Sofia tinha 10 anos quando confessou à mãe o seu maior desejo. Fátima recorda-se bem desse dia. Era um domingo à tarde e tinha deixado Sofia sozinha em casa por alguns minutos, enquanto ia buscar o filho mais novo a casa de uns amigos. Quando regressou, nem vinte minutos depois, Sofia chorava convulsivamente. Depois de muita insistência, acabou por dizer: “Mãe, eu quero tanto ser rapaz”.
Foi neste momento que Fátima percebeu que tinha de fazer alguma coisa. Já não bastava achar que se tratava de uma fase, e não dar uma excessiva importância aos sinais que a filha lhe foi dando desde os cinco anos e que se prolongaram ao longo do tempo. E foram vários. Fátima não se esquece do sorriso de orelha à orelha quando foi com o pai ao barbeiro cortar o cabelo ‘à rapaz’. Vestir roupa de menina era impensável, tanto que assim que entrava numa loja de roupa, Sofia ia diretamente para a secção das roupas de rapazes. Nos desenhos, começou a desenhar-se a si própria como um rapaz e a dizer, ainda que em contexto de brincadeira, que se chamava Bruno.
O processo de transição de Sofia, que agora é Francisco, foi feito ao longo dos anos. Teve a primeira consulta com um sexólogo logo aos 10 anos, que foi acompanhando o seu desenvolvimento. “Lembro-me que quando lhe perguntei se tinha gostado e se tinham conversado, a resposta que ele me deu foi: ‘sim, mas só aos 16 anos é que vou poder fazer coisas'”, conta a mãe entre risos.
Francisco, contudo, não esperou até aos 16 anos para fazer ‘coisas’. Aos 14 anos, deixou definitivamente de ser Sofia e passou a apresentar-se como Francisco. As outras ‘coisas’, como os tratamentos hormonais, essas só começou efetivamente aos 16 anos. Francisco faz 17 ainda este ano.
Mas será que há uma idade ideal para uma criança transexual começar a fazer a transição? Isto é, começar a assumir um outro género que não aquele com que nasceu? O que devem os pais fazer quando o filho, ou filha, começa a pedir para ser chamado por outro nome, ou a querer vestir-se da forma oposta ao que é esperado do seu género?
Cedo ou tarde demais?
Atualmente, a legislação só permite uma mudança de nome a partir dos 18 anos e com um relatório médico que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género. Um cenário que pode vir a mudar, caso a proposta de Lei sobre a identidade de género, aprovada em Conselho de Ministros no passado mês de abril, seja aprovada — irá ser debatida na Assembleia da República esta terça-feira.
O documento, além de proibir a discriminação em função da identidade ou expressão de género, irá permitir às pessoas entre 16 e 18 anos pedir a mudança de sexo e de nome no registo civil “através dos representantes legais”, e sem ser necessário um relatório médico. O conservador terá de ter uma “audição presencial” com a pessoa que quiser proceder a esta alteração, de modo a “apurar o seu consentimento expresso e esclarecido”.
Mas isto não significa que as crianças não possam fazer uma transição social mais cedo. Isto é, começarem a ser tratados em casa, ou na escola, pelo nome que lhes é atribuído. Foi o que aconteceu com Sofia, que passou a ser Francisco.
Mudança de sexo e de nome próprio
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“As pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e 18 anos podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio através dos seus representantes legais, devendo o/a conservador/a proceder à respetiva audição presencial da pessoa cuja identidade de género não corresponda ao sexo atribuído à nascença, por forma a apurar o seu consentimento expresso e esclarecido, tendo em consideração os princípios da autonomia progressiva e do superior interesse da criança constantes na Convenção sobre os Direitos da Criança.”
Artigo 9.º e 12.º da Proposta de Lei sobre a identidade de género
Pedro Freitas, médico e sexólogo clínico que já acompanhou vários transexuais, admite uma mudança de nome “antes dos 18 anos”. “Aos 16 anos, toda a gente sabe o que é e o que quer. Com menos de 16 anos, é preciso fazê-lo com reservas e sem tomar passos irreversíveis que tirem a liberdade de escolha no futuro”, afirma o especialista ao Observador.
Ainda assim, o terapeuta não descarta totalmente esta possibilidade, especialmente se se tornar doloroso para o menor. “As crianças têm de fazer o seu desenvolvimento psico-sexual de forma saudável. Se essa criança quer ser tratada por outro nome e o facto de não acontecer ser fonte de angústia… porque não?”
O sexólogo, porém, defende que não existem “regras universais” nestas situações. “Os pais devem tentar perceber o que se passa e procurar ajuda profissional, se for caso disso.”
Para Pedro Freitas, não se pode falar de crianças transexuais, uma vez que elas “ainda não têm maturidade para estarem definidas”, por mais “convictas” que estejam. É necessário, continua, ter em conta “os melhores interesses” da criança e isso passa por não a “condicionar”. “O melhor interesse é preservá-la de qualquer rótulo, até ter idade para saber o que é. Se formos todos — pais, família, sociedade — atrás de tudo isto, podemos estar a condicioná-la.”
Conceitos
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Identidade de género: sentimento de ser do género feminino ou do género masculino independentemente da anatomia.
Expressão de género: diz respeito aos comportamentos, forma de vestir, forma de apresentação, aspeto físico, gostos e atitudes.
Sexo biológico: sexo cromossomático ou o sexo genital. Existem vários fatores que contribuem para a construção do sexo biológico: cromossomas (XY, XX, ou outras combinações), genitais (estruturas reprodutivas externas), gónadas (presença de testículos ou ovários), hormonas (testosterona, estrogénios), etc.
Transgénero: pessoa que não se comporta em conformidade com o que convencionalmente se espera do seu sexo biológico (uma pessoa travesti, por exemplo, é transgénero).
Transexual: pessoa cuja identidade de género difere do seu sexo biológico, isto é, uma pessoa de sexo biológico masculino que sente que sua identidade de género é feminina. Alguns transexuais desejam que o seu sexo biológico corresponda à sua identidade de género, mudando assim o seu corpo através de hormonas e/ou cirurgias.
AMPLOS
A verdade é que não é invulgar as crianças dizerem que gostavam de ser do sexo oposto, quererem ser chamadas por um nome diferente do sexo oposto, e até recusarem-se a vestir roupas que se coadunem com o género com que nasceram. Na maioria dos casos, é apenas uma fase. A WPATH (World Professional Association for Transgender Health), organização dedicada à saúde das pessoas transgénero, explica que a disforia de género pode manifestar-se a partir dos dois anos de idade, mas raramente se mantém até à idade adulta. Mas há casos em que isso não desaparece, tal como aconteceu com Francisco.
A psicóloga Ângela Vila-Real considera que estas situações devem ser analisadas “caso a caso”, mas os 16 anos são uma idade “razoável” para se fazer uma mudança de nome. “É uma idade em que já há o mínimo de organização que permita perceber algumas das consequências de mudar o nome e vestir de outra maneira”, explica a presidente da associação Identidade e Afetos, que dá apoio psicológico relativamente a questões da população LGBT e familiares.
Aos 12 anos, por exemplo, a criança está a entrar na puberdade e a “organização cognitiva ainda não está completa”: “A capacidade de prever o futuro começa aí, mas ainda não está terminada, portanto é muito difícil para as crianças perceberem as consequências”.
E dá um exemplo: “Quando uma criança de 12 anos diz que quer ser astronauta, nós dizemos que sim, mas não pensamos que ela mais tarde vai ser astronauta. São raros os casos em que se escolhe a profissão que se imaginou aos 12 anos, porque se vivem outras experiências. Se isto acontece com a profissão, porque não há de acontecer a nível da identidade, que é uma coisa mais íntima e mais subtil?”
A especialista reforça a ideia de Pedro Freitas, considerando que os casos de transexualidade nas crianças são “muito raros” e que, quando tal acontece, trata-se de uma “idade em que nada está fixado”, acrescentando que é importante perceber estes pedidos de mudança. “Há um conjunto de razões que podem dar origem a esse desejo. Pode ser, por exemplo, porque nasceu uma irmã ou um irmão e o bebé está a ter todas as atenções”, exemplifica a psicóloga.
Fátima assume que, quando surgiram os primeiros sinais, pensou que o facto de estar grávida do segundo filho — um rapaz — pudesse estar na origem dos pedidos de Sofia. E até ponderou que se tratasse de uma perturbação do foro psiquiátrico, uma vez que existem casos na família. “Devo dizer que, no dia em que percebi exatamente o que era, pensei: ‘Ah pronto, era só isto?'”, recorda, entre sorrisos.
É preciso perceber se estes pedidos têm por base algo “enraizado” ou “passageiro”, continua Ângela Vila-Real. Se se tratar de algo enraizado, as decisões devem ser tomadas “de acordo com o indivíduo e a par e passo do seu desenvolvimento”, mas se for temporário, a especialista considera que não “há vantagens” em tomar uma posição logo à partida.
“Já tive casos de indivíduos que, em criança, sonhavam acordar meninas no dia seguinte e hoje em dia não querem ser mulheres. Acho que vale a pena esperar para ver o que resulta do desenvolvimento”, explica a psicóloga.
No caso do vestuário, o caso pode ser mais complexo. “Suponhamos que o rapaz quer ir de vestido para a escola e é vítima de bullying… Acaba por ser pior. Se for uma coisa imperativa, se a criança não consegue ir de outra maneira, é preciso fazer um outro trabalho de contexto em casa e com a escola.”
A psicóloga lança ainda uma questão: “Claro que o indivíduo quer mudar e há de ter razões para isso, mas se o aceitasse tal como ele é num contexto em que a cultura não fosse tão binária [masculino e feminino], será que ele quereria mudar?”
“Esperar até aos 16 anos pode ser muito duro”
Já Margarida Faria, socióloga e fundadora da AMPLOS — Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e de Identidade de Género, refere que muitas vezes estas crianças começam logo a fazer a transição social, independentemente dos pais e da escola. “Estas crianças, quando sentem que têm de o fazer [mudar de nome] não esperam, por exemplo, pelo início do ano escolar.”
Ainda assim, sublinha que é preciso “observar bem o que está em jogo”: “Se a criança só diz aos pais, ou se expõe esta questão a todos, e se é uma coisa insistente ou apenas um episódio”.
“A expressão de género nas crianças muito pequenas pode ser algo lúdico, ou por não terem percebido que um menino não pode usar vestidos, por exemplo. Esse vestido pode ser um episódio ou uma experiência, não quer dizer que seja transexual ou homossexual.”
A socióloga, contudo, não tem dúvidas de que deveria ser possível fazer a alteração do nome nos documentos de identificação antes dos 16 anos, mesmo correndo o risco de a criança vir a mudar de ideias posteriormente.
“Esperar até aos 16 anos para o reconhecimento legal pode ser muito duro para a criança que sabe que o nome atribuído à nascença não é aquele com que se identifica”, explica a socióloga.
A psiquiatra e terapeuta sexual Zélia Figueiredo é da mesma opinião. “As crianças deviam poder conseguir fazer a alteração do nome no registo, mesmo que depois se arrependessem”, defende a especialista do Hospital Magalhães Lemos e presidente da JANO — Associação de Apoio a Pessoas com Disforia de Género.
E isso já acontece em alguns países. Em 2015, a lei da identidade de género de Malta foi considerada a mais inovadora do mundo, permitindo a qualquer pessoa mudar o género e o nome no registo, não sendo necessário comprovativo de cirurgia ou qualquer tratamento a nível físico ou psicológico. No caso das crianças, não há limite de idade para se proceder à alteração do género e do nome. Basta um pedido por parte dos pais ou das pessoas responsáveis pela criança.
Esta lei foi dedicada a Willa Naylor, uma menina ativista de nove anos que, juntamente com os pais, fez uma campanha para que a escola a reconhecesse como uma rapariga.
No Chile, um juiz deu ordens para que o registo alterasse o género e nome na certidão de nascimento de um rapaz de sete anos, que agora se chama Luna. Desde então, foram feitos outros cinco pedidos de mudança de identidade de género, o que motivou o Governo chileno a promover uma série de medidas pelos direitos das pessoas transgénero.
O mesmo aconteceu no País Basco em 2013 e em 2016. No ano passado, o tribunal de Tolosa autorizou que se alterasse o género e nome de um rapaz de quatro anos: Luken passou a chamar-se Lucía.
O País Basco voltou a ser associado às questões de género, este ano, a propósito de uma campanha polémica de uma associação de famílias de crianças transgénero (Chrysallis Euskal Herria), ao utilizar a frase “Há meninas com pénis e meninos com vagina”. As imagens da campanha, com desenhos de crianças nuas, chegaram a ser bloqueadas no Facebook.
Nos solidarizamos con Chrysallis Euskal Herria y condenamos la política de Facebook ante… https://t.co/zEx8Q347nm pic.twitter.com/2Z8SID6Gh9
— SOMOS (@SOMOSLGTB) January 10, 2017
Júlia Mendes Pereira, mulher transexual e secretária da API – Ação Pela Identidade, também acredita que estas situações devem ser abordadas “caso a caso”, mas sublinha a importância de “respeitar a vontade da criança”.
“Quando lemos e aprendemos sobre estas crianças, percebemos que elas só querem ser crianças e que não estão assim tão preocupadas se vão ser mulheres ou homens. Elas querem viver o seu presente da forma que lhes é mais confortável e sem serem reprimidas por estereótipos.”
Foi este respeito e esta liberdade que faltou a Júlia durante a sua infância. “Eu queria simplesmente ser criança. Queria usar as roupas que quisesse e o cabelo como quisesse, mas nunca me deixavam. Insistiam em rapar-me o cabelo e em fazerem penteados que, na altura, faziam aos meninos”, recorda. “Eu tinha uma irmã mais velha e olhava para as coisas que ela tinha e que lhe faziam e eu só pensava que queria que me fizessem o mesmo.”
A “ideia-chave”, continua a ativista, é “não impedir, não travar aquilo que a criança está a expressar”. “Isso só vai criar trauma e estigma e piorar o desenvolvimento. Por outro lado, não há necessidade de incentivar. Se a criança diz que se sente de tal forma, vamos respeitar, mas não vamos assumir que a criança vai fazer cirurgias mais tarde, porque não temos como saber. Tem de haver todo o espaço para ela crescer e se tornar adulta ou jovem para poder tomar decisões”, defende.
O facto de não ser permitido a estas crianças mudar o nome e até a maneira de se vestirem pode ser um sofrimento que pode ter consequências na idade adulta. “No outro dia falei com um jovem adulto trans que me disse que ainda hoje tem dificuldade em urinar sentado porque, durante toda a infância, bloqueou a ida à casa de banho.”
“É uma violência que nós exercemos sobre as crianças e sobre os adultos de não os deixarmos ser quem são”, acrescenta Fátima.
Bloqueadores hormonais: travar uma puberdade indesejada
O que pode ser igualmente duro e angustiante para estas crianças é o aparecimento de caracteres sexuais secundários com a chegada da puberdade. De acordo com a WPATH, que cita diversos estudos, nos casos em que a disforia de género não desapareceu com o avançar da idade, na adolescência acaba por ocorrer uma intensificação desta disforia e cria-se uma aversão aos caracteres sexuais secundários que surgem com a puberdade — no caso das mulheres, o crescimento dos seios e o aparecimento da menstrução, por exemplo, e no caso dos homens, a voz engrossa, surge a maçã de adão e barba no rosto.
Francisco aumentou o acompanhamento psicológico a partir dos 12 anos, precisamente quando começaram a aparecer os “primeiros sinais do corpo” feminino. “O peito, em particular, foi uma coisa que o traumatizou um pouco, apesar de ele nem ter muito peito”, explica Fátima.
O aparecimento de caracteres sexuais secundários pode ser travado recorrendo a bloqueadores hormonais. Margarida Bastos, endocrinologista da Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, tem atualmente três adolescentes que começaram a tomar bloqueadores hormonais aos 14 anos.
Estes doentes foram-lhe encaminhados pelos colegas de sexologia e psiquiatria da URGUS que avaliaram os adolescentes e consideraram que os jovens estavam “em risco”, isto é, que a sua vida estava a ser de tal modo afetada pelo aparecimento da puberdade, que seria mais benéfico iniciar os bloqueadores.
Há casos de jovens que ficam de tal forma perturbados que deixam de estudar e de conviver com outras pessoas, começam a automutilar-se e, em alguns casos, chegam até a tentar suicidar-se, explica Margarida Bastos. “A nossa lei não tem abertura suficiente para qualquer jovem começar com os bloqueadores. Se a equipa multidisciplinar assim o decidir, a lei não interfere, porque há o consentimento dos pais e do jovem que, a partir dos 14 anos, já tem personalidade jurídica”, afirma a especialista ao Observador.
Modificações ao nível do corpo ou das características sexuais da pessoa menor
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1 – Salvo em situações de comprovado risco para a sua saúde, os tratamentos e as intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo ou das características sexuais da pessoa menor, não devem ser realizados até ao momento em que se manifeste a sua identidade de género.
2 – A prática de tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de outra natureza que impliquem modificações ao nível do corpo ou das características sexuais da pessoa menor a partir do momento em que se manifeste a sua identidade de género, é realizada mediante o seu consentimento expresso e esclarecido através dos seus representantes legais, tendo em consideração os princípios da autonomia progressiva e do superior interesse da criança constantes na Convenção sobre os Direitos da Criança.
Artigo 7.º da Proposta de Lei sobre a identidade de género
Mas antes de se começar a terapêutica, a endocrinologista faz uma avaliação “a nível do cariótipo”, para confirmar o sexo biológico do doente, a nível clínico e de laboratório, para ter a certeza que não tem nenhuma doença que impeça o tratamento, e para confirmar que já iniciou a puberdade. É depois explicado aos pais e ao próprio o que irá acontecer com o tratamento, ou seja, que será bloqueada a puberdade com que nasceu. “A partir daí, iniciamos o tratamento com o consentimento dos pais ou representantes legais e do próprio.”
O tratamento — injeções dadas de três em três meses — é feito durante dois a três anos e o jovem tem depois a possibilidade continuar com o processo. “Aos 16 anos, avalia-se se é definitivo o diagnóstico de transexualidade. Caso seja definitivo, havendo novamente o apoio da equipa de psiquiatria, psicologia e sexologia, os inibidores são suspensos e dá-se início à indução da puberdade desejada”, refere Margarida Bastos. “Se quero masculinizar, vou dar androgénio e testosterona. Se quero feminizar, dou estrogénio e depois progesterona.”
Aqui, também é necessário o consentimento dos pais ou representantes legais e do próprio, até porque é preciso que o adolescente tenha consciência de que terá de “fazer a terapêutica a vida inteira”. Em caso de dificuldade económica, o hospital comparticipa esta terapêutica.
Nenhum destes processos é irreversível. “Com os bloqueadores dá para voltar atrás. Se ao fim de induzir a puberdade desejada, a pessoa quiser, por exemplo, ter filhos, é possível. No caso dos homens, se mantiver os testículos e deixar de tomar estrogéneo, os testículos voltam a funcionar.”
Ainda assim, há características que dificilmente serão revertidas por completo, sublinha a endocrinologista. “Se já fiz crescer o peito, não vou conseguir voltar atrás. Também não vou conseguir regredir todos os pelos que fiz crescer.”
Este tipo de terapêutica utilizada em adolescentes transexuais é relativamente recente, pelo que “não há recuo suficiente” para se perceber quais os efeitos secundários a longo prazo deste tratamento. Ainda assim, este tratamento é utilizado noutras ocasiões, como por exemplo “em crianças que começam a puberdade com seis anos” e nesses casos “não tem havido repercussões, nem a nível da fertilidade nem na estatura final [na altura]”. Já para não falar que a terapêutica em casos de transexualidade é feita em “períodos curtos”.
Ângela Vila-Real também sublinha o facto de se tratar de algo recente e que não se tem a certeza do impacto que pode vir a ter, a nível psicológico, na idade adulta. “As consequências na entrada adulta, do ponto de vista psicológico, não podemos sabê-las já. Só se percebem a longo prazo, quando o indivíduo chegar à idade adulta.”
Já Zélia Figueiredo, psiquiatra no Hospital Magalhães Lemos, acha o bloqueio hormonal benéfico, mas tem de ser feito “com acompanhamento multidisciplinar”.
Francisco começou o tratamento aos 16 anos, com o consentimento dos pais, mas por ele o processo ter-se-ia iniciado mais cedo. “Ele não queria ter de esperar até aos 16 anos para fazer o que quer que seja. O Francisco, se tivesse tido possibilidade, aos dois anos já tinha feito tudo o que havia para fazer, mas nós sempre tentámos desdramatizar a situação. Ele teve uma educação de: ‘oh filho, o mundo não é perfeito, tens de ter paciência’.”
Júlia não teve a mesma possibilidade, já que os pais não aceitavam a sua identidade de género. Depois de passar por uma série de médicos, desde a médica de família até consultas de adolescentes, que não compreendiam o que se passava com a jovem, aos 15 anos começou a ser seguida em consultas de especialidade.
Como os pais continuavam a não aceitar a situação, teve de esperar até atingir a maioridade para poder começar a fazer qualquer tipo de tratamentos. “Eles recusaram-se a qualquer tipo de cooperação com as consultas, a partir do momento em que perceberam que não era uma consulta para me corrigir.”
Escola: aceitação versus bullying
À semelhança de Francisco, Júlia começou desde cedo a mostrar que não se sentia bem no próprio corpo, mas isso sempre foi visto com maus olhos pelos pais. “Havia uma condescendência de que eu tivesse as minhas brincadeiras e a minha expressão [de género] dentro de casa, mas era-me dito claramente que aquilo deixava de ser permitido e aceitável da porta de casa para a rua.”
A ativista, de 27 anos, recorda que entrou na escola já com a ideia de que não podia brincar com as meninas e que tinha de conviver com os rapazes. Como se tratava de uma “ideia inconcebível”, Júlia acabou por se tornar uma criança isolada, tendo mesmo desenvolvido estratégias para conviver o mínimo possível com os colegas.
“A dada altura, percebi que as crianças que não faziam os trabalhos de casa ficavam a fazê-los durante o intervalo, então passei a não os fazer propositadamente para poder ficar na sala de aula durante o intervalo”.
O facto de não se poder mudar de nome nos documentos de identificação antes de atingir a maioridade também complica o dia a dia destas crianças nas escolas. Há vários anos que, em todos os inícios de anos escolares, a mãe de Francisco faz uma romaria até à escola para explicar aos professores e à direção a situação do filho, na tentativa de conseguir mudar o seu nome nas pautas. O problema, efetivamente, é só a nível de documentação, porque tanto os professores como os colegas o tratam por Francisco.
Educação e ensino
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1 – O Estado deve garantir a adoção de medidas no sistema educativo, em todos os níveis de ensino e ciclos de estudo, que promovam o exercício do direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais das pessoas, nomeadamente através do desenvolvimento de:
a) Medidas de prevenção e de combate contra a discriminação em função da identidade de género, expressão de género e das características sexuais;
b) Mecanismos de deteção e intervenção sobre situações de risco que coloquem em perigo o saudável desenvolvimento de crianças e jovens que manifestem uma identidade de género ou expressão de género que não se identifica com o sexo atribuído à nascença;
c) Condições para uma proteção adequada da identidade de género, expressão de género e das características sexuais, contra todas as formas de exclusão social e violência dentro do contexto escolar, assegurando o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens que realizem transições sociais de identidade e expressão de género;
d) Formação adequada dirigida a docentes e demais profissionais do sistema educativo no âmbito de questões relacionadas com a problemática da identidade de género, expressão de género e da diversidade das características sexuais de crianças e jovens, tendo em vista a sua inclusão como processo de integração socioeducativa.
Artigo 14.º da Proposta de Lei sobre a identidade de género
A proposta de lei do Governo sobre a identidade de género prevê que os estabelecimentos de ensino “devem garantir as condições necessárias para que as crianças e jovens se sintam respeitadas de acordo com a identidade de género e expressão de género manifestadas e as suas características sexuais”. Caso a proposta venha a ser aprovada, o Ministério da Educação e a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade têm 180 dias para definir quais as medidas a serem adotadas no sistema educativo.
Para Júlia Mendes Pereira, esta situação seria mais simples se o ambiente escolar fosse menos binário, isto é, menos ligado à questão masculino/feminino. “As escolas devem ser locais mais inclusivos à partida, tanto nas questões das casas de banho, nos bibes, nos uniformes, etc. Se tudo isto não for decidido com base no género, mais facilmente estas crianças sentem-se incluídas”, defende.
A psiquiatra Zélia Figueiredo acredita mesmo que “as questões de género vão ser os temas do século”. “É uma questão de mudança de mentalidade e a tendência vai ser não haver tanto este binarismo.”
No caso de Francisco, não foi preciso chegar aos 14 anos — altura em que mudou oficialmente de nome — para os amigos e colegas olharem para ele como um rapaz. Quando teve a primeira namorada, aos 13 anos, ainda usava o nome Sofia.
“Quando a Sofia tinha 12, 13 anos, houve um colega que precisou de ir a casa à hora de almoço e pediu para ela ir com ele. Mais tarde, a mãe desse colega veio contar-me que tinha perguntado ao filho o que tinha feito durante o dia e quando ele lhe contou, o pai começou a brincar com a situação: ‘Vieste com a Sofia cá a casa? Sozinho?’. Ao que o filho lhe responde: ‘Pai, a Sofia é um gajo!’”.
E isso também era óbvio para o irmão mais novo, que chegou a dizer à mãe que não percebia como é que as pessoas achavam que o irmão era uma menina. “Eu percebi logo que era um rapaz”, afirmou Luís, na altura com cerca de oito anos.
“Os miúdos sempre aceitaram facilmente e o Francisco sempre falou muito naturalmente com os colegas sobre as coisas”, conta Fátima.
A experiência escolar de Júlia é exatamente oposta. O mal estar junto dos colegas, que sentia na infância, prolongou-se ao longo dos anos, mas piorou a partir da adolescência. “Nas aulas de educação física, era impensável despir-me no balneário masculino e tomar banho depois das aulas, e isso criava alguma chacota em torno de mim. Escondia-me sempre no cubículo da casa de banho para trocar de roupa e, muitas vezes, os meus colegas empoleiravam-se para espreitar.”
Júlia recorda mesmo alguns episódios de “confrontos físicos”. “Houve perseguições até casa em que, por vezes, me atiravam pedras e cuspiam para cima de mim”.
O bullying só acalmou quando chegou o secundário e foi fazer um curso profissional para Lisboa. “Não significa que tenha sido assim tão confortável na escola, mas o simples facto de a escola acabar e de eu me meter num comboio para vir para a margem sul dava uma distância muito maior daquele ambiente e eu sentia-me mais segura.”
Mas não é só a nível escolar que estas crianças se deparam com estes entraves. É em tudo o que envolva a apresentação de documentos de identificação — ir a consultas médicas, ir a tribunal, viajar, entre tantas outras situações.
Fátima acredita que, em alguns casos, esta questão facilmente seria resolvida se houvesse alguma flexibilidade por parte da máquina administrativa. “Eu costumo ir com os meus dois filhos à consulta e eles costumam chamar pela Sofia e pelo Luís. Nessa altura, eu digo: ‘A Sofia é o Francisco, mas aí [na ficha] está Sofia’. Um dia, estava nesta história do costume e uma rapariga da receção disse: ‘Ah ok, então se é Francisco vamos alterar para Francisco’. Eu tive o cuidado de dizer que no cartão de cidadão está Sofia, não fosse a rapariga arranjar problemas, e ela respondeu-me: ‘Não faz mal, faz-se aqui uma observação’. A partir de agora, no sistema está Francisco. Qual é a dificuldade disto?”, conta Fátima.
“Os pais têm de ser os principais aliados destas crianças”
O apoio dos pais em toda a questão da identidade de género é essencial. De acordo com a WPATH, é “relativamente comum” crianças com disforia de género terem elevados níveis de ansiedade e depressão. Mas o apoio da família pode fazer toda a diferença, tal como demonstrou um estudo publicado em 2016 na revista Pediatrics. O documento refere que as crianças que são apoiadas nesta transição apresentam “níveis normais” de depressão e “pequenos aumentos de ansiedade” em comparação com as crianças com disforia de género que continuam a viver de acordo com o sexo biológico.
“Os pais têm de ser os principais aliados destas crianças. São situações tão difíceis e tão graves que podem levar ao suicídio”, refere Margarida Faria da AMPLOS.
Uma outra investigação norte-americana, de 2016, sobre o suicídio e a automutilação nos adolescentes e jovens adultos transgénero refere que 30% já tinha tentado suicidar-se pelo menos um vez e cerca de 42% tinha um historial de automutilação.
O apoio dos progenitores, continua a presidente da AMPLOS, é essencial para “reforçar a autoestima” e “para ajudar na formação do carácter” destas crianças. “Se as crianças não tiverem as coisas bem definidas, qual é o problema de os pais apoiarem isto numa fase difícil da vida? Mais vale correr-se este risco de isto ser apenas uma fase do que a criança ter dificuldade a crescer.”
Foi o que Fátima e o marido procuraram fazer com Francisco, tendo sempre em mente a felicidade do filho e a desdramatização da situação. “Uma preocupação que sempre tivemos foi não fazer disto um caso, ou seja, o Francisco é isto, mas é muito mais do que isto. Às vezes tende-se a explicar um conjunto de comportamentos e de atitudes por aí e isso pode ser perigoso”, considera Fátima, acrescentando que, muitas vezes, o problema da aceitação dos pais “tem a ver com a questão do medo do desconhecido ou do medo do que os outros vão fazer ou dizer”.
É precisamente isso que Júlia Mendes Pereira destaca em relação aos pais. No caso dela, a atitude dos progenitores foi sempre movida por um sentimento de “vergonha”. Ainda hoje não quer entrar em pormenores quanto ao momento em que contou aos pais. “Primeiro disse ao meu pai, por iniciativa e por pressão dele, e só depois à minha mãe”, recorda. Nessa altura, já tinham descoberto o histórico de internet, que demonstrava os vários nicknames femininos que Júlia utilizava online, e o “esconderijo” com maquilhagem e roupas de mulher que foi comprando às escondidas ao longo dos anos. “A internet foi cortada, essas coisas foram-me retiradas e foram fechadas à chave para eu não ter acesso a elas. Depois houve um encaminhamento para os serviços de saúde na esperança de que me trocassem as voltas e me pusessem no sítio correto.”
Apesar de lhes ter dito “claramente” que se sentia mulher, os pais de Júlia interpretaram tudo como uma questão de sexualidade. “Lembro-me do meu pai, que não é uma pessoa religiosa — é até bastante crítico –, vir com panfletos religiosos que falavam das curas gay. Na cabeça dele, tudo se confundia”, conta. “A minha preocupação foi tentar mostrar-lhes que não era uma questão de sexualidade, era uma questão de identidade de género, de como me sentia comigo própria e como me queria apresentar à sociedade.”
Esta falta de compreensão e a não aceitação, numa primeira fase, levaram a um afastamento e uma quebra irreparável na relação entre pais e filha, até hoje. “Foi realmente o momento em que nos distanciamos de forma quase definitiva. Sinto que até hoje houve coisas que ficaram e continuam quebradas.”
“Não houve nenhum momento da minha vida em que eu encaixasse enquanto rapaz. Gostava que os meus pais tivessem parado para pensar o que eu estava a sentir naqueles momentos e o sofrimento pelo qual eu estava a passar. Se calhar isso teria ajudado a que eles me tivessem acompanhado de outra forma durante a minha adolescência e juventude. Só muito tarde é que eles aceitaram e compreenderam quem eu realmente sou.”
Para Fátima, a solução é disponibilizar “boa informação” sobre as questões da transexualidade e a identidade de género, e aponta o dedo às altas instâncias governativas do país. “Isto tem de ser uma prioridade na agenda política, porque há pessoas a sofrer. É um sofrimento desumano, porque se nega um direito base, que é o direito de se existir enquanto pessoa.”
E vai mais longe: “Não vamos varrer estas coisas para debaixo do tapete. Não dá para os senhores deputados da Assembleia da República não fazerem disto uma prioridade porque há pessoas a matarem-se.”
*Os nomes Fátima, Sofia, Francisco, Bruno e Luís são fictícios
Ilustração de Maria Gralheiro