Índice
Índice
Há já alguns anos que a realidade de certos bairros lisboetas é conhecida por todos: a gentrificação, o preço das rendas e a falta de espaços traduz-se no fim anunciado de muitos projetos associativos e coletivos, culturais e não só. Poucas vezes, a mudança de sítio é uma miragem com resultado feliz, sobretudo tendo em conta a realidade que espelha muito do panorama artístico da cidade que está, inevitavelmente, a crescer para as margens. Bem no coração de Lisboa, perto do Campo dos Mártires da Pátria, na freguesia de Arroios, um velho quartel da Guarda Nacional Republicana (GNR) é agora um desses (últimos) espaços que parece resistir à tendência de desaparecimento e anulação de muitos projetos. Foi ocupado – no melhor uso do termo – pela Largo Residências, uma cooperativa que desenvolve práticas culturais de inclusão social, e que, desde então, tem primado por aquilo que todo o setor cultural português tem debatido nos últimos anos: a necessidade de acolher quem procura espaço para criar.
Quem por ali passa atualmente dá de caras com um grande palacete cor-de-rosa, esbatido pelo passar dos anos, com cartazes nas janelas onde surgem várias caras pintadas e maquilhadas. Há vida por detrás dos grandes portões de ferro, mesmo que o olhar mais desprevenido não imagine a quantidade de mundos que ali se reúnem. Depois da entrada e de se passar por um pátio que se estende até ao outro lado do quartel, já a dar para a Rua Jacinta Marto, o vasto complexo de ar industrial é composto de salas e corredores, onde agora ecoam vozes que ali estabelecem um verdadeiro habitat entregue à criação artística, mas também a projetos de economia social. Porventura, uma espécie de reduto da vida do próprio Intendente, ali perto, onde tudo começou para a Largo Residências há cerca de 12 anos, mas que agora se amplificou no tempo e no espaço.
“Quando aqui viemos pela primeira vez, ficámos logo com muita esperança no que este lugar se poderia tornar”, conta Marta Silva, diretora da Largo Residências, ao Observador, enquanto mostra algumas renovações feitas no edifício pela cooperativa. Onde antes já não havia sequer eletricidade e água, na calha de um edifício que esteve por alguns anos entregue ao abandono e ao saque (literalmente), há já melhorias que dão um outro ar de graça a este velho palácio – conhecido como Quartel de Santa Bárbara ou antigo Quartel do Cabeço da Bola. “Foi tudo roubado, desde torneiras a puxadores de porta. Quando chegámos ainda demos de cara com os ladrões, uma rede organizada de roubo de cobre”, recorda entre risos. Mantendo a sua traça, reconhece-se o aspeto do edifício datado do fim do século XIX, onde funciona igualmente um centro de emergência para sem-abrigo, criado pela Câmara Municipal de Lisboa. Mas ali ainda muito pode caber.
O Intendente mora aqui
Estávamos em 2011, quando a Largo Residências iniciou o seu programa de atividades culturais de inclusão social e desenvolvimento local. “Tendo como principal objetivo promover a cultura, a criatividade e o conhecimento, como fatores determinantes no sucesso e sustentabilidade dos processos de regeneração social e urbana, bem como proporcionar condições de pesquisa, criação e maturação ao trabalho de artistas que ali queiram residir, a ideia nuclear deste projeto é alimentar um edifício preparado para acolher e produzir trabalhos de distintas áreas artísticas em particular, e do sector cultural e criativo em geral”, lê-se no manifesto de missão da cooperativa, que durante anos foi reconhecida pelo seu trabalho paralelo à reinserção do Intendente na vida da cidade. Entre espaços de alojamento para artistas, café e loja, foram durante anos um dos centros nevrálgicos da movida que se gerou no largo, mas também no eixo da avenida Almirante Reis (Intendente, Pena, Anjos e Arroios).
Foi nesse contexto que desenvolveram o festival O Bairro em Festa, promovido em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa, a EGEAC e a Junta de Freguesia de Arroios, proporcionando, ao longo das diferentes edições, concertos, espetáculos, projetos de criação que contam com o contributo da comunidade local, debates, exposições e uma série de outras atividades que compõem uma oferta diversificada que sublinha as características de um bairro reconhecidamente multicultural. Vista como uma das maiores cooperativas nacionais no campo da cultura, a Largo Residências foi igualmente distinguida, em 2021, com o Prémio da Acesso Cultura na categoria da Acessibilidade Social. Mas nem mesmo esse trabalho a longo prazo impediu as consequências de uma economia impelida pelo crescimento do turismo.
“Foi em 2017, quando se marca no Intendente o cúmulo da sua gentrificação, que fomos informados pelos senhorios que não havia intenção de renovarem o contrato de arrendamento, que iria terminar em finais de 2021”, explica a responsável. “Percebemos o quão difícil seria continuar ali, numa altura em que já se falava de todos os grandes patrimónios do Estado aqui à volta e que estavam a ficar devolutos”. Com um futuro entregue à privatização e aos condomínios de luxo, a cooperativa começou a sua busca por alternativas, à medida que acompanhava os movimentos de defesa da cidade e manutenção de espaços do bairro. Num momento de indefinição e com a pandemia pelo meio, é nessa altura que surge então a possibilidade de fazer O Bairro em Festa no quartel, em 2021 – bem como pela facilidade de construir naquele quartel um festival com todas as condições de segurança requeridas. “À medida que íamos perdendo parceiros locais e íamos ganhando hotéis, havia a intenção de alargar o festival que tem um trabalho de dinamização cultural em rede permanente e colaborativa. Por isso fomos à procura de espaços”, elucida, salientado o próprio convite do município para fazerem esse mapeamento.
Encontrado o quartel – pertencente à época à Estamo, a imobiliária do Estado – o festival regressou e com isso a garantia do município de que podiam utilizar o imóvel, de forma transitória, antes da possível implementação de um projeto já destinado aquele património. Num espaço que contempla cerca de 22 mil metros quadrados, está prevista a construção de um complexo de habitação com rendas acessíveis, comércio e um centro de idosos. Revelado em 2019, o projeto envolve o desenvolvimento de 240 casas que deverão integrar o Programa de Arrendamento Acessível, sendo que a obra é financiada pelo Fundo Nacional de Reabilitação do Edificado (FNRE), que é gerido pela Fundiestamo, a nova detentora do imóvel. Para já, de acordo com a Largo Residências, trata-se de uma solução encontrada, através de um acordo com a Câmara Municipal de Lisboa, servindo como “balão de oxigénio para entidades e projetos que têm sentido crescentes dificuldades em garantir a manutenção da atividade regular”.
Repetida a experiência do festival já este ano, a Largo Residências veio então a ocupar o espaço, que inaugurou definitivamente no passado mês de outubro, com o lançamento de uma programação que se estende até, pelo menos, ao final deste ano. “À margem do festival começámos a pensar como é que podíamos continuar aqui e colocar o espaço, no fundo ao serviço do setor. Há outros como nós que querem e precisam de espaço e foi aí que começámos a falar com a vereação no sentido de perceberem que esta era uma boa solução para todos”, salienta Marta Silva, ainda que as eleições e a mudança da presidência da junta não tenham ajudado ao acelerar do processo. “É toda uma nova relação, que ainda está a ser construída relativamente à nova Junta de Freguesia, liderada pelo CDS-PP.”
Vozes que espelham a diversidade
Certo é que o percurso escolhido pela Largo Residências não parou. Abriu-se uma open call e rapidamente começaram a surgir projetos e coletivos interessados. Contas feitas, entre os mais de trinta coletivos que o espaço acolhe atualmente, há um pouco de tudo: companhias de teatro, um atelier de moda, ateliers de artistas plásticos e visuais, espaço de residências artísticas e coworking, uma associação dedicada à arte da palavra dita e espaços de oficinas para múltiplos usos. Num espaço feito de diversidade, é lá que se encontra o encenador e ator Pedro Saavedra e a companhia Fim do Teatro, fundada em 2019, que na procura de um espaço de criação e apresentação, concorreu à chamada que os levou para dentro do quartel.
“Partilhamos a mesma ideia de cidade: a de que esta tem de ser reconstruída do ponto de vista humano. Não podem ser só para vender casas, termos passeios de tuktuk e festivais. Para haver comunidade as pessoas têm de estar juntas. Assim que viemos para aqui, houve esta transição, e começámos a ocupá-lo o quartel do ponto de vista criativo”, explica ao Observador. Entre peças e workshops, a companhia que até hoje já empregou mais de trinta pessoas, tem desenvolvido um trabalho independente e atento às sinergias que o espaço promove. Um elemento que, desde logo, motiva uma reflexão assertiva sobre a sua importância.
“Isto é um investimento de que qualquer estrutura governamental deveria estar contente e orgulhosa. Num espaço informal que tem a capacidade de albergar pessoas de uma diferença espetacular. O simples facto de sermos forçados a trocar ideias no espaço melhora-nos, porque nos conhecemos e cria-se uma relação de proximidade”, acrescenta o encenador. Entre as muitas conversas informais que ali se iniciam, o corrupio de projetos artísticos parece entrelaçar-se. Formam uma comunidade que dão ao quartel esse aspeto de lugar reavivador de uma certa cultura em rede, uma “ligação terra”, como explica.
Foi também esse mote que motivou o músico e programador cultural Alex Cortez a trazer para a Largo Residências a associação A Palavra, dedicada inteiramente ao uso da palavra nas suas múltiplas vertentes, combinações e possibilidades, da palavra dita, à performance poética. “Quando percebemos que isto ia estar aberto a propostas, achamos que seria interessante aproveitar essa valência do espaço de poder permitir sinergias entre as diferentes pessoas que aqui se encontram. Tem um lado de intervenção social que nos agrada muito e isso obviamente, no nosso entender, é uma urgência, atualmente, de se trabalhar com pessoas que estão carenciadas e muitas vezes deslocalizadas dos seus locais de origens. Gostamos de nos enquadrar nesse espírito”, realça.
O programador, que nas últimas décadas acompanhou de perto alguns dos projetos culturais que floresceram na cidade, como o Musicbox do qual é fundador, espera, no entanto, que não se cometam os erros já cometidos noutras cidades europeias, embora esse mesmo processo já pareça ter começado em Lisboa. “No fundo, achamos que é premente poder trabalhar e criar ferramentas que permitam uma maior cidadania e uma participação ativa e consciente, que permita criar um espaço que possa só por si, ser um contributo contra a gentrificação. Acreditamos que podemos dar um contributo para o espírito que prevalece e que o próprio município poderá olhar com outros olhos e perceba que estas ideias e estes espaços são essenciais para o tecido cultural da cidade. Lisboa tem vindo a sofrer uma transmutação muito forte e já se percebe como isto é importante. Estes espaços são as artérias por onde passa o sangue que define uma identidade. Sem eles, cada um com as suas idiossincrasias, não há lastro e esvazia-se a cidade”.
Entre a transição e a permanência
Para ambos os coletivos ali residentes, o futuro joga-se a cada seis meses. É esse o período dos contratos estabelecidos com a Largo Residências, sendo renováveis, se nada acontecer, entretanto ao quartel que os abriga. Vive-se o presente, com esperança no futuro, ainda que incerteza seja uma palavra comum para os projetos culturais e associativos que tentam permanecer no centro da cidade. Pedro Saavedra diz que se deve encarar a situação como se de uma verdadeira “utopia se tratasse”, porque, afinal de contas, “é esse a alma de um sítio como este”. A troca de ideias, as boas sinergias que se podem criar são também aspetos que não deixem de ser importantes para Alex Cortez, mesmo que se viva numa espécie de transição, sem permanência definida. “A cedência deste espaço, por muito temporário que possa ser, vai seguramente funcionar como um balão de oxigénio para os artistas que aqui estão instalados, para as pessoas que aqui vêm usufruir e até para os coletivos terem essa troca de ideias”, sintetiza.
O quartel, até pela sua história, acaba por se cruzar bem com a ideia de uma economia social que se tenta agora consolidar. Uma lógica importante para Micaela Gomes, responsável pelas Residências Refúgio, um projeto da Largo Residências, criado em 2020, em parceria com a Fundação Aga Khan e o Fórum Refúgio, com a finalidade apoiar a integração e inclusão de refugiados e migrantes. Através de um trabalho de mediação, onde muitas vezes o primeiro contacto é decisivo para as relações que se criam, têm apoiado à integração de vários grupos sociais, nomeadamente de artistas provenientes de zonas fustigadas pela guerra.
“Já envolvemos cerca de 300 pessoas neste processo, muitos deles são artistas nos seus países de origem e foi por isso que também quisemos iniciar a programação deste quartel com um concerto de encontro com a comunidade afegã”, explica Micaela, que relembra a importância de dar a diferentes tipos de pessoas a oportunidade de poderem comunicar com o tecido associativo da cidade que os acolher. “Aqui as pessoas têm a possibilidade de conhecer todo um ecossistema cultural e a possibilidade de desenvolverem um trabalho em parcerias com outros artistas, que dificilmente poderiam ter simplesmente por não conhecerem ainda a cidade e o país.”
Um ecossistema para o futuro
Na Largo Residências não há um paradigma de território a ser dominado. O espaço que existe, por mais ou menos valências que possa ter, constrói-se pela partilha e pelo diálogo. A programação que têm desenvolvido, mas também a abertura do restaurante — o Largo Messe — já contribuiu para trazer mais pessoas a esta zona da cidade. “Gostamos de lhe chamar um polo cultural pop up, onde todas as pessoas são bem-vindas e onde continuamos abertos a novos projetos que estejam em busca de espaço. Há sempre soluções”, diz Marta Silva ao Observador.
O mote de “enquanto não avançar, nós conseguimos cá estar” é vivido e sabido por todos os que ali trabalham diariamente. Contactadas pelo Observador, tanto a Câmara Municipal de Lisboa como a Junta de Freguesia de Arroios não remeteram qualquer esclarecimento sobre o futuro do espaço ou até quando é que a Largo Residências pode manter o atual modelo de funcionamento em curso. “Ao passo que no Intendente o futuro era uma carta em branco e nós estivemos no início da execução dos planos de intervenção, aqui estamos numa fase de pré-ação e com o desejo de que possa servir para contaminar aquilo que venha ser este projeto em termos patrimoniais”, sustenta a responsável.
Com a ambição de virem a provar serem essenciais como serviço para a freguesia, a Largo Residências mantém o espírito com que começou a trabalhar há mais de uma década. Desta vez, e mais do que nunca, com o apoio e o sentimento de outras estruturas, naquilo que se assemelha a um baluarte, feito de projetos, coletivos e artistas em busca de um centro citadino em que se possa continuar a criar e a fruir artisticamente. “É uma barriga de aluguer e temos o desejo de nos manter por cá”, acrescenta Marta Silva. Mas mesmo pela incerteza, todos acreditam que deixará, no entanto, uma marca a ser lembrada no futuro – algo que está bem presente na voz daqueles que ali trabalham, onde se celebra, acima de tudo, tal como diz o encenador Pedro Saavedra, em jeito de remate: “Se isto um dia for fechado, eles fazem uma festa e não uma manifestação. É essa a alma deste espaço. Nós e os outros, certamente estaremos cá também para essa celebração, aconteça agora ou daqui por alguns anos.”