A tinta vai descascando as portas. As ervas crescem na calçada. O cadeado grosso, em metal, abraça o portão enferrujado do Teatro da Vilarinha, no Porto. Em 2018 a União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde exigiu que a companhia de teatro Pé de Vento saísse do edifício na Rua da Vilarinha, numa decisão justificada com a vontade de ter uma programação mais diversificada no espaço. Seis anos passados, nada aconteceu ali desde a saída da histórica companhia portuense. O teatro mantém as portas fechadas, o concurso para as obras necessárias à reabertura ainda não foi lançado, e o futuro da Pé de Vento está em risco. Ao Observador, o presidente da junta, Tiago Mayan, garante que o Teatro da Vilarinha vai reabrir em 2024.
“Antes é que andava para aí muita gente”, atira um morador que passa em frente ao edifício virado para a Estrada da Circunvalação. Foi em outubro de 1996 que o Teatro da Vilarinha abriu pela primeira vez, graças a um esforço conjunto da Secretaria de Estado da Cultura, o Governo Civil do Porto, a Câmara Municipal do Porto e, mais tarde, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, lembra João Luiz, 79 anos, fundador e diretor artístico da companhia Pé de Vento. O objetivo era dotar as três companhias mais antigas da Invicta — o Teatro Experimental do Porto (TEP), a Seiva Trupe e a Pé de Vento — de um espaço de trabalho permanente. “A partir daí, dá-se toda a renovação das salas de espetáculo do Porto”, recorda ao Observador.
Na época, a companhia formada em 1978 propôs à junta de freguesia de Aldoar “usar aquele edifício que estava devoluto, mas que era propriedade da junta”. Uma das primeiras peças ali mostradas foi O Jovem Rei, de Oscar Wilde, no que foi o princípio de 22 anos de atividade ininterrupta e com um foco claro: o público juvenil. “Quando o Teatro da Vilarinha aparece no conjunto das outras salas da cidade, aparece como um projeto para o público jovem, algo que não havia na cidade e que depois deixou de haver. Não há uma sala onde seja apresentado teatro ou outro tipo de espetáculos para a infância e juventude. Desde 2018 que deixou de haver. Isso é uma lacuna para uma cidade como o Porto”, nota João Luiz.
Durante duas décadas, passaram por ali 185 mil espectadores, num total de 2.310 representações, de 78 criações, de acordo com o site da companhia. “Recebíamos espectadores de Braga e até de mais longe, fazendo parte de um circuito que fomos desenvolvendo com todo o norte do país, com grupos de alunos que vinham à cidade. O Teatro da Vilarinha era uma âncora a nível regional e geográfico”, explica o encenador.
A saída do Teatro da Vilarinha, em 2018, foi feita contra a vontade da companhia, sublinha. A União de Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde (a agregação aconteceu em 2013), presidida por Nuno Ortigão, do grupo de independentes liderados por Rui Moreira, anunciava intenções de gerir o equipamento, pondo fim a uma parceria de mais de duas décadas e a um contrato de cedência de instalações que foi sendo renovado.
“A programação que nós fazemos é a que sempre fizemos, para a população juvenil. Decidiram que queriam fazer uma coisa para a população em geral, uma coisa que é tão vaga quanto isso. E podiam. No quadro jurídico em que estávamos, com 90 dias de antecedência, podiam mandar uma carta registada a dizer que não renovavam o acordo. Foi isso que fizeram, mandaram uma carta registada a dizer que partir da data x tínhamos de entregar a chave”, conta. “Fomos apanhados desprevenidos. Tivemos de entregar a chave e esvaziar as instalações do nosso património.”
Até hoje, João Luiz não encontra um motivo para terem abandonado o espaço onde tinha sido investido “cerca de meio milhão de euros”. “Não deixámos o Teatro da Vilarinha esvaziado. Deixámos a plateia, deixámos o equipamento da teia, tudo ficou a funcionar. Os camarins, tudo, as cortinas, tudo ficou lá. A cena preta, a rotunda preta do palco, ficou lá tudo. Até uma escada grande, que não tínhamos onde guardar, ficou lá. Essa infraestrutura ficou a funcionar. Hoje já não deve servir para nada. Entrou em ruína muito provavelmente”, aponta.
Nas reuniões com o anterior presidente da junta, Nuno Ortigão, que morreu em 2021, João Luiz reiterou sempre o desejo de voltar. “Dissemos que se precisassem de alguma coisa cá estávamos, mas nunca mais decidiram fazer nada. Não têm projeto nenhum”, atira. Com o atual presidente da junta, Tiago Mayan, nunca houve qualquer contacto, assegura. Com o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, é sucinto: “Disse que a sala era da junta e a junta era autónoma da Câmara. Não se quis meter.”
Junta garante que espaço abre em 2024 e acusa companhia de esvaziar o teatro
“Contamos que durante este ano de 2024 possamos finalmente abrir o equipamento ao público, já como teatro”, diz Tiago Mayan, presidente da união de freguesias desde 2021. Foi há quase um ano que Mayan disse ao jornal Público que, tal como o anterior executivo, pretendia reabrir o Teatro Vilarinha como sala de espetáculos. Em falta estavam essas obras “de adaptação” para “cumprir os critérios da Direção-Geral das Artes”, dizia. “Tem a ver com as casas de banho, ou o acesso de pessoas com mobilidade reduzida”, explica agora ao Observador. Quase nove meses depois, o concurso para a empreitada ainda não foi lançado. “Iremos lançar um procedimento [concursal]”, confirma, sem se comprometer com datas além de “este ano seguramente”.
Mesmo sem essas obras essenciais à reabertura, a 19 de dezembro de 2023, a União das Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde abriu um concurso público para a “aquisição de equipamento de vídeo e imagem e de projeção digital de cinema para o Teatro da Vilarinha”, como se constata no Portal Base. “Como podemos assegurar uma linha de financiamento do PRR, podemos avançar logo de imediato para ela. Havendo esta linha de financiamento, o adequado foi avançar”, justifica Mayan sobre a opção de avançar para a compra de equipamento audiovisual para um edifício que não pode abrir ao público.
A empreitada “não é uma obra de grande envergadura”, mas ainda assim defende que “seria impossível tê-la feito antes”. “Só há uma via de a obter: ou é com o orçamento próprio da união de freguesias, ou é com um parceiro. A via orçamental direta da união de freguesias tem limites.”
Tiago Mayan mantém o otimismo na abertura ainda este ano. “Estruturalmente o teatro está perfeitamente capacitado, dentro do que é o seu esqueleto. O telhado, infraestruturas de saneamento, tudo isso”. E acrescenta: “há aspetos corretivos que não são de grande envergadura e há o aspeto equipamento, que está deficitário nomeadamente pelo ato de retirada de um conjunto múltiplo de equipamentos pelo último locatário, ou cessionário, que era a companhia de teatro Pé de Vento”.
O presidente da junta acusa a Pé de Vento de esvaziar o teatro. “Não fui eu que tomei a decisão, mas essa saída [da Pé de Vento, em 2018] decorre do fim de uma concessão. Essa saída implicou um ato que não vou qualificar, era provavelmente juridicamente possível, mas implicou o total desequipamento do teatro. Não saiu só uma companhia de teatro, saiu uma companhia de teatro que levou todo um conjunto de equipamentos e infraestrutura com eles. A partir desse dia deixámos de poder ter um teatro aberto”, acusa.
As declarações são contrariadas pelo diretor da companhia, João Luiz, que garante que deixou um teatro “absolutamente funcional”. Mayan riposta: “Deixou-o sem régie, sem infraestrutura de som, deixou-o totalmente desequipado em muitos aspetos. Há uma teia, mas uma teia é uma pequena parcela do que é um teatro. Deixou-o sem holofotes. Há uma teia, não há é tudo o resto”.
Sem previsão de programação ou projeto definido, o que será do Teatro Vilarinha ainda é uma folha em branco. “Estamos abertos a várias soluções. Desde que seja uma solução de um equipamento cultural, mas não temos uma visão fechada sobre o que isso possa significar. Depende também dos parceiros que podemos encontrar.”
A programação pode mesmo passar pela Câmara do Porto. Mayan diz que está em articulação com o município para “fazer alguns investimentos extra”. “Andamos a negociar com o município desde o ano passado uma parceria, não só para estas obras, mas também para termos uma parceria de exploração. Não cremos que temos a vocação para ser programadores. Queremos encontrar parceiros que permitam exploração do teatro, na perspetiva de se manter um equipamento cultural.”
Por enquanto, “estamos abertos a várias soluções”, diz. “Desde que seja uma solução de um equipamento cultural, mas não temos uma visão fechada sobre o que isso possa significar, depende também dos parceiros que podemos encontrar.” O presidente da junta assegura que oferta não falta. “Temos recebido ao longo do tempo várias propostas de caráter diferente.”
Sem instalações próprias e apoio da DGArtes, companhia histórica “está em risco”
A saída do Teatro Vilarinha e, poucos meses depois, a pandemia de Covid-19, acabaria por comprometer o futuro da Pé de Vento, explica o seu fundador. Há seis anos que a companhia está sem instalações próprias. Ocupam um escritório em Matosinhos, que usam como sede, e têm feito parcerias com instituições e associações culturais de Matosinhos para poder ensaiar e apresentar. “Se realmente a Pé de Vento não encontrar o seu espaço, está em risco de poder continuar a atividade”, lamenta. “A Pé de Vento está em risco. Em todo o desenvolvimento da sua atividade sempre teve sala de espetáculos, desde 1980, desde que criou a sala das Virtudes, no antigo Clube Inglês.”
Pela primeira vez sem casa, no último ano a companhia perdeu também o apoio da Direção Geral das Artes. “Não tivemos apoio da DGartes ao fim de quarenta anos. Estamos limitados na nossa capacidade de estreias no investimento. Pela primeira vez concorremos sem a sala. Isso deu uma diminuição de pontuação e ficámos à porta.” A última apresentação foi durante a Feira do Livro do Porto, em setembro.