O contrário não seria título. Katy Hessel escreveu A História da Arte sem Homens depois de séculos de historiografia sem mulheres. Não é preciso ir muito longe: a clássica História da Arte de E.H. Gombrich, na qual a autora se baseou para estruturar a sua obra – do Renascimento aos nossos dias –, foi publicada em 1950 sem incluir uma única mulher artista.

“Pensemos num movimento como o expressionismo abstrato. Talvez conheçamos artistas como Jackson Pollock e Willem de Kooning, mas procurando para além deles, percebemos: existiam todas estas mulheres a explorar este tipo de pintura também”, diz a historiadora de arte de 31 anos, em entrevista ao Observador. Em Lisboa para apresentar o livro na Fundação Calouste Gulbenkian (esta terça-feira, dia 1, às 18h30, no CAM) – que apoiou a tradução para português, editada pela Objetiva – Katy Hessel tem-se dedicado, desde 2015, a propor uma nova História da Arte com as mulheres no centro. Para além do livro, elogiado pela imprensa internacional e por personalidades como Simon Sebag Montefiore e Ali Smith, a historiadora britânica está por trás da conta de Instagram The Great Women Artist (nome também de um podcast e de uma residência artística anual), realizou filmes para a Tate e para a Royal Academy of Arts, e tem escrito sobre o tema das mulheres artistas em publicações como The Guardian e Harper’s Bazaar. Com uma agenda apertada durante os seus dias em Lisboa, só espera que sobre algum tempo para ir visitar o museu de Paula Rego.

"A História da Arte sem Homens", de Katy Hessel, na edição portuguesa da Objetiva

Quando começou a investigar A História da Arte Sem Homens, estava à espera de conseguir fazer um livro tão grande?
Quando comecei, confesso que pensava que o livro ia ser muito mais pequeno. Lembro-me de falar com o meu editor e de apontarmos para um total de 30 mil palavras, que é provavelmente um quarto do tamanho que o livro tem. Porque à medida que escrevia, fui-me apercebendo do tanto que precisava de ser incluído – e mesmo agora, muitas artistas mulheres não estão no livro. Esta é apenas uma parte da História da Arte com as mulheres no centro. Mas sim, é emocionante ver tudo junto.

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Como é que se reescreve a História? Onde é que se procura? Quais são as fontes?
Primeiro, baseei-me num livro chamado A História da Arte, de E.H. Gombrich, com o qual cresci – a minha História da Arte sem Homens é uma resposta a esse clássico. Por isso, já tinha uma ideia para a estrutura, que é também ela clássica: 500 anos dentro de um livro, do Renascimento aos nossos dias. Sabia a estrutura que queria seguir, e à medida que lia e procurava, encontrava cada vez mais artistas fascinantes para incluir.

Mas como é que as encontrava, se o livro parte da premissa de que as mulheres foram tendencialmente deixadas na sombra?
Sempre que ia a um museu, procurava mulheres artistas nas coleções, nas próprias legendas das obras. Através da minha página de Instagram [@thegreatwomenartists], que comecei em 2015, sempre me obriguei a procurar artistas novas diariamente. Por outro lado, pensemos num movimento como o expressionismo abstrato. Talvez conheçamos artistas como Jackson Pollock e Willem de Kooning, mas procurando para além deles, percebemos: ‘Existiam todas estas mulheres a explorar este tipo de pintura também’. É preciso vasculhar em muitos livros e coleções de museus, mas não é difícil, se procurarmos bem.

Houve alguma descoberta particularmente surpreendente? É fascinante a história da baronesa alemã Von Freytag-Loringhoven, por exemplo, e sobretudo o facto de poder ser ela a verdadeira criadora do ready-made, e não Duchamp.
Há muitas histórias, e não só na Europa, mas à volta do mundo. Uma artista pela qual fiquei fascinada, e que descobri já quase no final do livro, foi a pintora japonesa Katsushika Ōi, que viveu durante o período Edo [1603-1868]. Só descobri o trabalho dela porque era filha do artista japonês Hokusai, e numa exposição que houve no British Museum [Beyond the Great Wave: works by Hokusai from the British Museum], descobri uma pequena placa que falava dela. Foi uma pintora extraordinária, mestre na criação de contrastes de luz e sombra, e que teria até uma receita secreta para os pigmentos que usava, brilhantes e saturados, e não estava em nenhum dos livros de História da Arte com os quais cresci! No livro dedico-lhe quatro páginas e é fascinante ver também os temas que Katsushika Ōi escolheu representar. Por exemplo, nesta pintura [folheia o livro até à página 63 e aponta para uma reprodução do quadro Jovem a Compor um Poema sob as Flores de Cerejeira, de Noite, c1850], vemos uma jovem mulher escondida no jardim, iluminada muito subtilmente pela chama de uma vela, que ilumina também uma bonita cerejeira em flor. Tudo o resto está na penumbra, e ela está a escrever qualquer coisa, e de imediato faz-nos pensar como seria a vida das mulheres naquela altura. Tinham de escrever em segredo, e os seus trabalhos nunca eram expostos, e as suas palavras nunca eram ouvidas. Foi uma grande descoberta.

“Uma artista pela qual fiquei fascinada, e que descobri já quase no final do livro, foi a pintora japonesa Katsushika Ōi, que viveu durante o período Edo [1603-1868]”

Como escreve no livro, “foi preciso chegar ao final do século XIX para que fosse permitido às mulheres fazer desenho de modelos nus”. Foi também só no final desse século que puderam aceder a uma educação artística pública.
As mulheres estavam em desvantagem logo à partida porque nem sequer lhes era permitido aprender as competências necessárias para se tornarem artistas, sobretudo nas grandes academias como a Royal Academy em Paris e em Londres. Por outro lado, colocavam sempre a pintura e a escultura como as grandes artes de topo, e o bordado ou a cerâmica no extremo oposto, como as menos importantes.

No livro inclui o têxtil e a cerâmica como formas de arte. Também é uma forma de questionar o cânone.
Sim, considero importante erradicar essas hierarquias, porque a arte não precisa de significar apenas uma coisa, há muitas formas de lá chegar. A pintura e a escultura são apenas uma vertente – importante, claro –, mas não a única. Trata-se de abrir o conceito e perceber o que pode constituir arte, e também a que é que as pessoas tinham acesso naquela época. Idealmente, este livro quebra essas barreiras e inclui não só mulheres, mas artistas de diferentes tipos.

As mulheres já estavam em desvantagem no ensino, já estavam em desvantagem porque muitas vezes se dedicavam a formatos menosprezados como o bordado… Que outras razões explicam o facto de a História da Arte sempre ter favorecido os homens?
Acredito que a principal razão é a forma como a história tem sido escrita. Quem escreve as historiografias de arte sempre deu prioridade aos homens. Quando A História da Arte de E.H. Gombrich foi publicada pela primeira vez, em 1950, não incluía nenhuma mulher artista. Zero. De certa forma, apagaram a voz e o nome das mulheres da História da Arte. Por outro lado, os curadores de exposições ou diretores de museus eram muitas vezes homens. Os gatekeepers escreveram uma certa versão da história que se tornou padrão, e não “a” História da Arte. Esta é a minha abordagem, a minha visão.

“Benjamin”, obra da artista americana Alice Neel (1900-1984), uma das favoritas Katy Hessel

Indo um pouco mais atrás, antes do livro. Porque decidiu estudar História de Arte?
Porque adorava. Cresci em Londres e tive a sorte de ter museus gratuitos perto de casa. Visitar museus era um dos meus programas de sábado à tarde e permitiu-me perceber a História do mundo. Podemos percebê-la através de discursos ou da literatura, por exemplo, mas a arte tem esta coisa fantástica de ser muito imediata e de mostrar onde alguém estava num determinado tempo e espaço.

E quando é que se apercebeu do tema da desigualdade?
Quando tinha 21 anos. Tinha acabado o curso, entrei numa feira de arte e percebi que, entre milhares de obras, nenhuma era de uma mulher. Fiquei perplexa e ao mesmo tempo chocada comigo própria porque não me conseguia lembrar, de cabeça, do nome de 20 mulheres artistas. Percebi que, no fundo, sempre tinha visto a História da Arte de uma perspetiva masculina, e decidi dedicar a minha vida a divulgar o outro lado. Dez anos depois, aqui estamos. E é muito entusiasmante porque há tanto para descobrir. De certa forma, quando olhamos para trás, para as mulheres na História, é como revermo-nos um pouco a nós próprias. Se a História que nos ensinam é sempre sobre reis e rainhas e batalhas e guerras, como é que nos incluímos nela? Estas mulheres, de certa forma, dão-me uma voz.

Na defesa da visibilidade das mulheres artistas, há um movimento incontornável que destaca no livro, das Guerrilla Girls. Um dos cartazes que o movimento criou no final dos anos 80 – do Women have to be naked to get into the Met Museum? [será que as mulheres têm de estar nuas para entrar no Met?] – chama a atenção para outro fenómeno: o contraste entre o número de mulheres artistas e a representação das mulheres na arte.
As Guerrilla Girls conseguem espelhar o que se está a passar, e é mesmo isso: será que as mulheres têm de estar nuas para entrar no Met? Porque há pouquíssimas mulheres autoras na coleção, e se é dito às mulheres que são apenas o objeto ou o tema, e não as autoras, como é que isso se vai traduzir nas restantes dimensões das suas vidas? Sinto-me muito inspirada pelas Guerrilla Girls e o que quis fazer com este livro foi mostrar que as mulheres tinham um cérebro e uma cabeça e eram capazes de criar também. Porque é que as mulheres têm sido sempre tão escondidas quando se trata de criar arte, por oposição aos homens, a quem isso sempre foi permitido? De certa forma, isto remete-nos para as histórias bíblicas da criação, quando pensamos em Deus, que é supostamente um homem, a criar Adão, e depois Eva a ser criada a partir da carne e da costela de Adão. Eva foi o primeiro objeto de Deus, e onde é que isso coloca as mulheres? Estarão neste planeta apenas para procriar? Esse é um aspeto, claro, mas também podem criar à sua maneira, de várias maneiras diferentes. Temos de fazer livros e museus que garantam que essas mulheres são incluídas, lançar o debate.

Um dos cartazes das Guerrilla Girls

Nas coleções dos museus, nos valores atingidos nos leilões… As desigualdades mantêm-se e são gritantes, mas mesmo assim escreve que o progresso está a acontecer. De que forma?
Acredito que sim, tenho esperança. Pela primeira vez na História, vemos mulheres à frente de instituições como a Tate e o Louvre, por exemplo. E existem artistas, historiadores, académicos e curadores ativamente empenhados. Sou apenas uma das muitas pessoas que estão a tentar mudar o panorama para melhor, porque não se trata de apagar os homens, apenas acrescentar as mulheres à história, que passa a ser uma História da Arte muito mais rica. De outra forma, se não as incluir, estará a perder uma arte realmente fantástica.

Porque escolheu não ter nenhuma obra de arte na capa do livro?
Foi uma decisão da editora. Por acaso, na versão francesa temos, mas a capa é algo que não está nas minhas mãos.

Tem uma artista favorita?
Sim: a pintora norte-americana Alice Neel, que está no capítulo dedicado aos anos 70. Adoro-a. Mostrou-me que todos podem fazer parte da História da Arte: diferentes corpos, diferentes idades e diferentes expressões. Trabalhando com meios como a pintura a óleo e o retrato – que no início do livro vemos como eram meios usados apenas pelos patronos mais ricos –, escolheu pintar todo o tipo de pessoas, de todo o tipo de proveniências.

Vem apresentar o livro à Gulbenkian, que acaba de inaugurar o seu novo centro de arte moderna. Já visitou a coleção? O que achou?
Ainda não visitei, acabei de chegar ontem à noite. Quero muito ver, assim como a Casa das Histórias Paula Rego. Acho-a fascinante.