Pelo menos 10 pessoas morreram e outras 35 ficaram feridas num ataque de mísseis a Kharkiv, na Ucrânia, esta terça-feira. A cidade que já serviu de balão de ensaio a uma nova Donetsk — há poucos anos, os movimentos pro-russos chegaram a tomar a câmara municipal e a proclamar a República do Povo de Kharkiv — está, por estes dias, debaixo de intenso bombardeamento russo. A informação foi avançada pelo Ministério do Interior do país e o próprio Presidente ucraniana, no seu discurso (à distância) perante o plenário do Parlamento Europeu, descreveu esta manhã como “muito trágica” a ofensiva russa. A segunda maior cidade da Ucrânia, com cerca de 1.5 milhões de habitantes e situada a 40 quilómetros da Rússia, foi atacada por “dois mísseis cruzeiros”. Um deles atingiu “a maior praça do país”.
Chama-se Praça da Liberdade e é a maior do nosso país. Podem imaginar mísseis cruzeiro a atingir esta praça?”, afirmou Volodymyr Zelensky, por videoconferência.
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Um dos principais momentos do ataque desta terça-feira aconteceu quando passavam poucos minutos das 8h. Um vídeo divulgado pelo jornal Kyiv Independent mostra o momento em que um edifício do governo na Praça da Independência é atingido com uma peça de artilharia pesada, dando origem a uma enorme bola de fogo. O facto de algumas dezenas de carros civis circularem junto ao edifício não deteve as forças russas de avançar com o ataque — aliás, segundo o The Guardian, o disparo de rocket tinha como objetivo matar o governador regional e os elementos da sua equipa.
⚡️ Russian forces have struck Independence Square in central Kharkiv with a powerful explosion.
According to a video of the event, the blast detonated right in front of the headquarters of the Kharkiv Oblast government.
Video: Ukraine NOW/Telegram pic.twitter.com/poZjYcjRjD
— The Kyiv Independent (@KyivIndependent) March 1, 2022
As imagens divulgadas pela agência Reuters, que pode ver no vídeo que se segue, não deixam margem para dúvidas sobre a extensão dos danos provocados pela explosão. As janelas à volta do local do impacto desapareceram e a secção do edifício atingida pelo rocket ficou totalmente destruída por dentro. Volodymyr Zelensky considerou tratar-se de um “ato de terrorismo” por parte das forças russas. “Ninguém vai perdoar. Ninguém vai esquecer”, declarou o líder ucraniano.
Kharkiv, contava o jornal norte-americano The Washington Post, é conhecida pelos ucranianos pela sua “poesia, arte, comércio, indústria e descoberta científica”. Na sua intervenção no Parlamento Europeu, Zelensky sublinhou tratar-se da “cidade com o maior número de universidades” do país: são cerca de duas dezenas. Esta terça-feira, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Índia confirmou a morte de um estudante indiano no ataque desta manhã.
With profound sorrow we confirm that an Indian student lost his life in shelling in Kharkiv this morning. The Ministry is in touch with his family.
We convey our deepest condolences to the family.
— Randhir Jaiswal (@MEAIndia) March 1, 2022
Resistência ucraniana numa cidade onde a maioria da população fala russo
De entre as maiores cidades ucranianas, não há nenhuma que esteja tão perto da Rússia como Kharkiv, que tem estado na mira das forças armadas russas desde o primeiro dia da invasão. E nada indica que o foco mude. É possível que os russos esperassem pouca resistência por parte da população, numa região em que o russo é falado pela maioria dos ucranianos e em que a população cruzava, com frequência, a fronteira com a Rússia para fazer negócios ou porque tem familiares do outro lado, lê-se no jornal norte-americano The Washington Post.
A resistência ucraniana, porém, tem-se feito sentir. No sábado, horas antes de um ataque por parte da Rússia, várias pessoas juntaram-se à força de reserva civil e armaram-se para defender a cidade.
Toda a gente quer relações comerciais com a Rússia, mas ninguém quer que a cidade se torne russa”, afirmou um vendedor do mercado de Barabashovo, em Karkhiv, ao canal francês France 24, em janeiro deste ano.
Nesse mês, Zelensky alertou para a possibilidade de a cidade vir a ser ocupada pelos russos. Na altura, de acordo com France24, a população não poupou críticas ao Presidente, receando que as suas palavras pudessem causar instabilidade numa zona que ainda tem memória do que se passou em 2014, com a invasão — e, depois, anexação — da Crimeia.
É estúpido por parte do Presidente estar a dizer coisas dessas, porque isso só gera pânico e pânico é exatamente o que vai facilitar a invasão da Ucrânia”, afirmou uma das habitantes da cidade.
Das mãos da Ucrânia para a Rússia e novamente para a Ucrânia: o que se passou em Kharkiv nos últimos dias
Mas a verdade é que os avisos de Zelensky acabaram por ter fundamento. A invasão russa começou no dia 24 de fevereiro e, no passado domingo, as forças armadas russas chegaram a tomar controlo de Kharkiv, depois de bombardearem fortemente a cidade na noite de sábado e na manhã de domingo. Horas mais tarde, e após confrontos, Kharkiv voltava a estar sob controlo ucraniano.
Esta terça-feira, a cidade foi novamente alvo de um forte ataque. Para Michael Kofman, diretor de Estudos da Rússia da CNA, uma plataforma de investigação sem fins lucrativos norte-americana, os constantes e crescentes ataques à cidade “são um sinal de que Kharkiv pode ser o próximo, e ainda mais sangrento, palco da guerra”.
As forças ucranianas fizeram uma boa resistência… mas o pior ainda está para vir”, acrescentou Kofman, citado pelo Washington Post.
Mas os confrontos e a instabilidade não são recentes na cidade Kharkiv, muito pelo contrário. A história que o diga.
De centro da cultura ucraniana aos movimentos pró-russos: a história de Kharkiv
Fundada em 1654, Kharkiv foi a capital da República Soviética da Ucrânia entre 1920 e 1934. Dois anos antes, em 1918, uma tentativa de independência levada a cabo pela República Popular Ucraniana, sediada em Kiev, foi esmagada pelas forças armadas russas, que partiram desta cidade em direção à atual capital.
Em julho do ano passado, o Presidente russo, Vladimir Putin, referiu-se precisamente a este episódio: “Para aqueles que hoje desistiram do controlo da Ucrânia em prol de forças externas, seria instrutivo recordar que, em 1918, essa decisão foi fatal para o regime que dominava Kiev.”
Nos anos 20, Kharkiv foi “o centro mundial da cultura ucraniana”, explicou Timothy Snyder, professor de História da Universidade de Yale, ao Washington Post. Os anos 30, no entanto, foram marcados por inúmeras mortes, não só devido às purgas, mas especialmente devido à Grande Fome ucraniana, que se fez sentir entre 1932 e 1933 e que foi resultado das políticas agrícolas da União Soviética.
De acordo com Snyder, nessa altura, Kharkiv tornou-se “a cidade onde os agricultores iam para morrer”, já que muitas das pessoas com fome dirigiram-se para a cidade para mendigar e pedir dinheiro.
Mais recentemente, as fações pró-russas voltaram a fazer-se sentir . Segundo o jornal norte-americano The New York Times, em 2014, após Viktor Yanukovych, o Presidente pró-russo ucraniano, ter sido deposto, os russos usaram Kharkiv para fazer oposição ao novo governo da Ucrânia, na tentativa de voltar a colocar Yanukovych no poder.
Aliás, antes de fugir definitivamente para a Rússia, Yanukovych saiu de Kiev para Kharkiv, onde o presidente da câmara organizou um congresso para políticos e responsáveis pró-russos das regiões este e sudoeste da Ucrânia e onde maioritariamente se falava russo.
Ainda no final desse ano, quando a Rússia apoiou os separatistas em Donestsk e Lugansk, houve uma tentativa de replicar o movimento em Kharkiv, refere o Washington Post. Logo nessa altura, o edifício da câmara municipal esteve sob controlo de um grupo pró-russo, tendo sido mesmo declarada a República do Povo de Kharkiv. Esse movimento insurgente, contudo, durou apenas alguns dias.
Um ano mais tarde, houve várias explosões na cidade, sendo que uma delas ocorreu num comício que comemorava um ano da saída de Yanukovych do poder — e o governo ucraniano apontou o dedo aos russos. A explosão matou duas pessoas.
O movimento separatista, porém, acabou por não prevalecer, mas atualmente serve de base para os argumentos de invasão de Vladimir Putin: de que a Ucrânia é parte intrínseca da Rússia e que está a ser controlada por estrangeiros e por ucranianos que foram alvo de propaganda enganosa, argumenta o The New York Times.