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Laurie Anderson e "Big Science": o primeiro disco do resto das nossas vidas

Em 1982, Isilda Sanches comprou o seu primeiro disco, um álbum profético, tecnológico, arrojado e feminista que agora é reeditado em vinil. Era "Big Science", de Laurie Anderson.

Não sei bem a importância que as pessoas davam à compra do primeiro disco, quando comprar o primeiro disco era o início de uma ligação forte com a música e os objetos que permitiam ouvi-la: discos, cassetes, rádio, gravador, gira-discos, aparelhagem. Talvez hoje comece a romantizar-se novamente esse aspeto, com a quase fetichização do vinil, mas os serviços de streaming que dominam o consumo de música em todo o mundo não são muito propensos a criar memórias relevantes. Se até imagino que exista quem se lembre da primeira música que pôs a tocar no leitor de mp3, suponho que ninguém diga coisas como “a primeira vez que me liguei ao [escrever nome do serviço] para ouvir música foi com [escrever nome do artista]”.

Lembro-me bem do primeiro disco que comprei e comprei-o sem ter como ouvi-lo. Na verdade, encomendei-o, porque, no Sabugal, onde vivia, não havia lojas de discos e os singles e LPs que se encontravam nas feiras não faziam nada por mim. Era 1982, tinha 12 anos e 2 irmãos mais velhos a estudar em Lisboa. Foram eles que me pegaram o gosto (o vício, nas palavras da minha mãe) pela música, acompanharam o processo de decisão do disco de estreia e trataram da encomenda. Eu paguei, amealhando uma parca mesada durante tempo considerável.

A capa de "Big Science", álbum originalmente editado em 1982 e agora disponível numa nova edição em vinil

Na altura ainda não havia aparelhagem em casa, nem gira-discos, e eu entretinha-me a gravar cassetes com coisas que ouvia na rádio, nos programas do Antonio Sérgio, do Anibal Cabrita e Ricardo Saló, ou do John Peel (que conseguia ouvir na BBC Radio One com a antena presa ao varão do cortinado). Com essas e outras referências dos meus irmãos (fãs de Joy Division, Talking Heads, The Cure…) fiz uma lista, que incluía, por exemplo, “LC” de Durutti Column, “Sextet” dos A Certain Ratio e mais 2 ou 3 de que já não me lembro. Andei a refletir sobre o assunto alguns meses, como se estivesse prestes a fazer um investimento para vida, mas acabei por escolher aquele em que me revia mais: Big Science, o primeiro álbum de Laurie Anderson em nome próprio.

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Quando ouvi “O Superman”, na rádio, não me lembro em que programa, senti-o na pele como uma corrente elétrica, ou uma voz do além. Talvez fosse a dieta sci-fi com que cresci, a ver na TV e a brincar na escola ao “Espaço 1999” e ao Star Trek, mas tudo em “O Superman” fazia sentido e ressoava com o meu imaginário de naves, botões e robots. A estranha canção colou-se como adesivo. O efeito, aliás, foi universal. Contra todas as previsões, “O Superman”, uma canção pessimista com voz robótica e fundo totalmente eletrónico, tornou-se num êxito pop — aparentemente, a culpa foi de John Peel, que começou a passar o tema e criou um verdadeiro fenómeno.

Big Science foi o meu disco de empoderamento, quando a palavra ainda não fazia parte do léxico e eu não tinha grande ideia do conceito, mas precisava de incentivo para crescer confiante de que, sendo mulher, podia fazer coisas “estranhas”,“diferentes” e “importantes”, como ela.

Claro que em 1982 eu não percebia do que falava de facto Laurie Anderson, era demasiada complexidade para a minha capacidade de compreensão, mas “O Superman”, apesar da temática catastrofista, é uma fantasia eletrónica, perfeitamente capaz de cativar uma miúda a entrar na adolescência e à procura de modelos femininos. Laurie Anderson foi o meu modelo. Até tentei ter o cabelo como ela, mas nunca consegui ter tanta pinta. Também comecei a usar blazers, mas nunca tive nenhum branco e, mais tarde (no 9º ano), fui estudar alemão por causa de “Example #22”, uma das faixas de Big Science (e de “99 Luftballons” de Nena, que saiu depois, confesso).

Quando digo que escolhi como primeiro disco aquele em que me revia mais, é porque me projetei naquela figura: Laurie Anderson era mulher e fazia a música mais extraordinária que alguma vez tinha ouvido. Big Science foi o meu disco de empoderamento, quando a palavra ainda não fazia parte do léxico e eu não tinha grande ideia do conceito, mas precisava de incentivo para crescer confiante de que, sendo mulher, podia fazer coisas “estranhas”,“diferentes” e “importantes”, como ela. Na altura, pouco sabia sobre Laurie Anderson, e menos ainda sobre a vanguarda artística de Nova Iorque de onde ela vinha. Mas também foi por causa dela que fiquei atenta e fui descobrir John Giorno, William Burroughs, Philip Glass e outros com quem ela trabalhou ou que gravitavam no mesmo universo.

[o vídeo de “O Superman”:]

Embora percebesse algumas das mensagens que Laurie Anderson estava a passar em Big Science, tal como Margaret Atwood (autora de Handmaid ‘s Tale, na altura tinha pouco mais de 40 anos), não atingia a profundidade da coisa. Num artigo recente no The Guardian, Atwood fala sobre Laurie Anderson e o impacto de “O Superman” e confessa que, em 1981, quando o single saiu, não entendeu que a canção era sobre uma operação militar fracassada, a Operation Eagle Claw, em 1980, que pretendia retirar 52 diplomatas americanos do Irão. Se para ela, mais velha e a viver no Canadá, não foi óbvia a relação, no meu caso, esse tipo de interpretação estava totalmente fora de limites, por muito que lesse as letras impressas no inlay e visse notícias na televisão. As dinâmicas da geopolítica eram-me completamente estranhas, mas até percebia que havia uma anomalia tecnológica no Super Homem e que Big Science, o disco, estava cheio de solidão e confusão.

Laurie Anderson já falou várias vezes do seu álbum de estreia e das motivações na altura, mas o assunto voltou com uma nova reedição agora lançada, até porque Big Science parece mais pertinente do que nunca. Numa listening party recente, no Twitter, deixou claro: “Big Science é sobre tecnologia, tamanho, industrialização, mudança de atitude em relação à autoridade e individualidade. Às vezes é alarmista, pintando o país como um prédio em chamas, um avião em queda. Tecnologia lado a lado com o apocalipse. O absurdo, O dia a dia”.

Começa logo em “From The Air”, a primeira canção:

“good evening, this is your captain
we are about to attempt a crash landing…”

Todo o tom é nervoso, agravado por saxofone e clarinete ansiosos e batida seca, mas o efeito é hipnótico. “This is your captain, we are all going down together”, continua Laurie Anderson, com clareza técnica, voz ligeiramente irónica e desapaixonada. “This is the time and this is the record of the time”, repete mecanicamente, marcando o primeiro momento de Big Science com uma queda de avião. O sinal óbvio do colapso iminente do sonho tecnológico americano. Se “O Superman”, o single, já anunciava uma grave falência técnica no sistema, o álbum Big Science traça o perfil de uma América perdida na sua mitologia capitalista de grandiosidade e dominação.

O álbum de estreia de Laurie Anderson faz parte da lista de clássicos do século XX e tem múltiplas dissecações, mas continua vivo e aberto a análise. 40 anos depois, é mais fácil perceber toda a sua complexidade e interpretá-lo à luz do presente como um disco quase profético.

Mas isso são coisas que me parecem óbvias agora. Na altura, a minha análise era bem mais superficial, ainda que empenhada. Fiquei tão orgulhosa da minha compra que a senti como uma passagem iniciática. No início, fazia questão de ouvir Big Science religiosamente da primeira à última faixa, talvez intuindo uma narrativa (que existe) ou simplesmente por estar fascinada com a música e as histórias (Big Science é uma coleção de histórias que Anderson foi recolhendo/criando em viagem pela América durante os anos 70). Acompanhava os uivos de lobo do início de “Big Science”, dançava ao som de “Sweaters” (Laurie Anderson diz, e bem, que devia haver mais canções sobre desapaixonar-se), tocava marimba imaginária em “Let X=X”.

Sabia as letras e as inflexões de voz de cor, especialmente em “Walking and Falling”, que, penso agora, me ajudou a levantar-me em cada tropeção da vida, porque percebi, com a voz serena de Laurie Anderson, que é possível andar e cair ao mesmo tempo (não fazia ideia, até à recente sessão no Twitter, que a canção foi escrita para a coreógrafa Trisha Brown, uma das criadoras do movimento de dança pós moderno…). Essa e “Born, Never Asked”, logo a seguir, constituíram então uma espécie de unidade de auto-ajuda que me fazia sentir que era comigo que Laurie Anderson falava quando dizia “you were born, and so are free so happy birthday!” A música pode fazer coisas extraordinárias por nós. Na verdade, a música salva, mesmo quando o assunto é seriamente fraturante, como é o caso.

Laurie Anderson

"Big Science" foi musicalmente revolucionário, literária e politicamente significativo. Feminista também, porque Laurie Anderson está na capa, no centro de tudo, com música verdadeiramente nova

Corbis/VCG via Getty Images

Segundo Laurie Anderson, Big Science é a primeira peça do puzzle que se tornou na segunda parte de United States United States I–IV (Transportation, Politics, Money, Love), a sua obra prima conceptual. É, obviamente, um disco sobre a América naquele momento da história, finais de 70, inícios de 80, mas também agora. Embora com outros factos, a situação no século XXI, ou não é muito diferente, ou está em continuidade com o passado recente e continua a reclamar reflexão e preocupação. Laurie Anderson até já revelou estar a pensar numa nova versão de “O Superman” sobre a indústria farmacêutica, chamada “Big Pharma”. Esta reedição, além de preencher um vazio (a última em vinil tinha acontecido há 30 anos, Big Science tornou-se uma raridade muito cobiçada), é também pertinente de um ponto de vista sociológico, além de artístico.

O álbum de estreia de Laurie Anderson faz parte da lista de clássicos do século XX e tem múltiplas dissecações, mas continua vivo e aberto a análise. 40 anos depois, é mais fácil perceber toda a sua complexidade e interpretá-lo à luz do presente como um disco quase profético, musicalmente revolucionário, literária e politicamente significativo. Feminista também, porque Laurie Anderson está na capa, no centro de tudo, com música verdadeiramente nova, eletrónica, vinda dos confins desconhecidos do futuro para nos alertar. Em 1988, quando Laurie Anderson passou pela primeira vez por Lisboa, no Fórum Picoas, lá estava eu, acabada de entrar na Faculdade para estudar jornalismo, de blazer vestido e cabelo espetado, a absorver o momento e a informação, como se tivesse ainda 12 anos, feliz por fazer parte e compreender a importância dela e do seu trabalho, antecipando o futuro em que queria ajudar a divulgar a música dela e de outro(a)s como ela.

Como se percebe, tenho grande orgulho no meu primeiro disco. Se sou uma pessoa diferente por ter sido Big Science? Provavelmente sou. Ainda bem.

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