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A Rainha Isabel II resumiu em tempos grande parte do seu poder: “Para que acreditem em mim, tenho de ser vista.” A frase traduz parte do poder de um monarca no Reino Unido: o poder de influência, de ter gravitas, de acumular carinho popular. Mas não encerra todas as funções de um Rei ou Rainha — afinal, questões como os encontros com o primeiro-ministro, a aprovação de legislação e a nomeação de um chefe de governo (que deverá acontecer ainda este ano na sequência das eleições legislativas) podem decorrer em privado.
Com a notícia de que o Rei Carlos III foi diagnosticado com um cancro, revelada esta segunda-feira, tornou-se evidente que a monarquia britânica deixará em breve de contar com o trunfo mediático. “Isso terá de ser resolvido em breve”, avisa ao Observador o constitucionalista veterano Bob Morris. “Quanto mais tempo o tratamento durar, menos o iremos ver.”
“Se Boris Johnson tivesse recusado sair do Nº10, era a Rainha quem o ia tirar de lá”
Nada que afete, contudo, os principais poderes do Rei no que toca à gestão de Estado e política do país, nota o especialista no funcionamento político da monarquia da Unidade Constitucional da University College of London: “Acho que ele irá gerir isto bem. Não há sinais de que irá ser hospitalizado e está perfeitamente capaz de assumir responsabilidades como a de nomear o próximo primeiro-ministro”.
Até porque, para já, não há quaisquer sinais de que Carlos III tencione nomear Conselheiros de Estado — as figuras previstas constitucionalmente para levarem a cabo as tarefas do monarca quando este não está capaz de as executar. E, muito menos, de que possa estar para breve um cenário como a nomeação do príncipe William como regente.
Reuniões com o primeiro-ministro asseguradas, viagens à Commonwealth não
Esta segunda-feira, o Palácio de Buckingham anunciou que, perante o atual estado de saúde do Rei, Carlos III irá evitar assumir compromissos em público, mas manterá as suas restantes funções.
“Muito do seu trabalho privado vai continuar”, assegurou o editor de Política da BBC Chris Mason, notando que o Rei continuará a receber, por exemplo, a “Caixa Vermelha” — o recipiente que contém toda a documentação oficial enviada pelo governo.
Na prática, nenhuma das funções constitucionais do monarca está em risco. Os encontros semanais com o primeiro-ministro, a nomeação de ministros e a assinatura necessária para promulgar leis decorrerão como habitual.
O que mudará é, essencialmente, a forma de exercer essas funções. Será provavelmente um regresso aos hábitos adotados durante a pandemia de Covid-19, com Carlos III a fazer várias das reuniões por telefone ou vídeo — como já foi anunciado que acontecerá esta semana com o primeiro-ministro Rishi Sunak. As funções públicas serão assumidas por outros membros da Família Real, em concreto a Rainha Camila, o príncipe William (filho) e a princesa Ana (irmã).
Uma das incógnitas neste momento, contudo, é a de se alguma destas figuras irá substituir o Rei nas viagens ao estrangeiro que estão marcadas para este ano e que incluem visitas a países da Commonwealth como o Canadá e a Austrália.
Essa é uma questão que o constitucionalista Bob Morris sublinha ser particularmente importante para a monarquia, já que há muito se especula sobre se a morte de Isabel II poderia ser um pontapé de partida para que alguns destes Estados abdicassem da figura do monarca britânico como chefe de Estado. “O último país a falar nisso foram as Barbados, mas não tomaram nenhum passo nesse sentido para já”, nota. Outros, como a Austrália, estão a discutir o tema, “mas não decidiram que figura querem no lugar do Rei, por isso o assunto mantém-se controverso”.
E depois de Isabel II? Adivinham-se tempos de mudança para a Commonwealth
O facto de o Rei não ter ainda visitado estes países pode, por isso, ter influência no debate. Mas pode até ter o efeito contrário, considera Morris: “A doença de Carlos III pode deixá-los mais relutantes em avançar — não se pontapeia um homem quando este já está no chão.”
Uma das principais consequências do anúncio relativo ao estado de saúde do Rei foi a surpresa pela divulgação do diagnóstico de cancro, sem segredos ou com eufemismos. Afinal, esse tem sido o hábito do Palácio de Buckingham ao longo de séculos. Jorge II, por exemplo, chegou a estar doente e “a levantar-se da cama, a respirar mal com dores de garganta e uma febre alta, para se vestir e ir a uma reunião e, cinco minutos depois, despir-se e voltar para a cama”, recordou um membro do Palácio, de acordo com o The Telegraph. Saber-se que o Rei estava doente poderia “perturbar a mente dos súbditos, beliscar o seu crédito público e fazer diminuir o respeito que lhe era devido”.
Mais emblemático é o caso de Jorge VI (avô de Carlos III): operado em setembro de 1951, altura em que lhe foi retirado um pulmão, acabaria por morrer menos de cinco meses depois. O diagnóstico de cancro nunca foi oficialmente revelado em público e nem sequer ao próprio.
O contraste com a situação de Carlos III é justificada por alguns pela nova estratégia de comunicação adoptada pelo atual monarca — que subiu ao trono há apenas 18 meses, depois da morte de Isabel II. “Eles desejam um estilo diferente e creio que as pessoas à volta do Rei estão a planear esta mudança de estilo há já muito tempo”, notou Simon Lewis, antigo responsável de comunicação do Palácio, à BBC.
Bob Morris, porém, tem uma opinião diferente. “À primeira vista, parece isso”, reconhece. “Mas imagine que trabalha no Palácio: tem uma situação em que um homem de 75 anos entra no hospital para lidar com um problema benigno da próstata e sai de lá com um diagnóstico de cancro; consegue imaginar fazer outra coisa que não ser franco?” O receio de “fugas de informação” pode ter pesado na decisão, nota o constitucionalista. Mas não foram divulgados quaisquer outros detalhes, como o tipo de cancro que é e em que fase está. “Pode parecer que houve mudança de estilo de comunicação, mas, por outro lado, eles deram o mínimo de informação possível.”
Nomeação de um regente é possível. Mas William “não quer olhar prematuramente para um cenário desses”
Apesar de Carlos III não estar hospitalizado, a falta de informação concreta sobre o seu estado de saúde levanta a questão: se ficar incapacitado em algum momento ou se a sua condição piorar, quem assume as suas funções?
Para responder a essa pergunta, é preciso olhar para as leis britânicas. Tudo está esclarecido no Ato de Regência de 1937, criado no início do reinado de Jorge VI, que queria evitar uma situação como a do seu pai: Jorge V estaria tão incapacitado nos últimos dias de vida que o médico real teve de lhe segurar a mão para assinar ‘GR’ (George Regina) num documento oficial.
A lei atual prevê que, em estado de incapacidade do Rei, dois Conselheiros de Estado assumam as suas funções. A lei diz que esses Conselheiros podem ser a Rainha e as quatro pessoas seguintes na linha de sucessão com mais de 21 anos. Neste caso, isso significa Camila, o príncipe William, o príncipe André e a princesa Beatriz.
Em novembro do ano passado, contudo, Carlos III pediu uma emenda ao texto para que os seus outros irmãos (a princesa Ana e o príncipe Eduardo) fossem adicionados à lista, já que tanto Harry, como André e Beatriz não estão neste momento em plenas funções na Casa Real. É de esperar que a princesa Ana — a quem já chamaram “o melhor Rei que nunca tivemos” e que é muito próxima de Carlos III — já veja muitas das suas funções públicas reforçadas com o maior recato do irmão.
Bob Morris nota, contudo, que mesmo que venham a ser nomeados Conselheiros de Estado, isso não significa que o estado de incapacidade de Carlos III seja irreversível. “No último reinado de Isabel II, isto aconteceu mais de 100 vezes”, diz, a maioria devido a viagens da Rainha ao estrangeiro — mas uma das vezes por razões de saúde, quando Carlos e William presidiram à abertura do Parlamento de 2022 devido aos “problemas de mobilidade” de Isabel II.
Os Conselheiros podem levar a cabo todas as funções do Rei, com exceção da dissolução do Parlamento (a não ser que seja por ordem do monarca) e da nomeação de pares do Reino. Há diferentes interpretações legais sobre se podem ou não nomear um novo primeiro-ministro. A decisão de nomear os Conselheiros é inteiramente da responsabilidade do Rei: “Toda a legislação diz ‘O monarca decidiu delegar as suas funções’”, ilustrou à CBC o especialista constitucional Craig Prescott.
Menos provável é um cenário em que o Rei esteja tão incapacitado que à sua volta seja feito um pedido para nomear um regente. A lei britânica prevê que o pedido seja sustentado em pareceres médicos e que conte com o acordo do cônjuge e de outras quatro figuras de Estado: o presidente da Câmara dos Comuns, cargo equivalente à nossa presidência do Supremo Tribunal, o ministro da Justiça e o Master of the Rolls (responsável máximo da Justiça Cível).
A acontecer, a regência caberia muito provavelmente ao herdeiro da Coroa, o príncipe William. Este já irá assumir algumas das funções do pai, mas especialistas como Bob Morris desconfiam que não terá grande vontade de que “pareça que está a saltar para substituir o Rei”. “Uma regência não é fácil. O Rei teria de estar tão incapacitado que não conseguiria exercer os seus deveres e essa é uma bitola muito elevada. Não creio que William queira olhar prematuramente para um cenário desses”, nota o constitucionalista. E, muito provavelmente, nem sequer os britânicos, já que em situações de doença “há muita simpatia dirigida para o monarca”.
A tudo isso soma-se o facto de a última regência no país ter sido de má memória. Com uma saúde frágil — que alguns identificam como porfiria, outros como doença mental (provavelmente doença bipolar) —, o Rei Jorge III acabou por ficar totalmente incapacitado nos últimos nove anos do seu reinado.
A alternativa durante esse período foi a regência do seu filho, que acabaria por ficar conhecido por Jorge IV e pelos seus excessos em termos de mulheres, álcool, ópio e gastos financeiros. Numa das suas biografias publicada quando foi coroado, recorda a BBC, a sentença sobre o príncipe regente era tudo menos positiva: “Contribuiu para a desmoralização da sociedade mais do que qualquer príncipe registado nas páginas da História.”