Do nascer ao pôr do sol, “não passa nada na goela, nem água”. É assim que Khalid Jamal, um dos líderes da Comunidade Islâmica de Lisboa, resume o jejum do mês do Ramadão, que começou na última quinta-feira, 17 de maio, para os muçulmanos de todo o mundo. Só em Portugal, serão perto de 50 mil os fiéis a observar as cerca de 17 horas diárias de jejum, durante um mês. Porque “é quando ultrapassamos a barreira da fome e a fome já lá está instalada, deixando de fazer sentido, que existe o foco e a clarividência na religiosidade.”
Khalid Jamal — que além de ser um dos diretores da Comunidade Islâmica de Lisboa é também diretor do Instituto Luso-Árabe para a Cooperação e fez parte da equipa da missão permanente de Portugal na ONU que ajudou António Guterres a chegar a secretário-geral — recebeu o Observador na Mesquita Central de Lisboa para falar sobre a importância do Ramadão e das práticas religiosas islâmicas para uma comunidade de muçulmanos que é um exemplo de perfeita integração no mundo ocidental.
Jamal, que todas as semanas participa também no programa de rádio “E Deus Criou o Mundo“, na Antena 1, onde debate os principais assuntos da atualidade à luz da religião juntamente com um católico (Pedro Gil) e um judeu (Isaac Assor), comenta ainda as grandes controvérsias em torno do Islão, como a discriminação de mulheres e as interpretações literais do Alcorão que conduzem a atos de violência e terrorismo, e deixa um aviso: um dos grandes desafios que o mundo islâmico tem pela frente nos próximos anos é precisamente encontrar uma liderança única, forte e de cariz pacifista que possa falar por todos os muçulmanos do mundo. “Faz falta liderança” e esse é um problema “que o Islão terá de resolver nos próximos tempos”, garante.
Estamos no Ramadão e, provavelmente, em Portugal vamos ter menos noção do que isso significa do que se estivéssemos num país de maioria islâmica. O que é o Ramadão?
O Ramadão é o nono mês do calendário islâmico, e é um mês especial para os muçulmanos. Diria que, por comparação aos católicos, é o Natal dos muçulmanos, porque é um mês em que as pessoas estão especialmente contagiadas, têm o espírito do Ramadão. O espírito do Ramadão, desde logo, caracteriza-se por ser de oração e reflexão, por várias razões. Desde logo porque foi o mês em que se deu a revelação do Alcorão. A palavra divina de Deus foi revelada a Muhammad por intermédio do arcanjo Gabriel durante o mês do Ramadão. Por outro lado, o profeta Muhammad olhava para o mês do Ramadão com um carinho especial. Ele tinha mesmo uma prece em que rezava a Deus para que lhe desse a possibilidade de, passado o mês de Sha’aban — o mês anterior em que ele já praticava o jejum –, ter saúde, vida e forças para conseguir chegar ao mês do Ramadão. O mês do Ramadão é para nós um mês em que as portas do Paraíso se abrem e o Diabo é acorrentado. Significa isto que as bênçãos e a misericórdia de Deus são infinitas durante o mês do Ramadão. Portanto, quase não há pecado para nós no mês do Ramadão, só para percebermos a dimensão espiritual e a beleza que o mês do Ramadão assume.
E é por isso que a prática, durante esse mês, passa pelo jejum?
Sim, é por isso que para nós o mês do Ramadão é um mês que se caracteriza pelo jejum. É um mês de graça e um mês de bênçãos, portanto, faz sentido para nós fazer esse jejum. O que é o jejum do mês do Ramadão? É um jejum em que os muçulmanos se abstêm de comer, de fumar, de beber e de praticar relações sexuais durante o dia. Enquanto é dia, nós não estamos autorizados a fazer qualquer uma destas coisas. Mas o jejum do mês do Ramadão, que é o terceiro pilar do Islão, tem quatro fins. O primeiro é sentir a omnipresença de Deus: eu posso, aparentemente, para a sociedade e para o mundo estar a jejuar, mas depois às escondidas comer. Recordo-me de quando era pequenino, porque os jovens começam a jejuar muito cedo para impressionar os pais…
As crianças não estão isentas?
As crianças estão isentas. O jejum do mês do Ramadão tem algumas particularidades. É obrigatório durante o dia para todos aqueles que possam fazê-lo. Grávidas, pessoas de idade que não o possam fazer, pessoas doentes e crianças, todos estes estão automaticamente isentos desta obrigatoriedade. Mas, dizia eu, quando era mais novo, iniciava o meu dia em jejum — porque nós temos uma refeição antes do início do dia, para nos abastecermos –, mas depois ia comer bolos para o bar do colégio às escondidas. No fundo, daí a lição de sentir a omnipresença de Deus: Deus está a ver. O ser humano pode não ver, eu posso comer um bolo às escondidas ou até mesmo num espaço fechado, mas Deus está a observar os meus atos.
E o jejum no mês do Ramadão lembra os muçulmanos disso.
Lembra-nos disso. E esse é o primeiro fim do jejum. O segundo é ensinar o autodomínio. A sociedade hoje em dia comete muitos excessos para satisfazer a totalidade dos nossos desejos. A ideia é esta: o meu desejo, a minha vontade, está acima de qualquer outra coisa. A nossa liberdade, costuma dizer-se, termina onde começa a do próximo. Portanto, por mais que eu tenha desejo disto ou daquilo, eu não posso fazer tudo aquilo que quero. O jejum ensina-nos o autodomínio, ensina-nos a irmos contra aquilo que é o nosso instinto natural — o instinto carnal, o instinto de comer. Mesmo no Cristianismo existe a questão da gula, que é um pecado. Por outro lado, o terceiro fim do jejum é passar voluntariamente por aquilo que outros passam por força da necessidade. Ainda há crianças a morrer à fome em África e é o cúmulo, nos dias de hoje. É incrível como no mundo civilizado e dito moderno ainda haja pessoas a morrer com o flagelo e com o sacrifício da fome. Portanto, o jejum ensina-nos a passar esse sacrifício voluntariamente. Depois, por último, temos o fim da purificação espiritual. O jejum acaba por ser um ritual simbólico de renúncia aos bens materiais, às necessidades mundanas, com o foco na espiritualidade. Aí é que ele tem algo de comum com o Cristianismo, porque como sabemos também o Cristianismo defende que a renúncia é um caminho para a libertação. Nós comemos todos os dias, nós bebemos todos os dias, nós satisfazemos as nossas necessidades fisiológicas e mundanas todos os dias. E as necessidades espirituais? O jejum é isto, o jejum é um ritual acima de tudo espiritual.
É fácil fazer o jejum do Ramadão — e outras práticas islâmicas — num país em que a esmagadora maioria das pessoas não é muçulmana e não o está a fazer?
Confesso que o jejum em si não é um mandamento fácil de cumprir, porque o nosso jejum é ininterrupto e são muitas horas.
Ainda para mais quando toda a gente à sua volta está a continuar a sua vida normal, a comer como normalmente.
É mais difícil ainda. Vivenciar a experiência de ser muçulmano e o Islão num país europeu é mais difícil do que num país em que toda a gente esteja a jejuar. Ainda para mais nos países árabes, em que há quase uma redução do horário de trabalho, da jornada de trabalho. Ou até vão mais longe: mesmo que não haja redução do número de horas de trabalho, a produção cai. No início, é um bocado custoso. Depois, acabamos por nos habituar. As primeiras horas do dia são fantásticas, ainda estamos cheios de energia. Chega ali a hora do almoço, a fome aperta, e especialmente depois do almoço acabar por ser um bocadinho difícil. Aquelas horas, ali das duas, três da tarde, até às nove horas… Neste momento, em Portugal, vão ser cerca de 17 horas, das quatro da manhã às nove da noite. O nosso jejum caracteriza-se por nós não podermos comer nem beber absolutamente nada. Não passa nada na goela, nem água. Até mesmo — e veja-se o ridículo da situação, eu até costumo dar este exemplo — não posso produzir excesso de saliva para saciar a minha sede. Dir-me-ão: é muito duro. Sim, é intenso. Mas acho que essa dureza acaba por ser simultaneamente aquilo que é sedutor. Deus não criou o jejum para nos facilitar a vida, criou o jejum para que nós percebêssemos qual é que é o objetivo deste sacrifício.
Nas últimas horas do dia, calculo que a fome já seja tanta que já não se pensa noutra coisa que não no momento em que o sol se vai pôr e vamos voltar a comer, não? Isso não é contraditório com o objetivo do jejum?
Claro que é! Nos últimos minutos, eu já só estou a pensar no hambúrguer que vou comer, no que vou comer para quebrar o jejum (risos).
E nesse momento não está a pensar em nada religioso…
Nem em Deus, nem no Além, nem em nada. É verdade. Mas porque isto é uma fraqueza minha. Aquilo que Deus propõe aos seres humanos não é só o jejum. O jejum tem de ser entendido como um pacote. E que pacote é este: é o jejum, é a oração, é a recordação de Deus através do terço, e é a prática das cinco orações. Eu posso dizer que já pratiquei o jejum obrigatório sem orações e com orações, e posso dizer que quando se observa todas estas regras aquilo cria uma harmonia. É um conjunto feliz. No início é custoso, mas depois quando nos libertamos um bocado da fome… É como a questão do sono. Quando estamos com sono, temos muita vontade de ir dormir. Mas chega uma determinada altura em que nós ultrapassamos a barreira do cansaço e então sentimo-nos quase como se fôssemos imortais. É nessa altura, quando ultrapassamos a barreira da fome e a fome já lá está instalada, deixando de fazer sentido, que existe o foco e a clarividência na religiosidade. Então nessa altura nós abstemo-nos de pensar só na satisfação das necessidades mundanas, nomeadamente alimentares, e conseguimos estar focados na nossa religião, na nossa fé, e na oração.
Há pouco, antes da entrevista, dizia-me que ao contrário do que fazemos com os cristãos quando falamos em praticantes e em não praticantes, entre os muçulmanos não é habitual falar nesses termos. Entre os 50 mil portugueses que compõem a comunidade islâmica, todos, ou quase todos ,farão o jejum?
Sim, não tenho dúvidas disso, e vou dizer-lhe porquê. Primeiro, o Islão é uma religião mais recente, com 1.439 anos de história. Se calhar, ainda não tivemos tempo para existirem muçulmanos não praticantes. A somar a esta ideia, a evidência de que o Islão é uma religião que, per si, dá menos espaço para se ser não praticante. Porque o Islão, embora seja uma religião também de princípios, também de valores, também abstrata, regula de forma mais concreta e particular, define um sem número de aspetos sobre a nossa rotina quotidiana. Veja-se o exemplo das cinco orações. Qual é o objetivo? Muitos pensam que as cinco orações são manifestamente excessivas, especialmente para uma vivência europeia, para uma rotina diabólica que temos…
Tem de interromper o trabalho todos os dias.
Exatamente. Por isso é que as orações são curtas. Temos cinco orações diárias, em momentos previamente definidos. A primeira, antes do nascer do sol, que se faz no recato das nossas casas. Outra, depois do zénite, cerca das 14h, portanto na hora de almoço. A que custa mais é a oração da tarde, porque essa, sim, parte o dia. Temos de parar para fazer a oração. Outra já junto ao pôr do sol, em que as pessoas já estão a chegar a casa ou a sair do trabalho. E depois outra à noite. Se repararmos, o objetivo da oração é varrer o dia todo e nós estarmos em constante lembrança e contacto com o Criador. A somar a isso, as orações só levam cinco minutos. São 25 minutos do meu dia que eu dedico a Deus. Num dia que tem 24 horas dedicar 25 minutos a Deus acho que é mais do que fácil.
Como é ser muçulmano num país como Portugal nos dias de hoje?
Há pouco estava a dizer que é mais difícil, mas não quero que os muçulmanos se sintam desencorajados (risos). Eu, individualmente, nunca tive dificuldade nenhuma em ser muçulmano aqui no Ocidente. Por uma razão: eu sinto-me como um português que professa a religião islâmica. Estou vestido desta forma, não estou com um traje ou uma indumentária que crie logo uma ligação ou uma relação com qualquer universo islâmico ou árabe. Isso, parecendo que não, é uma diferença particularmente significativa.
Isso é porque quando olhamos para as pessoas do Médio Oriente, vemos muçulmanos em vez de vermos sauditas, iraquianos, iranianos…?
Acho que há uma tendência para a Ummah — a comunidade dos seguidores do profeta Muhammad — criar um sentimento de união de todos os muçulmanos. Se isso é absolutamente extraordinário, ao mesmo tempo é preciso criar um sentimento de pertença e um vínculo associado ao país onde nós professamos a nossa religião. Um português, como eu, que professa a religião islâmica, tem uma vivência religiosa diferente de um saudita, de um indonésio ou de um chinês. Nós vivemos a religião de forma diferente, embora a religião seja a mesma. Portanto, há um aspeto cultural que, embora não se confunda com o aspeto religioso, o influencia e é absolutamente notório na forma como nós praticamos a nossa religião.
A própria comunidade islâmica em Portugal implementou-se precisamente por causa desse diálogo.
A comunidade surge em Portugal como um grupo de jovens que, já com muitas raízes à pátria — no fundo, ao Império Português, porque derivaram de Moçambique para Lisboa — decidem instalar aqui a sua comunidade religiosa. Foi em 1968, fruto da aspiração de um grupo de jovens que queria, legitimamente, um espaço para praticar as suas orações. É curioso que antes de existir mesquita em Lisboa eles praticavam as orações na embaixada do Egipto, numa sala que foi gentilmente cedida pelo então embaixador. Se a preocupação principal era o cumprimento de uma obrigação religiosa, foi logo definido — e muito bem, quanto a mim — que o o objetivo da criação da Comunidade Islâmica de Lisboa não era somente a parte religiosa. Ela é mais do que isso, é uma comunidade recreativa, uma comunidade cultural, uma comunidade que tem um fim social.
E uma comunidade cuja dimensão religiosa não é, de todo, aquela que se vive no país em que se instala. Esse diálogo é fácil?
Esse diálogo nem sempre é fácil. Mas eu costumo dizer: nós comemos bacalhau em casa. Nós não celebramos o Natal na convicção religiosa de que Jesus nasceu naquela data, mas sentimo-nos imbuídos pelo espírito natalício e necessariamente contagiados por isso. A minha família janta reunida na noite de 24 de dezembro. Se me perguntar se vamos à Missa do Galo, não vamos, evidentemente (risos). Não fazemos o presépio. Mas estamos contagiados pelo espírito natalício e acho que não há mal nenhum nesse aspeto. Lá por nós celebrarmos o Natal na sua feição social, não quer dizer que me vá converter ao Cristianismo. E nem sempre os muçulmanos percebem isso.
O Natal faz parte da realidade cultural destes países.
Exatamente, e daí que eu diga que ser português e comer bacalhau em casa não significa que eu seja menos muçulmano.
Portanto, para si é mais importante ser um português que é muçulmano — tal como outros são católicos e outros são judeus — do que ser um muçulmano que, por acaso, é português.
Acho que isso é determinante. No programa de rádio, onde discuto todas as semanas com um católico e um judeu, há dias dava este exemplo: felizmente, Portugal há já muitos anos que não entra em guerras, mas se eu tivesse de prestar serviço militar seria sob a égide da bandeira portuguesa. Não seria nem sob o exército islâmico, que é inexistente, felizmente, nem sobre qualquer país de maioria islâmica.
Nesse programa costuma chamar muito a atenção para a diferença entre o que é religioso e o que é cultural no Islão, e explica que muitas das polémicas em torno do Islão têm a ver com uma dificuldade em distinguir essas duas realidades. O que é cultural e o que é religioso? Por exemplo, a burqa, é cultural ou religiosa?
O Islão tem um conjunto de regras, mandamentos e princípios que são transversais, e que podem ser praticados por muçulmanos que vivem no espaço europeu — ou que se identifiquem como europeus que professam a religião islâmica — ou pelos árabes, indianos, japoneses, que sejam muçulmanos. Agora, é inevitável dizer que o Islão está profundamente marcado por uma cultura islâmica.
Mais do que, por exemplo, o Cristianismo marcado por uma cultura cristã?
Acho que sim, porque há uma série de aspetos simbólicos, como a questão dos trajes ou da forma de estar e de viver. O chamado modus vivendi dos países de maioria islâmica que, na sua esmagadora maioria, são de origem árabe, acaba por marcar profundamente o fenómeno do que é ser muçulmano. Agora, repare que o Islão não é árabe. O Islão é uma religião além-fronteiras e mundial. Normalmente, as pessoas têm por regra associar o Islão ao fenómeno do arabismo, que são coisas distintas. Que o Islão está, de facto, marcado por essa vivência cultural, é indiscutível. Mas é preciso separar as duas águas para que as pessoas percebam o que é verdadeiramente religioso e o que é inspirado por uma tendência cultural que, por sua vez, acaba por marcar a vivência religiosa.
Então, o que é cultural e o que é religioso?
Por exemplo, naquilo de que falava no caso da burqa, aquilo que o Islão define é que a mulher deve andar de forma simples, porque a mulher necessariamente distrai o homem como o homem distrai a mulher. Portanto, o objetivo é a não ostentação e não apelar publicamente ao pecado. Se uma mulher andar de forma simples na rua, acaba por chamar e atrair menos atenções indesejáveis do que se andar mais exposta. Tudo o resto são derivações disto.
Tudo o resto é cultural?
Tudo o resto é cultural e depois são extrapolações que muitos fazem.
Mas, na entrada da mesquita, há um sinal que diz que é obrigatório o uso do véu durante as orações.
Pois, é verdade. Cada muçulmano é livre de fazer aquilo que bem entende. Aquilo que nós, enquanto dirigentes da comunidade, sacerdotes e ministros de culto, devemos fazer é orientar as pessoas para a prática do bem. Portanto, quando se diz obrigatório, as pessoas são livres de fazer aquilo que quiserem. Simplesmente, nós pedimos que sejam respeitosas para com o local de culto e para com a fé, porque isso manifesta uma disponibilidade para a aceitação da mensagem, daquilo que é a nossa religiosidade. O contacto com o Criador obriga, ou deve obrigar, a determinados pressupostos. Veja-se por exemplo: se o senhor for ter com o Presidente da República, não vai de calções nem de fato de banho. Obriga a uma indumentária própria. É nesse sentido que também se convida as pessoas a que também vistam a sua melhor roupa, se mostrem apresentáveis, limpas, puras, quando fazem as suas orações.
Além das orientações para o vestuário, também há a questão de a sala de oração para as mulheres ser separada dos homens, por exemplo. Podemos dizer que o Islão discrimina as mulheres?
Primeiro, as orientações aqui na mesquita de Lisboa existem tanto para homens como para senhoras, não há aqui uma discriminação. Se me disser que o Islão discrimina as mulheres, estou absolutamente convencido de que não. Se me disser que os muçulmanos, ou a maioria dos muçulmanos, discriminam as mulheres, não tenho dúvidas que sim. E isso existe com base num substrato mais cultural, mais tribal, mais histórico do que religioso. Repare que as mulheres votam em Portugal há pouco mais de 50 anos. Isto, parecendo que não, é determinante. Às vezes, nós, ocidentais — e eu incluo-me no grupo — temos a veleidade ou a pretensão de achar que o mundo oriental é um mundo atrasado civilizacionalmente. Que é um mundo diferente, difícil de compreender, quase ininteligível para o ocidental. Rejeito essa ideia, o Oriente já foi mais avançado do que o Ocidente. Isto é cíclico.
Se efetivamente identifica esse problema concreto de muitos muçulmanos discriminarem as mulheres, como é que o Islão pode contribuir para o fim desse preconceito?
Primeiro, dar tempo ao tempo. Segundo, fazer que as pessoas olhem mais para o espírito da religião do que para a letra da lei. Ia dar o exemplo em relação à burqa. É altamente contraproducente e, contra o espírito da religião, uma mulher andar de burqa e depois andar com um decote ou com roupas justas. Se o objetivo é não atrair a atenção de terceiros, seja do sexo masculino, que se distraem através da beleza da mulher, e do cabelo — o cabelo surge aqui como um dos atributos da mulher que mais atraem o homem –, há aqui duas coisas que têm de ser feitas. Uma é perceber o espírito da coisa e não existirem as tais mulheres que andam de burqa, mas depois andam com calças justas ou com um decote pronunciado. Por outro lado, deixar que as pessoas livremente se conformem e não relegar todo esse papel para o lado da mulher. A mulher pode, se assim o entender, se achar que o deve fazer, cobrir-se, mas um homem também tem de controlar o seu instinto e o seu olhar.
A mentalidade hoje em dia é diferente, a ideia que está instituída é que mulheres e homens se vestem como quiserem e não se coloca essa questão da tentação. O Islão não terá de evoluir nesse sentido também?
Deixe-me dizer duas coisas. O que eu acho que tem faltado um bocadinho por este mundo fora — e não estou armado em bom samaritano, ou em defensor da moral e dos bons costumes, senão, com a minha idade, até podia ser apelidado de velho do Restelo — é algum pudor social. Desde há uns anos temos vindo a perder essa dignidade da pessoa humana, através até da forma como as pessoas se vestem. Dito isto, acho que as pessoas são inteiramente livres de fazer o que quiserem. Mas não se esqueça de que está a fazer esta pergunta a um crente, e como crente que sou acho que as pessoas se deviam coibir de ter determinados comportamentos públicos que vão contra a moral dos bons costumes e a moral religiosa. Mas, ainda sobre o exemplo da burqa, o Islão tem um espírito, e as pessoas em vez de olharem para o espírito olham para a letra das leis do Islão. Há que não fazer uma interpretação, ou um juízo, demasiado literal às leis que emanam do Alcorão.
Isso não vai contra a ideia de que o texto do Alcorão — ao contrário da Bíblia, que os teólogos cristãos têm interpretado de diversas formas — é imutável, porque foi ditado de forma direta por Deus ao profeta, e que por isso não é passível de interpretações?
O texto corânico, para nós, resulta de uma revelação do arcanjo Gabriel ao profeta Muhammad, portanto é um texto divino. Nós acreditamos, temos a convicção absoluta, de que é palavra divina — e a palavra divina é para nós sagrada.
E o texto é dogmático, para a teologia islâmica.
É dogmático e imutável. Ao longo dos últimos 1.400 anos ele nunca foi alterado. Dito isto, não significa que ele não é passível de ser interpretado. Ou seja, a alteração do texto em absoluto não nos é permitida, nós queremos mantê-lo assim porque é uma revelação divina. No entanto, a interpretação deve ser permeável, do meu ponto de vista, e adaptável ao contexto. Não significa isto que as leis sejam alteradas à mercê de um determinado contexto político, social ou cultural. As regras e os princípios que emanam do Alcorão e da religião são os mesmos. Simplesmente nós, como seres que vamos evoluindo ao longo do tempo, temos de olhar para isto de forma diferente. Veja-se por exemplo o caso dos progressos da ciência. Hoje é impossível ignorar os avanços e os progressos científicos e a religião tem, de alguma forma, de saber lidar com eles. Terá de se harmonizar com eles. Se os aceita ou não, é uma discussão muito interessante que nós poderíamos ter. Mas não posso ser indiferente e ignorar a existência destes.
A questão da interpretação literal dos textos sagrados é um ponto especialmente sensível no Islão. Muitos dos atos terroristas dos últimos anos levados a cabo por extremistas islâmicos foram acompanhados por justificações que incluíam o seguimento à letra de determinadas passagens do Alcorão. Passagens até muito concretas que serviram para justificar decapitações pelo Estado Islâmico, por exemplo. Não é perigoso o Islão afirmar que o Alcorão é imutável, dogmático, quando tem passagens que, se forem levadas à letra, resultam em situações destas?
É verdade o que diz, e é muito perigoso citar passagens do Alcorão. Há aqui duas convicções. Temos o lado de pessoas que são profundamente convictas na sua fé e que, embora achem que o Alcorão seja dogmático e imutável, vão interpretá-lo à luz daquilo que é o espírito da religião islâmica, que é um espírito pacifista. E outros haverá que, na pretensão de extraírem para si benefícios ou extraírem dos versículos corânicos uma retórica e uma narrativa claramente inflamada e que lhes permita praticar atos de maldade e de barbárie, vão ali também buscar e beber inspiração. O Alcorão é um texto que está redigido de forma, por um lado, tão ampla e tão concreta que qualquer freguês pode ir lá buscar inspiração. Para mim preocupa-me substancialmente e profundamente que estes bárbaros — que se dizem meus irmãos de fé, porque na realidade eu não acredito que sejam meus irmãos de fé, eles não são os verdadeiros muçulmanos — ousem e se atrevam a citar o Alcorão como base para os atentados.
Até se poderia argumentar que eles é que são os verdadeiros muçulmanos, por seguirem à letra o Alcorão, e não aqueles que vivem de forma pacífica com as outras culturas, como esta comunidade em Portugal.
É verdade. Essa é a crítica que os radicais, extremistas, lançam a pessoas moderadas, como nós. Arrogam-se o estatuto de verdadeiros muçulmanos. Mas, se reparar, é um disparate. Isso não faz sentido. Na realidade, todos os textos e revelações divinas obrigam a um registo e têm um estilo de escrita. Portanto, quando se exorta os fiéis para a prática de determinado ato, não se está a ser literalista. A Bíblia também tem passagens que falam sobre guerras, disputas, guerrilhas. Mas existe sobretudo como uma retórica: extrair dali uma moral e uma lição, é isso que temos de fazer. Em relação à guerra, já que fala dos terroristas, o profeta Muhammad não só foi um líder religioso, como também foi um chefe de Estado e um líder militar. Nós não rejeitamos as diversas feições que o profeta Muhammad teve, assumimo-lo com naturalidade. Ele teve duas intervenções bélicas nos primórdios do Islão, sempre numa perspetiva, acreditamos, de defesa ou de contra-ataque, e não numa perspetiva de islamizar ninguém. Aquando da segunda intervenção bélica, ele virou-se para os seus companheiros quando terminou a guerra, e disse o seguinte: “Agora, terminou a jihad pequena, vamos começar a jihad grande. A jihad, para qualquer muçulmano, deve ser uma guerra contra os seus instintos. É a mesma jihad que me faz renunciar à fome e à capacidade de comer durante o mês do Ramadão, para cumprir com este mandamento do Islão, e é essa guerra que eu pratico todos os dias. Não é a guerra física literalmente. Isso não faz sentido.
Não faz falta no mundo islâmico uma organização hierárquica e líderes mundiais mais fortes que possam dizer essas coisas?
Não há nenhum Papa islâmico, como sabemos. O Islão caracteriza-se por ser uma religião que não tem uma autoridade central, piramidal e hierarquizada à semelhança do Vaticano, e portanto não tem um líder que, no fundo, responda por todos os muçulmanos. Eu tenho uma posição muito própria em relação a isso, e acho que faz falta. Faz falta liderança. Aliás, esse é um dos desafios que eu aponto como algo que o Islão terá de resolver nos próximos tempos. Primeiro, o desafio da interpretação, a chamada hermenêutica corânica. Temos de dar tempo ao tempo, o Islão tem poucos anos de história, mas como é evidente tem de amadurecer nesse aspeto e tem de fazer aquilo que a Igreja Católica fez, que foi uma reflexão doutrinária e académica sobre como interpretar os preceitos religiosos e como adaptar o texto religioso à realidade atual e mundana. Em relação às autoridades, acho que faz falta, mas correríamos muitos riscos. Se, por um lado, os muçulmanos com uma autoridade central ganham a mais-valia de poderem falar a uma só voz, tendo alguém, pacifista, que nos representa, temos outro problema: o da legitimidade. Quem? Muitos muçulmanos não se revêem em determinados líderes religiosos e reservam-se o direito de dizer “em meu nome não”. Os muçulmanos podem oferecer alguma resistência e acharem que não existe um líder que os faça representar. A acrescer a isto, o Islão também tem uma multiculturalidade e uma diversidade que o caracteriza. Não só porque tem uma corrente sunita e uma xiita, como também vai beber inspiração a várias culturas. Esse é outro dos problemas. Escolhia-se um árabe? Um indiano? Um europeu? Esse é um dos problemas que faz com que não exista uma autoridade.
Não poderiam fazer o que a Igreja Católica fez, de seguir uma linha desde o tempo de Jesus até hoje, sempre com sucessão dos Papas. Tinha de se criar agora uma autoridade.
Precisamente.
A integração de uma comunidade islâmica num país ocidental tem desafios muito particulares. Em Portugal, essa integração é muito harmoniosa, podemos dizer que é um exemplo mundial. Como olhou, por exemplo, para a escolha de Marcelo Rebelo de Sousa de organizar uma cerimónia inter-religiosa no dia da sua tomada de posse, aqui na mesquita?
Com muito agrado. São conhecidas as relações que a comunidade tem com o Presidente Marcelo, não só com o Presidente mas com o seu pai, que era o governador Baltasar Rebelo de Sousa, que tinha um carinho especial pela comunidade, então intitulada Comunidade Maometana em Moçambique. A família Rebelo de Sousa em concreto, e especialmente agora o Presidente, sempre teve um carinho especial. Já em Moçambique havia uma sã convivência que aqui aumentou. E porquê? Ainda há pouco, e vocês viram, quando estávamos aqui na mesquita, um cavalheiro veio ter connosco, mostrou o seu novo Cartão de Cidadão e disse: “Já sou português!” Isto enche-me de orgulho. Fico profundamente satisfeito por perceber que os membros da nossa comunidade querem ser muçulmanos, mas, mais do que isso, querem ser portugueses que professam a religião islâmica. Nessa diferença de formulação assenta aquilo que é a profunda convicção e os ideais desta comunidade. Esta integração feliz e saudável que nós vivemos é fruto de uma conjugação de duas premissas. Por um lado, nós, portugueses, recebemos bem. Somos um país de bons costumes, temos uma história de miscigenação e de confluência entre culturas. Por outro lado, se me permitem a vaidade, temos uma comunidade islâmica que sabe dar mostras de integração e sabe estar relacionada e engajada no seio da sociedade portuguesa.
Pode dar um exemplo?
Vou dar-lhe um exemplo de uma atividade que fazemos aqui, a cada duas semanas, na mesquita, que se chama “Sopa para Todos”. É a vulgar sopa dos pobres, que é feita pela Santa Casa e por outras instituições católicas, mas nós também o fazemos. Nesse ponto, não traz nada de novo. Qual é a inovação? Primeiro, é feita para as pessoas que mais precisam, os sem-abrigo, em estreita articulação com a autarquia, a Junta de Freguesia de Campolide. O que é especial aqui é que 90% dos beneficiários desta sopa são não-muçulmanos. Essa é a nossa forma de dizer que queremos estar integrados na sociedade e que a mesquita é uma casa aberta para todos.
E as pessoas procuram a mesquita sem preconceitos?
Não posso dizer que é absolutamente sem preconceitos, porque o edifício, arquitetonicamente, é diferente e as pessoas chegam aqui e olham com alguma curiosidade, com um misto de surpresa e espanto, e alguns até com alguma desconfiança ou receio. Muitas vezes, quando venho aqui às reuniões da direção, estou à porta da mesquita e vejo alguém a olhar de forma surpresa, convido a entrar. “Não quer vir aqui à mesquita?” A pessoa entra um bocadinho a medo, mas depois, quando entra e se apercebe de que isto não mais é do que uma igreja, um local de culto como outro qualquer, que tem uma sala de culto mas mais do que isso, que tem um refeitório, uma biblioteca, salas de convívio, uma sala de conferências… Quando se apercebe de que a mesquita tem esta vivência, sai daqui com uma ideia muito mais dignificante do que é o Islão.
Uma realidade muito diferente de outros países na Europa.
Já estive em países europeus em que as mesquitas servem simplesmente para cumprir o propósito religioso, em que é quase mecânico, automático. As pessoas vão lá, fazem a oração e vão-se embora. Mas já estive em mesquitas que têm restaurantes, como a nossa, outras que tem bibliotecas, salas de convívio. É muito variável. Estive agora em Roma, no Vaticano, e a comunidade islâmica em Roma tem uma conformação muito próxima à portuguesa. O terreno foi doado por uma autarquia, ou por uma entidade estatal governamental, juntaram-se boas vontades com alguma influência dos países de maioria islâmica, que generosamente deram não só em espécie mas também em valores para a construção, e depois tem uma orientação eclesiástica — um imã — e tem uma direção que a gere. Curiosamente, em Roma, o presidente da comunidade é deputado do parlamento italiano.
O que mostra que há uma convivência saudável.
Mostra que ele não é visto como um muçulmano italiano, mostra que é visto como alguém italiano que professa a religião islâmica. Como podia ser outro qualquer. A religião é uma extensão da personalidade e não deve ficar compartimentada. Em Portugal, temos, mais do que um clima de liberdade religiosa, um clima de tolerância religiosa. A ideia subjacente hoje em dia é a não invocação da minha religião em espaço público. Acho que isto não faz sentido. Posso e devo ser livre de dizer que sou muçulmano. Devo ter orgulho em dizer que sou muçulmano. O que eu não posso é tentar converter os outros a muçulmanos. Voltando ao exemplo do cavalheiro que é presidente da comunidade islâmica em Roma, ele com certeza que é um italiano que professa a religião islâmica. Portanto, a religião, neste caso em concreto da sua profissão, não é para ali chamada. Simplesmente é um aspeto da vida dele.
É disso que o Islão precisa?
Sim, de pessoas que apesar de serem muçulmanos convictos se afirmem como pessoas normais.
Portugal tem discutido a despenalização da eutanásia. Como é que o Islão olha para este assunto?
A Comunidade Islâmica tem uma posição formal que assenta na posição do Islão: é uma religião que apela para a vida. A palavra Islam significa “submissão voluntária à vontade divina”. Atenção que aqui o pormenor de ser voluntarista é muito importante, não há Islão sob coação, ninguém pode obrigar outro a ser muçulmano ou a ser outra coisa qualquer. Tenho muito dificuldade em acreditar que uma religião que deriva desse conceito e deriva da palavra Salaam, que significa paz, possa pregar valores de guerra. Além disso, o Islão é uma religião que apela à vida, à vida mundana e à vida futura. A vida mundana caracteriza-se por ser um período quase probatório, em que o ser humano deverá estar em contacto com o Criador, deverá ter uma conduta pia, virtuosa, para poder ganhar o céu e o descanso eterno. Portanto, é para nós absoluto que a vida humana é um dom, uma faculdade, um milagre que nos é dado e deve ser retirado por Deus. É por isso que os muçulmanos acreditam que podemos dispor de tudo com exceção da vida.
Portanto, contra a eutanásia.
Somos absolutamente contra a eutanásia. Não podemos dispor da nossa vida, porque foi um dom que nos foi dado por Deus. Isso seria quase o equivalente a cometer um suicídio.