Enviado especial a Madrid, Espanha
“Eu falo pelos cotovelos, aviso já.” A advertência é feita por Ana, 49 anos e analista de um banco espanhol, logo ao início da conversa. Sentada à mesa da sala da sua casa em Las Rozas, uma das zonas com o PIB per capita mais alto em toda a Espanha, Ana tem ao seu lado o filho, Jaime, de 17 anos. O jovem fala com uma voz grave e recolhida, numa postura tímida — mas, muitas vezes, é ele quem fala no fim, arrumando o assunto.
Mas que assunto? O tema que aqui nos traz são as eleições gerais de Espanha deste domingo — e, mais concreto, a divisão (alguns diriam saudável) da direita espanhola, que, ao invés do que se passava até há poucos anos, tem vários partidos na calha para se tornarem forças incontornáveis da aritmética política deste país: o Ciudadanos, o Partido Popular (PP) e o Vox.
Ana vai votar no PP, o seu partido de sempre. “O meu coração, o meu corpo, pede que me radicalize mais. Mas a cabeça diz-me para ir com mais calma e votar no PP”, diz. Já o filho, Jaime, roga todas as pragas possíveis pelo facto de não poder votar nestas eleições. “Faço 18 anos em outubro…”, suspira. “Por seis meses…”, torna a suspirar. O desalento é ainda maior quando vê que os colegas de turma que fazem anos uns meses antes já vão votar. “Têm sorte”, comenta. Se pudesse votar, porém, Jaime fá-lo-ia no Vox — com uma ou duas hesitações, mas certezas de sobra.
Sentámo-nos à mesa com Ana e Jaime na manhã deste sábado, dia de reflexão. É uma conversa que vale por si só, mas que, certamente, não estará assim tão distante daquelas que outras famílias de direita estão a ter em Espanha: agora que este campo ideológico está aberto, para onde devem ir?
O que é ser uma família de direita? O catolicismo, antes de tudo
Comecemos pelo princípio: esta família assume-se como uma família de direita. “Sempre votei no PP, o meu marido também, e os valores que tento incutir aos meus filhos têm muito mais a ver com a direita do que com a esquerda”, assegura Ana. E se formos mais atrás na árvore geneológica, a direita continua a estar lá. “Sou neta de um general de divisão da época de Franco”, diz, falando do avô, que morreu há poucos anos. Esclarece que não é franquista — mas, de direita, “claro”.
De direita, “sim”, nascida numa família desafogada, “sim”. “Mas tudo o que eu o meu marido temos foi porque lutámos por isso. Quando nos casámos, não tínhamos um tostão. Fomos viver para aluguer, como tantos outros”, recorda. Tiveram dois filhos: uma rapariga hoje com 15, que ao longo da entrevista se reserva, com uma amiga, no outro lado da casa; e Jaime, com os tais 17 anos que o impedem de votar.
“Para mim, creio que o protótipo das famílias de direita seja o sermos católicos”, diz Jaime. “Mas outras coisas, também. É sermos de classe média, estudarmos num colégio que pode ser público, convencionado ou privado. No fundo, aqui também cabe alguma esquerda. Mas só a do PSOE, não pode ser uma mais radical ou trabalhadora, como o Podemos.”
Jaime estuda num colégio católico e Ana sublinha que é “católica praticante”. “Mas se os meus filhos um dia me disserem que não se querem casar pela igreja, por mim tudo bem”, diz.
Não vale a pena perguntar como reagiria se o filho votasse à esquerda. Afinal de contas, isso parece impossível. E é para aí que passamos.
Votar no Vox pela frontalidade…
Se pudesse, Jaime votaria no Vox. Não é que o diga com total certeza. Por exemplo: “Nas medidas sociais, vejo que estão muito preparados. Mas nos temas económicos nem tanto”. E mais: “Teria medo de que o meu voto acabasse por ser desperdiçado”. Mas, no final de contas, é para o verde quase florescente do Vox que pende, mais do que para o azul brando do PP.
Jaime já não se lembra de quando soube que o Vox existia — “já há alguns anos, certamente” — mas recorda-se perfeitamente que foi com as eleições regionais da Andaluzia, em que o Vox conquistou 11% dos votos e 12 deputados, tornando-se na chave para a formação do primeiro governo regional andaluz de direita, que lhes prestou mais atenção.
“Gosto de ver como falam claramente sobre o que importa falar”, diz. “Põem as coisas de forma clara e têm boas ideias, que fazem falta a Espanha.”
Por momentos, Ana parece só ter coisas boas para dizer do Vox.
Sobre o populismo que habitualmente se atribui ao partido de Santiago Abascal, a mãe admite que ele existe, mas como “resultado das ofensas que têm feito contra uma parte da população que estava calada”. Essas ofensas, diz, chegam ao “que são as raízes espanholas” e partem dos setores “liberalistas”.
“Eu não sou aficionada, nem vou a touradas. Mas é uma tradição espanhola. Se não queres ir, ninguém te obriga. Também ninguém te obriga a caçar, mas em Espanha há muita gente que precisa da caça para comer, há gente que vive daquilo”, diz. “A parte populista do Vox é uma defesa de tudo isto, não é um ataque.”
Pessoalmente, sobre Santiago Abascal, Ana confessa admiração. “Este senhor não entrou na política agora, já há 20 anos que aqui anda, sim?”, diz. “E começou a fazer política no País Basco, que é certamente o sítio mais perigoso para fazer política em todo o país. Ele, sim, sabe o que é estar sob ameaça da ETA desde pequeno.”
Para Ana, porém, Santiago Abascal é uma coisa e o Vox é outra. “Tal como o Ciudadanos, há uns sete ou oito anos, era um partido embrião, também o Vox o é hoje. Não têm equipa O que eu quero é que Espanha cresça como país e seja uma grande potência mundial, porque temos um grande país!”, diz.
Por isso, conclui: “O Vox ainda precisa de experiência e maturidade. Se Abascal tivesse ido ao debate, ia falar de touros e mais não sei o quê, mas o que eu quero é um país estável. Para ser uma grande potência mundial, precisamos de um governo e não de um homem que canta os amanhãs”.
Jaime, que até aqui ouvia a mãe sem interrompê-la, fá-lo calmamente. “Não me parece que andem a cantar os amanhãs, parece-me é que são realistas”, diz.
… e votar no PP pela experiência
Ana, que este domingo terá de arranjar tempo não só para ir à missa como para votar, tem o seu voto claro: será PP e a caneta não lhe vai tremer. Ainda assim, quando olha para o Vox, algo mexe com ela. “O meu coração, o meu corpo, pede que me radicalize mais”, diz. “Mas a cabeça diz-me para ir com mais calma e votar no PP.”
Esclarece, de imediato, porquê: “É um partido experiente, mas também sei que teve muita corrupção”. Em maio de 2018, o PP foi formalmente condenado no âmbito do caso Gürtel, por ter beneficiado de corrupção. Além disso, várias personalidades de topo do partido, como o ex-ministro da Economia e antigo vice-Presidente de Governo Rodrigo Rato, estão presas por crimes de corrupção.
Mas Ana, ao pensar nisto, logo olha para a esquerda e vê o mesmo: “Infelizmente, este país está inundado em corrupção e isso também aconteceu com o PSOE”. Como exemplo, fala do caso Filesa, que em que figuras do aparelho socialista foram condenadas por terem criado um esquema ilegal de financiamento da campanha eleitoral de 1989.
“Eu acredito na regeneração do PP”, diz, referindo-se à liderança de Pablo Casado, que sucedeu a Mariano Rajoy na cúpula do PP no verão de 2018. “A prova disso é que alguns dos que lá estavam saíram chateados. O Casado limpou o partido e fê-lo bem.”
Para Ana, é importante a experiência do PP. “Não podemos ter uns miúdos como deputados, gente que não sabe nada de nada, nem tem experiência”, assegura. “O PP e Pablo Casado estão muito mais preparados, de forma geral, do que o Vox e Santiago Abascal”, remata.
Também aqui, Jaime só fala no fim. “Não acho nada. O Santiago Abascal está mais preparado do que os outros quatro. Ele pode até não perceber tanto de leis como o Casado e esses, mas, mesmo assim, tem ótimas ideias”, diz.
Assunto novamente arrumado pelo filho, sem concórdia maternal à vista — mas também sem problema.
Podemos e a “sova” que vão apanhar nas eleições: “Oxalá”
O consenso logo chega quando o tema é o partido mais nos antípodas desta família: o Podemos.
Na turma de Jaime, entre os que já podem votar “há de quase tudo”. “Há quem goste mais do PSOE e do Ciudadanos, mas há muitos do PP. E uns tantos do Vox, também, cada vez mais”, diz. Do Podemos, não há ninguém. Porquê? “Porque é um colégio católico”, diz. O filho ri timidamente da resposta, a mãe solta uma gargalhada.
Ana nunca gostou do Podemos. O discurso confrontacional chocava-a e, além disso, embora não o sentisse até então, desde que o partido de Pablo Iglesias começou a discursar contra a “casta”, Ana sentiu-se como um alvo daquela retórica. “Para eles, eu sou casta. Mas é uma casta relativa, ‘tá? É que eu posso até viver numa das zonas mais ricas de Madrid, mas quem comprou um chalé em Galapagar, tem seis polícias à porta de casa e várias mulheres a tratar dos filhos deles não sou eu”, diz. “É o Pablo Iglesias!”
O Podemos de Pablo Iglesias perdeu María e Jorge — e pode perder quase tudo nas eleições
Ana sente que tem de fazer uma ressalva: “Eu não tenho problema em que eles tenham pessoas a ajudar a criar os filhos deles. Os meus filhos também tiveram uma ama. Ajudei uma imigrante do Paraguai sem documentos, deixei que ela ficasse cá em casa sempre que precisasse e tínhamos todos uma excelente relação”. A relação com aquela funcionária, garante, “não era de patrão e proletário, era de família”. Tanto que é madrinha da sua filha, realça.
Por isso, sublinha, não vê “mal nenhum” em que Pablo Iglesias e a sua companheira, a deputada do Podemos Irene Montero, tenham aquela casa e paguem a quem os ajuda a criar os filhos. “Mas se eu sou casta… então o que são eles?”, lança.
Jaime entra no tema, atirando: “Isto vai sair-lhes caros”. A mãe completa: “Ah, pois vai. A mim parece-me que vão levar uma sova amanhã”. E o filho remata, mal a mãe acaba a frase: “Oxalá”.
Franco, o homem que deixou “barragens bem boas” e que sai no exame de Jaime
Ana fica “louca”. É mesmo assim que fica quando ouve falar, mais uma vez, do tema da exumação de Franco e da Lei da Memória Histórica. “Por favor, o homem já está morto!”, diz. “Deixem o Paco em paz”, diz utilizando o diminutivo de Francisco, primeiro nome do ditador espanhol.
Quando Franco morreu, em 1975, Ana tinha três anos. “A única coisa de que me lembro de Franco foram os desfiles de quando ele morreu”, refere. Mais à frente, referindo-se à tentativa de golpe de Estado que, entre outros, o tenente-coronel da Guardia Civil Antonio Tejero tentou levar a cabo a 23 de fevereiro de 1981, Ana diz que a maior recordação que tem é que “nesse dia não houve colégio”. Ou seja: para Ana, o que lá vai, lá vai.
“Franco foi um senhor que, depois de termos saído de uma Guerra Civil que levou o país à ruína, conseguiu pegar nisto e levou as coisas para a frente. Claro que fez coisas más e a verdade é que, em ditadura, nenhum país é bom. Mas hoje nós já somos um país democrático. Para que é que, enquanto país, vamos estar a falar de algo como isto?”, atira.
Esta é, queixa-se, uma “obsessão” e um “complexo” da esquerda espanhola. “Mas quem somos nós agora para falar de Franco? O que resta dele? Para mim, resta um sistema elétrico perfeito e um conjunto de barragens que fazem muita falta ao país, porque temos falta de água. Claro que não me vou esquecer de que foi um ditador e que fazia o que queria. Mas, passados estes anos, fico com o que é bom: a eletricidade e as barragens, que são bem boas.”
Na aldeia do Vale dos Caídos, a exumação de Franco só tem uma resposta: “Deixem-me em paz”
Depois de ter prometido que procederia à exumação de Franco — tal como foi determinado numa votação no Congresso dos Deputados em 2017, ainda governava Mariano Rajoy —, o governo de Pedro Sánchez acabou por agendar os trabalhos para 10 de junho. Ou seja, o próximo governo terá de executar essa decisão. Mas com um truque: só se quiser. Se o PSOE ganhar as eleições e conseguir aliados para formar governo, é provável que o faça mais tarde ou mais cedo. Se a direita vence e sobe ao poder, é certo que vai deixar Franco no Vale dos Caídos.
E, para Jaime, é lá que ele deve ficar. Para se explicar, conta que até tem exame de História na segunda-feira, o dia a seguir às eleições. A matéria será “desde a República até à Transição”. Ou seja, os anos de Franco todos. E o que Jaime conclui do seu estudo é que o ditador espanhol fez “coisas bem e fez coisas mal”. Já o Vale dos Caídos, crê, “não é um monumento franquista”. “Tem uma basílica, tem um mosteiro, tem tantas coisas religiosas. Como pode ser político?”, pergunta.
Ana, já se percebeu, é contra a exumação de Franco do Vale dos Caídos — sítio aonde já foi com o marido e os filhos “muitas, muitas vezes”, uma vez que têm uma casa no Escorial. “No dia em que tirarem Franco do Vale dos Caídos e o meterem no cemitério de Almudena [o local escolhido pelo Governo de Pedro Sánchez para depositar os restos mortais do ditador], então vai haver uma fila de algumas 17 horas lá logo no primeiro dia”, garante Ana. “E tudo por causa de um homem: Pedro Sánchez.”
Jaime volta a falar, de novo para arrumar o assunto. “Nem sei porque é que o país anda a falar deste tema, sinceramente”, diz o jovem de 17 anos. “Temos problemas muito maiores para resolver em Espanha.”
Como por exemplo?
“O feminismo.”
Violência de género, ou as “loucas mentirosas”
Jaime chega a dizer que é feminista. “Mas não é este feminismo que agora defendem. É o feminismo que diz que o homem e a mulher são iguais. Não sou a favor do feminismo que quer priorizar as mulheres em vez do homem. Se o feminismo for igualdade, quero. Se for outra coisa, não quero”, diz.
Em mente, Jaime tem um dos aspetos mais quentes destas eleições, e também uma bandeira que o Vox levantou na sua subida meteórica: a questão da Lei da Violência de Género. Esta lei tipifica como crimes de violência de género todos os atos que sejam “impedimentos para [que] as mulheres possam atingir a cidadania plena, a autonomia e a liberdade”. Estes crimes podem ter quatro vertentes, segundo a lei: “Física, psicológica, sexual e económica”.
Esta lei resulta de um pacto de Estado, que foi aprovado em 2017 — e aprofunda outro, de 2004 — por todos partidos, à exceção do Podemos, que se absteve por acreditar que o diploma era brando, mas o Vox levou-o a debate nas eleições da Andaluzia e, agora, toma-o também como uma grande bandeira nas eleições gerais. E um dos pontos levantados pelo Vox é precisamente o mesmo que preocupa Jaime e Ana: as denúncias falsas.
Ainda antes de esta lei ter sido posta em prática, mas sobretudo depois de ter passado a ser aplicada, são vários os relatos de homens que acabam por ser detidos e obrigados a passar uma ou duas noites no calabouços da polícia — tudo quando, no final, se chega à conclusão de que são denúncias falsas. Um dos casos mais conhecidos é o de Marc Jover, homem que, em menos de dois anos, foi detido pelo menos sete vezes por alegadas denúncias falsas. Casos como este têm merecido a atenção dos setores mais conservadores de Espanha, mas, por outro lado, o Ministério Público afirmou que, entre 2009 e 2016, apenas 0,0075% das denúncias eram falsas: um total de 194 entre um universo total de 1.055.912 queixas.
Números à parte, Ana assume um tom sério quando fala neste tema — certamente aquele em que demonstra maior tensão. “Eu, nisto, enquanto mãe, estou ao lado de Santiago Abascal a 200%”, diz. “Tenho uma filha de 15 anos e vou buscá-la sempre que ela sai de casa, preocupo-me muito com ela e digo-lhe que tem de ter cuidado com uma série de coisas. Mas também tenho um filho de 17 anos. E o meu receio é que ele faça uma coisinha de nada e que, no dia em que uma desgraçada o denunciar, vá parar aos calabouços.”
Ao falar do assunto, Jaime repete um soundbite de santiago Abascal: “É preciso defender as gaj… as raparigas dos violadores loucos e é preciso proteger os rapazes das loucas mentirosas. Há muitos casos em que as mulheres mentem”.
Ana insiste com o filho: “Eu digo-lhe sempre, sempre, sempre, que tem de ter muito cuidado. Tem de ter todo o cuidado do mundo, não lhe vá acontecer alguma coisa. Ainda desgraça a vida dele”. Jaime, que ouve tudo, não sente necessidade de acrescentar mais nada. Nisto, estão os dois de acordo.