.
Mas a forma como o fez acabou por surgir por acaso. Como contou há pouco, o convite para participar numa residência artística na Ocupação Hotel Cambridge foi inesperado. Embora já existisse uma preocupação política, o rumo que as coisas tomaram não foi necessariamente tomado por si.
Mesmo sem esse núcleo da ocupação, a ideia de Os olhos dos outros já estava um pouco além do núcleo familiar, da mulher que está ali presente, com o seu corpo ocupado por um bebé, ou do pai no hospital, com o corpo ocupado pela doença. Esses outros que cercam a família e o indivíduo já tinham muita importância no projeto inicial, só que eles viraram outra coisa a partir da entrada da ocupação. Em todo o caso, a sua pergunta é perfeita, porque de facto é isso — respondi a um apelo, a um convite da ocupação, mas também já vinha respondendo a um apelo para que fizesse, para que falasse de política por ter escrito o livro anterior, que foi lido muito dessa forma. Ainda que falasse da década de 70 e 80, foi lido como uma resposta ao presente. Comentavam da possibilidade do retorno do autoritarismo ao poder, etc.
Saiu no momento certo?
Saiu num momento que estabeleceu muita relação com os processos que estavam acontecendo. E aí o convite, o apelo, de que continuasse a fazer aquilo. E me pareceu fazer todo o sentido dar uma resposta positiva. Quando escrevi Procura do romance, que é muito menos político, tinha um olhar para a literatura que vinha dos meus estudos académicos, a ideia de uma literatura que busca a sua autonomia, que era quase oposta a esta noção de um livro como um conjunto de regras fechadas, respondendo a suas próprias regras, suas próprias leis, e organizado em torno disso. Era uma narrativa sobre a impossibilidade de narrar, um romance sobre a morte do romance, ou seja, sobre questões estritamente literárias. Agora me senti muito mais aberto. Acho que é muito mais rico o processo literário quando se está em diálogo com o outro, quando se dá em resposta a um anseio do outro e menos à visão do escritor, fechado em si mesmo, em sua própria casa, com os seus pensamentos.
Um dos momentos centrais no livro é a ocupação de um edifício central em São Paulo. Como é que foi participar nessa ação?
Foi uma experiência muito forte e de muita ambivalência. É isso que tento narrar no livro — acompanhar de perto pessoas tão desprovidas, despojadas de tudo, num regime de máxima necessidade, respondendo a apelos muito primários de sobrevivência, vendo a necessidade daquilo tudo e compreendendo a justiça daquela causa; e, ao mesmo tempo, percebendo ali uma incrível força, que tem algo de potência revolucionária, sem dúvida. É um poder de reação, de rutura de uma certa inércia em que estamos todos imersos a maior parte do tempo. Para mim, foram quase duas experiências distintas, que precisei acomodar uma com a outra e relacionar uma com a outra — a madrugada que passei vagueando por aquele edifício completamente arruinado, vendo o grau de destruição a que a gente pode chegar como civilização, como sociedade; e, no dia seguinte, o grau de organização e de mobilização daquelas pessoas para começar a transformar aquele espaço. Houve a ocupação na madrugada e a ocupação da manhã. Para mim, foi um evidente amanhecer de tantas outras disposições, de outras ações; foi um sentimento de que era possível fazer algo mais do que aceitar a ruína. Foi muito marcante e precisei de um tempo para conseguir escrever sobre aquilo.
Continua envolvido no Movimento Sem Teto [responsável pela Ocupação Hotel Cambridge]?
Continuo. Claro que com a perceção de que não posso me tornar um militante daquela causa, daquele movimento. Posso participar, me envolver de diversas maneiras, mas há uma diferença de lugar social e de pertinência naquele espaço. Essa era uma tensão que não queria diluir completamente [no livro]. Não se trata de uma fusão entre seres, em que me torno um sem teto naquele lugar. Há uma diferença. Acho que essa é também uma questão importante do ponto de vista da história da literatura brasileira. Quantas vezes o intelectual tentou fazer essa aproximação ao outro sem perceber que há fricção nessa aproximação, sem perceber que há ruído, achando que a gente podia superá-lo completamente dar voz ao outro. O meu projeto não tinha intenção de ser nem um pouco assim. Tudo o que há de estremecimento nessa relação tinha de aparecer também.
No livro, o pai de Sebastián, o seu alter-ego, descobre que os seus avós morreram em Auschwitz. É um outro episódio verídico?
Sim, isso é verdade. Aquele diálogo que aparece aqui, e que se deu com o meu pai em circunstâncias muito semelhantes àquilo que está narrado em Ocupação, foi posterior à escrita da Resistência. Depois de escrever esse livro, o meu pa se viu tentado a ir atrás de informações.
A saber um pouco mais.
Sim, a saber um pouco mais do passado que não aparecia ali, dos pais dele e das coisas que escaparam à minha existência e à minha escrita. Se pôs a investigar e foi descobrindo coisas que para ele foram ganhando relevância íntima. Para mim, a grande surpresa foi que ele não soubesse de algo assim. Era sempre muito vago. A gente sabia que os seus antepassados, os seus avós, tios e primos tinham morrido nos campos, que tinham sido levados para os campos. Era uma coisa bem vaga, incerta, e realmente talvez não fosse preciso saber mais, mas em algum momento ele se viu disposto a investigar mais, quase como dando continuidade à investigação que tinha feito sobre a existência dele e de minha mãe na ditadura argentina.
No tempo dele, quando ele era jovem, a política não passava tanto pela vida pessoal. Não havia uma procura tão intensa para saber das trajetórias individuais. Isso interessava muito menos do que os destinos coletivos. Ele próprio não estava interessado em saber do passado dos pais ou dos avós, porque tinha um olhar muito mais voltado para o marxismo ou para o sionismo no seu primeiro momento, quando tinha outro caráter bem diferente do de hoje. Por um câmbio geracional importante que se deu de algumas décadas para cá, as pessoas começam a olhar para a política partindo da experiência íntima, o pessoal e o político se entremesclam, se confundem, e a noção de que o que é pessoal é político, vinda do feminismo, ganha importância em muitos cenários em simultâneo. Ele próprio, que é de outra geração, se vê associando hoje essas duas coisas e tentando investigar o próprio passado para pensar também o Holocausto e aquela opressão.
Sabiam que os familiares do seu pai tinham sido levados para campos de concentração, mas o nome Auschwitz tem outra carga, outro peso.
Acho que dizer os campos genericamente era uma forma de não ouvir exatamente o que tinha acontecido. Era não dar o nome de morte à morte. Quando se fala Auschwitz, com todo o arsenal de imagens, referências e histórias que a gente, aquilo que era vago se concretiza de imediato, ganha cenário, espaço, tempo. Ganha tudo. É preciso encarar o passado com muito mais concretude quando surge um nome assim. Quando surge o nome Auschwitz. Ao mesmo tempo, porque há toda essa construção simbólica em torno do termo, do lugar, do acontecimento, se cria um turbilhão de sentimentos que não está muito distante da euforia. Há uma espécie da euforia da descoberta. Quando descobri aquilo, foi estranhamente… Como dizer? É difícil achar a palavra certa para isso. Talvez euforia seja de facto a única forma de descrever isso. Havia uma euforia associada à angústia.
Foi um choque?
Talvez seja isso. Num choque, muitas sensações se misturam. Acho que para uma geração que durante muito tempo se voltou para o pessoal porque sentia o coletivo como ténue de mais e impalpável, de repente ver a sua própria vida e a vida dos seus avós e antepassados tocadas tão diretamente pela história, faz surgir o sentimento de que algo importante está presente ali e está na origem de quem a gente é.
Há pouco falei na carta de Mia Couto. Há um momento no livro em que reproduz um pouco daquilo que foi o diálogo que foi mantendo com ele durante a escrita de A ocupação. Porque Mia Couto teve um papel importante no desenvolvimento deste livro, foi seu tutor ao abrigo de um programa da Rolex. Como é que surgiu essa oportunidade? Como é que foi essa experiência?
Esse foi o outro elemento da convocação externa para escrever esse livro. Disse que havia um projeto anterior ao convite da ocupação e isso foi justamente porque no mês em que publiquei A resistência, ainda em 2015, surgiu o convite para tentar a bolsa da Rolex para produzir um livro sob a tutoria de Mia Couto. Muito rapidamente tive de alinhavar um projeto que foi esse, o dos olhos dos outros. Não pensava em escrever um outro livro tão rapidamente, mas compus aquilo e, como disse, fez sentido e foi a base de tudo o que escrevi depois. Participei nesse processo, fui escolhido pelo próprio Mia Couto e fui sendo acompanhado, fui lhe expondo as minhas ideias. A gente discutiu muito mais conceção do livro e as nuances que ele teria, o projeto em si, do que o texto, porque demorei muito tempo até finalmente conseguir escrever. Passei muito mais tempo em silêncio do que efetivamente escrevendo.
Foi só em 2019 que começou a escrever, não foi?
Sim, 2018, 2019. Demorei mais ou menos um ano, terminando em setembro de 2019. Só que todo o projeto da Rolex foi oficialmente anterior a isso. A gente trocava ideias. Contrariamente a mim, ele estava escrevendo muito nessa época, estava a escrever a trilogia [As Areias do Imperador], e ele sim me oferecia os textos para ler. Eu não escrevia nada [risos]. Foi também um grande privilégio ter acesso a esse processo construtivo. Somos escritores muito diferentes, ele tem uma mão muito mais solta que a minha. Tento ter controlo absoluto do texto, e ele me tentava convidar a me descontrolar, a inventar mais, a escapar um pouco mais do real, a me permitir algum grau de fabulação. Ele sentia que me fazia refém disso e que devia soltar mais a mão, no sentido de também me permitir uma linguagem um pouco mais lírica, próxima da dele. Isso foi uma disposição que tinha e acho que em alguns momentos isso vem à tona — transformo um pouco a minha forma de escrever. De novo: era outro dos apelos que vinha de fora e ao qual queria responder.
Foi muito importante o diálogo com ele e, no instante em que finalmente me pus a escrever e a enviar as coisas e ele lendo, comentando o texto em si, percebi que aquela interlocução tinha de fazer parte do livro. Como já disse, me interessa sempre que haja uma dimensão auto-reflexiva, meta-linguística mesmo, e me pareceu que fazia sentido que aquele diálogo encontrasse algum lugar. Claro que não são cartas que a gente efetivamente trocou. Ali, sim, entra um pouco de ficção, da mesma maneira que há ficção em no resto do livro, como uma síntese, como uma consolidação daquilo que de facto se deu. As coisas que conversei com ele se consolidam naquela carta. E a resposta dele me pareceu lindíssima. Desde o início que a proposta era a de que a resposta dele entraria no livro e que aquele seria um outro tipo de ocupação. O livro seria ocupado por um outro autor, levando essas vozes dos outros ao limite, porque ali desaparece a minha autoria e surge outro autor, que pode dizer exatamente o que quiser naquele espaço. Me parece um momento belíssimo. E esse me permito elogiar, justamente porque não é meu [risos].
[Mia Couto a ler a carta que enviou a Julián Fuks e que o escritor reproduziu no seu último livro:]
Mia Couto já era um escritor de que gostava, que admirava?
Sim, muito. Sempre. Mas ao mesmo tempo com a perceção da diferença, que temos projetos muitos distintos e formas de escrita muito diferentes. Não fosse pela proposta da Rolex, não me teria ocorrido um tipo de diálogo, de interação assim, mas para mim foi interessantíssimo. Até porque ele é um sujeito de profunda generosidade, sensibilidade. Estava disposto ao diálogo com uma proposta literária bem distinta da dele. Acho que foi uma das coisas que o atraiu para me escolher também. Funcionou bem.
A ocupação foi publicado no Brasil no final de 2019, mas só agora chegou a Portugal por causa da pandemia da Covid-19. Como é que tem vivido estes tempos? A situação no Brasil está longe de estar controlada.
As coisas estão bem terríveis por aqui, porque se associam duas crises simultâneas. Há essa crise que é mundial, a da pandemia, mas há uma outra crise, muito peculiar, que é a de um país completamente desestruturado politicamente, governado… É até difícil definir o que eles são… Ineptos, ignorantes, loucos, brutos. Tudo isso simultaneamente e uma coisa agravando constantemente a outra, se retroalimentando. Neste momento em que estamos conversando, meados de junho, dá a impressão que a gente não será capaz de sair disso. Enquanto outros países se organizaram bem e conseguiram constituir uma saída da pandemia um pouco mais segura e mais controlada, embora ainda incerta, no Brasil, o que a gente vê é um cansaço da quarentena, uma desistência de controlar a pandemia, uma disposição de voltar para o mundo independentemente das consequências. Para muita gente, o sentimento é esse. Nesse momento, São Paulo está começando a se abrir, a abrir o comércio com números altíssimos de mortalidade. Qual é o sentido de agir desta maneira? É como se o país tivesse perdido a capacidade de uma racionalidade política, de decisões. Isso é muito desesperador e coloca a questão de como produzir uma reflexão — uma reflexão crítica — diante dessas informações absurdas. Ao mesmo tempo, é possível dizer que tem existido uma reação forte a tudo o que tem acontecido. Há uma organização maior, uma coagulação de grupos tentando se opor a esse manejo tão absurdo da política. Não é um momento de total desespero, desamparo ou pessimismo. A gente começa a ver as coisas a se organizar melhor e boa parte das pessoas desistindo do projeto absurdo que está no poder. Acho que a gente caminha em direções melhores, mas é difícil ao saber quando isso vai se concretizar.