O amor está sempre a ser oprimido. Mas o amor de uma mulher por um homem, de uma mulher pela sogra, de uma mulher pelos filhos, de uma filha pelo pai, de uma irmã por um irmão, encontra sempre fendas por onde se enfiar. O segundo livro da trilogia de Leïla Slimani sobre a família de Mathilde e Amine, ela francesa da Álsácia e ele marroquino, que neste volume são vinte anos mais velhos e são donos de uma quinta próspera, retrata dois mundos em transformação: Marrocos e a questão da independência; e França a lidar com o Maio de ’68. Os homens estão lá, na história, mas como contraponto. Vejam Como Dançamos é um livro sobre mulheres e as gavetas nas quais o ser e o corpo feminino estão sempre a ser arrumados.
Em O País dos Outros, Mathilde é uma jovem alsaciana que, no final da II Guerra Mundial, se apaixona por um oficial marroquino que combate no exército francês. Casam e Amine decide que vão viver para Marrocos, recuperar uma quinta herdada pelo pai na região de Meknès. Além da dureza da terra, Mathilde terá de lidar com a dureza de uma sociedade conservadora. Já em Vejam Como Dançamos, situamos Mathilde e Amine ainda em Marrocos, vinte anos mais tarde. Os filhos estão já crescidos, Aïcha foi estudar medicina para França e Selim é um adolescente pouco estudioso, muito apegado à tia, atormentada, Selma. Aïcha vai apaixonar-se e casar com Mehdi.
Em entrevista, Leïla Slimani, de 41 anos, fala com tal clareza e espontaneidade sobre os assuntos, como a sexualidade, o envelhecimento, o corpo, o feminismo, o colonialismo, o racismo, que os dota de uma carga indelével. Da mesma forma como, no seu discurso, deambula entre os sujeitos da história e os sujeitos que são ela própria e a sua família, lembrando-nos de que somos todos parte do mesmo pó da História.
Que formas é que o amor encontra para se manifestar, neste segundo volume da trilogia? De que modo sobrevive às opressões?
Acho que é a primeira vez, nos meus romances, em que lido realmente com o amor, por causa da história de Aïcha e Mehdi. Entre Amine e Mathilde houve uma paixão, mas houve também muita violência e brutalidade. Não diria que sou uma pessoa muito romântica. Para mim, existe uma espécie de utopia no amor. Quando temos 15 ou 16 anos, especialmente quando para as mulheres, a sociedade, os filmes, fazem acreditar que um dia encontraremos o amor, algo enorme, e a vida será linda no dia em que aparecer o príncipe encantado. Nunca acreditei nisso. Sempre tive a certeza de que o amor é lindo, mas o amor é difícil. Há também muita desilusão, muito sacrifício, muito compromisso. O amor que me faz sonhar, o amor em que acredito, é o amor que perdura. Penso que o amor é o que fica depois de muitas lutas, muitos mal-entendidos. Quando aceitamos que não vai ser um conto de fadas, que não vai ser um filme de Hollywood, é outra coisa, é duas pessoas que decidem que talvez venham a fazer algo juntas na vida. E não é só o amor entre um homem e uma mulher, um homem e um homem, uma mulher e uma mulher, é também uma amizade, o amor que se tem pelos filhos. Há uma multiplicidade de tipos de amor. Enquanto escritora, e enquanto pessoa, o que me interessa é a complexidade deste sentimento. Às vezes, amamos alguém e queremos magoá-la, queremos fazer-lhe mal. Especialmente enquanto mulher, quero mostrar que o amor não é só coisas bonitas e borboletas e flores. O amor pode ser muito cruel, o amor pode ser muito injusto, o amor pode ser muito violento.
Está a descrever a relação de Mathilde e Amine. Isso é amor ou é uma máscara de amor?
Acho que é mesmo amor, amor verdadeiro. Mesmo que não o seja o tempo todo. Uma vezes ela odeia-o, outras vezes ele odeia-a. No início, é uma paixão, mais do que amor. Mas depois, quando ela decide regressar ao seu país – quando está em França –, está a questionar-se se regressará ou não. De certa forma, toma a decisão de dar uma nova oportunidade ao casal, de dar uma nova oportunidade à família. Mathilde não ama apenas Amine, ama a mãe de Amine (toma conta dela), ama a irmã, ama o país. É um pacote. Ela aceita o amor e os sentimentos que tem por tudo aquilo.
No início do primeiro livro, a jovem Mathilde era uma pessoa cheia de paixão. À medida que envelhece, ela faz as pazes com a contenção? Torna-se numa pessoa mais triste.
Sim. E isso obcecou-me. Acontece a muitas pessoas. Quando nos tornamos adultas, quando ficamos mais velhas, como eu agora, que tenho mais de 40, não somos a mesma mulher de quando tínhamos 20. Lembro-me da rapariga que era aos 20: era apaixonada por tudo, tinha opinião sobre tudo, tinha discussões, “não é assim, é assado”. Agora já não sou assim. Agora sei que a vida é complicada, que as decisões são difíceis de tomar. Quando tinha 20, julgava as pessoas: “porque é que está a fazer isto?” Agora, sou mais indulgente. Agora, entendo que por vezes tomamos uma decisão porque não temos escolha. Tornar-se adulto não é fácil. Há muita desilusão. E aos 40 anos sou mais burguesa, estou mais cansada, sou mais ansiosa. E estou também mais aborrecida. Não há a mesma paixão.
É apenas uma questão de conforto?
Acho que o conforto também mata algo. Quando te tornas burguesa e possuis coisas, és obcecada por coisas materiais, isso mata algo em ti. Mata uma certa espontaneidade, mata uma certa liberdade: a possibilidade de dizer “pego nas minhas coisas e vou”. Quando tens muitas coisas, quando tens uma quinta, quando tens dinheiro, como Mathilde e Amine, ela está obcecada com o que as pessoas vão pensar sobre ela. Ela passou a ter um certo estatuto social. Acho que tudo isto mata algo em nós.
Com este livro, também nos apercebemos de que, apesar de serem um cliché, as vidas de muitas destas personagens ainda conseguem surpreender-nos.
Absolutamente. Talvez porque sejamos pessoas com esperança. Temos sempre esperança de que vá ser diferente, temos sempre esperança de que a História não esteja escrita, de que tenhamos a liberdade de escrever algo mais. No início, quando conhecemos Mathilde, ela é tão apaixonada e diferente que não pensamos ser o tipo de mulher que vá ter uma vida cliché. Mas, naquela altura, especialmente nos anos 60, uma mulher com 40 ou 50 não era como agora. Ela já era considerada velha. As pessoas consideravam que a vida dela já tinha passado. Já tinha tido filhos. E os homens, naquela altura… era usual que um homem com 50 anos tivesse filhos, tivesse uma mulher velha e começasse a caçar mulheres de 20, 25 anos. Era um facto, na geração do meu avô. Era sempre assim. Em todas as fotos que tenho dos meus avós, a minha avó parece mais velha do que o meu avô. Tinha uma vida mais difícil e a imagem de uma mulher de 40 ou 50 era a imagem de uma velha. Já o meu avô era o oposto: tinha dinheiro, tinha poder, tinha muitas mulheres que queriam ter uma relação com ele. Ninguém se interessava por uma mulher como a minha avó. É muito triste e injusto.
Por outro lado, há a Selma, irmã de Amine, que não se conformou com a vida que lhe destinaram. De onde vem a inspiração para esta personagem?
Na minha família, tinha muitas figuras femininas como esta. Ao mesmo tempo, partiram-me o coração, porque o preço dessa liberdade foi muito alto. Selma tinha uma vida que era uma pouco marginal, uma mulher que não era casada, que gostava de sair e ir dançar e fumar, dizer o que pensava. Os homens gostam deste tipo de mulheres, mas ao mesmo tempo julgam-nas muito. Penso que, no livro, Selma paga um preço bem alto: é casada e não quer estar casada, tem uma criança que não quer. Tem uma vida muito, muito dura. Quando fui para Marrocos escrever o meu livro Sex and Lies – True Stories of Women’s Intimate Lives in the Arab World [Sexo e Mentiras – Histórias Verdadeiras da Vida Íntima das Mulheres no Mundo Árabe], em que entrevistei muitas marroquinas acerca da sua vida sexual, lembro-me de que uma rapariga me disse: “sim, não sou casada, tenho relações sexuais com homens, mas arrependo-me. Se pudesse voltar atrás, escolheria não ser livre”. Nunca me esqueci desta frase, foi muito violenta. A minha primeira reação foi julgá-la, “como é que podes dizer uma coisa dessas?”. Mas agora entendo o que ela quer dizer. É muito fácil dizer “eu quero ser livre”, mas a verdade é que, quando és mesmo livre… muita gente ama mais a segurança que a liberdade, ama mais o dinheiro que a liberdade, ama mais o conforto que a liberdade. Não conheço muitas pessoas que amem apenas a liberdade.
Existe, na verdade, alguém?
Existe, na verdade, alguém que sacrificasse segurança, dinheiro, conforto, pela liberdade? Isso era algo que queria mostrar no livro, de que é muito fácil julgar, de ter o nosso ponto-de-vista. Mas para aquelas mulheres que escolhem ser livres o preço que têm a pagar é muito alto. E isto é o que a Selma encarna – a escolha das mulheres em serem livres. E uma mulher quando escolhe ser livre, paga um preço. A sociedade diz-lhe: “OK, queres ser livre? Vou dizer-te exatamente como podes ser livre”.
E não há volta. Fica-se com uma marca e pronto.
Era exatamente o que eu ia dizer. Fica-se marcada. As mulheres estão sempre engavetadas: a mulher casada, a mulher livre, a mãe. E tens de te manter engavetada.
Não escreve de forma púdica sobre a sexualidade das mulheres. Como é que sobrevivemos, sendo animais – e descreve esse nosso lado tão bem –, a engavetar o sexo?
Quando construo a minha personagem, quando começo a escrever, nunca começo com a psicologia. Não me interessa a psicologia, no início. Começo pelo corpo. Como é o corpo dela? É alta, pequena, gorda, magra? Come muito? Onde é que dói, como é que faz sexo? E só depois é que a psicologia surge – com o corpo. Mas começo sempre com o corpo. É a coisa mais importante. Para Mathilde, a sexualidade é muito importante, mas ela é também uma mulher que neste segundo livro tem 45 anos. Está casada há 20. A sexualidade não é a mesma quando se é casada há 20 anos. Há esta cena em que Amine decide ir ao quarto dela na noite antes do casamento, ela tem sexo com ele e pensa em muitas coisas: pensa na boda, no que vai vestir na manhã seguinte. Não há isso da paixão e do abandono. Ela pensa: “está feito e amanhã ele vai estar bem-disposto”. Acho que muitas mulheres, nesta idade, sabem que podem usar o sexo de uma forma pragmática: de manipular um pouco os homens. Têm de suportá-lo, porque os homens por vezes também forçam. Mas também usam isso para ter um certo poder. Não é um poder real, mas é um certo poder.
Mas a personagem Selma é diferente…
Com Selma, é muito diferente. Selma é só sensualidade. Esta mulher é muito bela e adora ter sexo. É diferente das outras mulheres. Tem prazer com sexo. Ela sente que até pode dizer a um homem do que gosta. E, quando o faz, o homem fica muito surpreendido e diz-lhe que não tem de o dizer. E ela percebe que, até na cama, há esta dominação dos homens sobre as mulheres, de que as mulheres não têm o mesmo direito ao prazer que os homens. Ela tem de tê-lo secretamente ou dizer ao homem “obrigada, deste-mo”. Por isso, para mim, é muito natural falar sobre sexo, falar sobre o corpo, porque é das primeiras coisas que me ocorrem quando escrevo. Quando tinha 12, 13 anos, não tinha teorias acerca de ser mulher. Não tinha lido livros feministas, tudo isto veio depois. Foi ter o período, foi perceber que podia ter um filho, foi saber que alguém iria entrar em mim – pela penetração. Tinha sempre a minha mãe a dizer-me: “sabes que podes ser violada, podes ser atacada”. Não tens isso com os rapazes. Sempre quis escrever sobre isto, sobre o que é crescer com esta obsessão, de que algo sai de ti – um bebé, sangue – e muitas coisas entram em ti, quer tu as queiras ou não.
O que é que descobriu acerca de si mesma enquanto mulher, ao escrever estes dois livros?
Descobri a multiplicidade da sexualidade feminina. Quando era mais nova, em todas as revistas femininas, como a Elle, a Marie Claire, em todos filmes, tinha a sensação de que todas as mulheres esperam pelo mesmo, querem o mesmo – de que são românticas, carinhosas, querem velas, bombons e música. Descobri que isto é absolutamente mentira. Há mulheres que gostam de violência, há mulheres que gostam de ser objetificadas, há mulheres que não gostam de sexo. E isso também muda com a vida. Há uma espécie de mentira. Hoje é muito cool dizer que se tem a mesma sexualidade aos 50, aos 60, aos 70. Não é verdade. E não quer dizer que não seja bom aos 60 ou aos 70, mas não é o mesmo. O que por vezes é interessante e comovente é que as pessoas têm um sentido de orgulho no que toca a sexualidade. Querem dizer: “eu tenho uma boa vida sexual”. As pessoas nunca admitem que por vezes é má ou que não estão satisfeitas. Há uma pressão em relação às mulheres. E em relação aos homens também.
A piscina, no livro, funciona como um símbolo, não só de riqueza material como também de exibição do corpo feminino. Mathilde transformou a ansiedade em provocação?
Acho que ela tem um certo desejo de vingança. Primeiro que tudo, ela é muito humilhada pelo facto de ter trabalhado imenso na quinta e o marido dizer-lhe sempre “o dinheiro é meu”, “sou eu que ganho o dinheiro; por isso, se quiseres gastá-lo, tens de me pedir primeiro”. Acho que nunca nos devemos esquecer de quão humilhante é para muitas mulheres terem de pedir todos os dias dinheiro aos maridos, “podes dar-me dinheiro para ir ao supermercado?”. Enquanto criança, testemunhei muito isso e sempre prometi a mim própria que nunca pediria um euro que fosse para comprar algo, e que compraria o que me apetecesse – com o meu dinheiro, que eu ganhei. Era a obsessão da minha mãe: “tens de estudar, tens de estudar, para que nunca sejas dependente de um homem”. Esta é a primeira humilhação de Mathilde. A segunda humilhação é que ela sabe que ele tem imensos casos amorosos. Sabe que ele terá casos com mulheres mais novas, mais bonitas, com um corpo melhor. Para ela, a água é muitos símbolos. Primeiro, a ideia de ter uma piscina é a forma que ela tem de dizer “sou uma burguesa”, “sou como as outras burguesas que estão a construir piscinas nas suas casas, vou mostrar que também consegui”. É um sinal de burguesismo, de gentrificação. Vemos hoje tantas piscinas em Lisboa e perguntamos porque é que estão a construir todas essas piscinas. É muito estranho, principalmente numa altura em que não há água. Num país como Marrocos, numa região como Meknès onde não há água, é chocante para a população, em que as mulheres têm de andar duas horas para ir buscar água, ver esta mulher, da Alsácia, a exibir o seu corpo e a nadar nesta água, que é rara. A piscina, como disse, é um símbolo do facto de estarem agora a viver numa bolha, numa bolha burguesa. Separam-se da multidão, dos trabalhores da quinta. Agora, são os donos.
Viu-se retratada, de alguma forma, na filha, Aïcha? Pelo facto de ela ter saído de Marrocos para ir estudar em França.
Aïcha é inspirada na minha mãe. Por isso, para mim, Aïcha está muito relacionada com a minha mãe. Mas claro que partilho imensas coisas com ela: partilho o cabelo, partilho o facto de ela ter emigrado para estudar, mas também porque – estou agora a escrever a terceira parte da trilogia, em que vou falar sobre a minha geração e de como me fui embora – vejo todas as diferenças: chegar a França nos anos 60 não é a mesma coisa que chegar no final dos 90s. Houve aspetos que foram melhores e houve aspetos que foram piores. As pessoas eram muito racistas mas, ao mesmo tempo, não havia muita gente marroquina. A minha mãe dizia que as pessoas olhavam para ela e nem sabiam quem é que ela era, de onde vinha. Foi muito difícil para a minha mãe. Para mim foi mais fácil, as pessoas conheciam Marrocos. Houve racismo, claro. Mas acho que foi menos violento do que nos anos 60, para a minha mãe. Por isso, sim, relaciono-me com ela, mas é mais: comparo-me com ela.
Que diferentes formas é que o racismo tomou, desde então?
Li um livro muito interessante acerca da História do racismo ao longo dos tempos. O racismo tem maneiras diferentes de se exprimir, tem diferentes formas. Mas há algo de universal nele: é que temos medo de pessoas que são diferentes de nós. Há, no entanto, diferentes tipos de racismo: durante a colonização, pessoas do mundo árabe iam para África e diziam “temos de os civilizar”, “essas pobres criaturas, são estúpidas, são inferiores, vamos ajudá-los”. Agora, o racismo é muito diferente. Agora, tens pessoas a chegar à Europa e a Europa a dizer “não queremos que eles nos influenciem, que se misturem connosco”, “vamos ser substituídos”. Agora, há esta ideia de substituição. Há 50 anos, havia a ideia de eles substituírem os outros. A expressão do racismo mudou, a forma como justificamos o racismo mudou, mas o racismo esteve sempre lá. Como sou otimista, espero que desapareça, talvez venha a haver menos e menos racismo. Vejo hoje, por exemplo, os meus filhos, ou a geração dos meus filhos: têm uma mente mais aberta do que a minha geração. Por isso, tenho alguma esperança.
Fala acerca de dois mundos em mudança, o marroquino com a independência e o francês com o Maio de ’68. Como é que conseguiu afunilar tanta informação?
Honestamente, não sei. Agora que estou a começar o terceiro livro, pergunto-me como consegui fazer o segundo. Sinto que seria completamente incapaz de voltar a escrevê-lo. Não sou propriamente o tipo de escritora que possa falar sobre as suas técnicas, porque não tenho técnicas, não tenho um plano. Trabalho no escuro. Às vezes, quando chego ao fim, pergunto-me como é que o escrevi, como é que foi possível. É como se houvesse outra pessoa a viver dentro de mim. Quando estou muito focada…. O livro está escrito, mas não sei como o escrevi. Ainda é muito misterioso para mim. Espero que seja sempre assim. Acho que no dia em que souber como fazê-lo, deixa de ser interessante fazê-lo.