O ano de 1968 foi fértil em revoltas estudantis por esse mundo fora. Várias análises do conjunto dessas revoltas foram levadas a cabo, por exemplo por David Caute. Na Europa, particularmente, dois acontecimentos mereceram a atenção global: a Primavera de Praga e o Maio francês. A revolta checoslovaca, que acabou com a invasão dos tanques russos, não tem merecido por estes dias grande atenção, se é que alguma. O mesmo não se pode dizer dos acontecimentos franceses, que acabaram sensivelmente com as férias dos estudantes. Este artigo não procura, no entanto, compensar essa injustiça, dedicado que é em exclusividade ao Maio francês. Como o debate sobre o seu significado se prolonga até hoje, sob a forma de inúmeros artigos e livros, permiti-me referir uma parte (ínfima) dessa bibliografia aqui, pela boa e simples razão que convém atribuir as ideias a quem as teve. Para não prejudicar a leitura, e com pouquíssimas excepções, refiro no texto apenas os nomes dos autores, indicando as referências bibliográficas apenas na última secção. Só quem tiver alguma curiosidade particular precisa de as ver.
O espectáculo
Em 1798, o filósofo Immanuel Kant via na revolução francesa – da qual, sob muitos aspectos, era crítico – o sinal de uma capacidade da espécie humana de ser causa e autora do seu progresso para o melhor e escrevia que a grande transformação que ela operara residia não tanto no acontecimento em si como na mudança da maneira de pensar dos espectadores que, à distância, contemplavam o espectáculo, maneira de pensar essa que, mesmo na segurança da distância, manifestava uma parcialidade confinando com o entusiasmo que trazia consigo um perigo real para quem assim se expressava.
Poder-se-ia dizer o mesmo acerca de Maio 68? É duvidoso. Não que a maneira de pensar dos espectadores não tenha sofrido uma transformação, nem que a parcialidade e o entusiasmo não tenham existido. Muitas semelhanças com momentos revolucionários passados podem ser detectadas. Raymond Aron lembra, por exemplo, uma passagem da Educação sentimental de Flaubert que antecipa discussões típicas de 68: “Frédéric dirige-se a uma reunião durante a revolução de 1848. Um tipo declara: «Camarada, é preciso suprimir os diplomas! – Não, responde o outro, não, camarada, não devemos suprimir os diplomas, é o povo que deve atribuir os diplomas»”.
Falta no entanto a dimensão, essencial do ponto de vista da análise de Kant, do perigo. A começar pelo perigo para os próprios intervenientes – e a comparação valeria evidentemente também se feita com 1830 (Revolução de Julho), 1848 (Segunda República) ou 1871 (Comuna de Paris). Raymond Aron conta um telefonema recebido em Maio do filósofo hegeliano de ascendência russa Alexandre Kojève: não se tratava de uma verdadeira revolução – ninguém mata ou quer matar. O número total de mortos, apesar de todos os confrontos, limitou-se a cinco: dois estudantes, dois operários e um polícia (três dos quais por razões acidentais: um estudante, um operário e o polícia). Do mesmo modo, o entusiasmo dos espectadores, contrariamente aos de 1789, não oferecia um risco real. O livro que Aron publicou ainda em 1968, La Révolution introuvable, assenta nesta avaliação dos acontecimentos. Não é, de resto, o único: vários livros de gente afecta ao PC francês vão parcialmente no mesmo sentido.
O espectáculo começa a acabar com o discurso, não televisivo mas radiofónico (como em 1940), de De Gaulle a 30 de Maio (quatro minutos e meio) e com a gigantesca manifestação nos Campos Elíseos (meio milhão de pessoas) em seu favor no mesmo dia, e acaba definitivamente com as eleições de 30 de Junho, anunciadas a 30 de Maio, que dão uma vitória maciça aos gaullistas e aos Republicanos independentes (358 deputados em 485). Pelo caminho, ficou a tentativa de François Mitterrand, a 27 de Maio, de, com a ajuda de Pierre Mendès France, ocupar inconstitucionalmente o poder no contexto do suposto vazio deixado pelo gaullismo periclitante.
O indiscutível génio de De Gaulle consistiu em aparecer em força no momento em que toda a gente estava farta da desordem (algo que Pompidou, então primeiro-ministro, preconizava desde o princípio). Os franceses aguentam bem a desordem e, por algum tempo, até a apreciam. Mas há limites. Ao fim de um mês de greves, ruas escavacadas, carros destruídos e lixo por todo o lado (aqui convém ver as fotografias da época), tudo inclinava a que os parisienses estivessem de braços abertos para receber o general. Os próprios estudantes participavam desse ambiente de cansaço. Como escreveu um historiador dos acontecimentos, Laurent Joffrin: “Os detritos acumulados tinham atraído um exército de ratos às salas e aos anfiteatros. Os clochards do Quartier Latin tinham pouco a pouco ocupado o lugar dos estudantes fatigados”.
As interpretações
Como olhar retrospectivamente para o espectáculo? E como avaliar as interpretações que dele, a partir do próprio ano de 1968, foram feitas por participantes e espectadores? Dois escolhos devem ser evitados. Em primeiro lugar, o estilo “festivo-fascista”, para falar como o escritor americano William Saroyan, isto é, os lirismos celebratórios do cantor ou cineasta, embevecidos consigo mesmos, que proclamam que Maio 68 faz parte do seu “imaginário”. Em segundo lugar, a atitude do tipo “estúpidos anos 60”, à maneira do intelectual da Action française Léon Daudet referindo-se ao século XIX. Nenhum dos dois pontos de vista, pela sua estrita limitação, nos promete grande inteligência das coisas. Se se quiser referir o título de um livro de Georges Wolinski (vítima, como se sabe, do terrorismo islâmico, no ataque ao Charlie Hebdo) publicado em 1968, nenhuma das visões permite satisfazer um bom desejo: Je ne veux pas mourir idiot.
Um ponto geral, prévio a qualquer discussão das interpretações, deve ser feito. Como notaram historiadores como François Furet ou Michel Winock, à diferença dos grandes escritores do século XIX, de Chateaubriand a Hugo, que em grande número lutam por lugares parlamentares, tornam-se ministros ou mesmo chefes de governo (ou pelo menos, como Balzac, tentam), os intelectuais do século XX (a expressão “intelectuais” aparece com o caso Dreyfus) colocam-se, na sua maioria, numa posição de exterioridade em relação ao combate político convencional, pretendendo ao estatuto de consciência crítica não contaminada pelas vicissitudes da política parlamentar. Sartre é disso o exemplo maior.
Claro que há excepções num caso e noutro, mas no essencial a distinção funciona. Isto será importante para se perceber um traço fundamental, ao qual voltarei mais tarde, da atitude de muitos durante Maio 68: o medo da “recuperação”, isto é, da integração e da absorção das ideias supostas mais radicais pela ordem estabelecida. Tal medo atinge em certos casos proporções verdadeiramente patológicas e dita um movimento de cortes e cisões que permanece inexplicável se não atendermos a essa particular característica dos tempos. Ela assinala bem o imperativo da exterioridade ao combate político tradicional.
Vamos então às interpretações. Como é óbvio, nenhuma interpretação minimamente válida se reduz a um primitivo “por” ou “contra”, mas o artifício de uma tal divisão possui alguma legitimidade, já que inevitavelmente qualquer interpretação acentua mais um aspecto do que outro. Chamemos-lhes, seguindo a terminologia de Marcel Gauchet, “a poesia revolucionária” e “a prosa democrática”. Conviria ainda distinguir as interpretações feitas “a quente”, ainda em 1968 (em grande número, de resto), daquelas que beneficiam da distância no tempo, até porque em vários casos os mesmos autores, como é inevitável, transformam a sua interpretação com o passar dos anos.
A poesia revolucionária
O conjunto das interpretações que vêem em Maio 68 a criação de um movimento que, independentemente da sua novidade, reata com os grandes movimentos revolucionários do século XIX (no limite, 1789) não oferece grande unidade. A oscilação dá-se entre aqueles que insistem no que o movimento continha de criação do novo e na ideia central de um avanço conquistado em direcção à autonomia (caso de La brèche, de Edgar Morin, Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, este último sob o pseudónimo de Jean-Marc Coudray, 1968) e aqueles que se enquadram numa visão mais próxima da tradição revolucionária clássica, como André Glucksmann: “o espectro da revolução manifesta na rua que assombra ainda a Europa” (Glucksmann evoluirá posteriormente para um entendimento diferente do movimento).
Como seria de esperar, numa geração em que a sociologia ganha um peso inédito – nos próprios estudantes, fortemente influenciados pelo primeiro livro de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron -, a interpretação sociológica tende a generalizar-se (por exemplo, com Alain Touraine). Não por acaso, como alguém notou, a categoria fundamental herdada do marxismo deixou de ser a de “exploração”, passando a ser a de “alienação”, uma categoria sobretudo presente no “jovem Marx”. Uma atitude diferente, de uma maior radicalidade, encontra-se nos textos oriundos da Internacional Situacionista, como os de René Vienet. Sem que tenha escrito nenhuma obra de relevo sobre Maio, Jean-Paul Sartre naturalmente interveio nos acontecimentos. Depois de duas entrevistas particularmente injuriosas para com De Gaulle e Aron, e, obedecendo à sua terrível tendência para o erro político e para um certo masoquismo intelectual (dizer isto não implica a recusa de um seu génio filosófico particular, que seria o último a negar), caiu rapidamente nos braços de um maoísmo que, apesar de algumas originalidades, representava a menos libertária das principais correntes de Maio.
O que deve ser reconhecido é que, com a excepção do livro de Glucksmann, a totalidade das obras mencionadas não se enquadra de modo algum no quadro do leninismo e a própria relação ao marxismo é uma relação crítica, longe dos rituais habituais nestas coisas. As mais significativas análises de Maio posteriores a 1968 que reconhecem o carácter libertador do movimento, como por exemplo as de Jean-Pierre Le Goff e de Serge Audier (uma das melhores que conheço), caracterizam-se, em geral, por uma atenuação do entusiasmo pela poesia revolucionária e pelo reconhecimento dos impasses a que Maio conduziu. O que se disse sobre o marxismo e o leninismo continua a valer para elas. Apesar da curiosa reactivação do marxismo-leninismo posterior a 1968, 1968 enquanto tal representa um corte palpável com essa tradição. E, segundo autores como Olivier Mongin, com a própria ideia de revolução (algo que é palpável em certos escritos de Daniel Cohn Bendit).
A prosa democrática – e não só
Do lado dos críticos de Maio, as posições são ainda mais complexas. Há, em primeiro lugar, o já citado grande livro de Raymond Aron, La Révolution introuvable. A tese de Aron é que, não se tratando de uma verdadeira revolução, estamos na presença de um “psicodrama”, mas de um psicodrama com efeitos desastrosos para o funcionamento da universidade e para os padrões de objectividade que, apesar de tudo, eram os seus. Note-se que Aron foi um crítico severo tanto do gaullismo (antes e depois de 68) quanto da estrutura da universidade francesa. As suas críticas a Maio 68 devem ser entendidas contra esse pano de fundo. Ao mesmo tempo, lido à distância, e sem perder nada da sua acutilância, La révolution introuvable contém em si a esperança que, quaisquer que sejam os seus problemas intrínsecos, as reformas que possam resultar das convulsões de Maio sejam benéficas para a universidade e que elas correspondam às suas próprias críticas, algo que sai reforçado pela leitura de alguns escritos seus posteriores a 1968. A insistência no carácter patológico da revolta encontra-se muito mais presente num livro publicado por dois psicanalistas (Béla Grunberger e Janine Chassemet-Smirgel) sob o pseudónimo de André Stéphane, cujo interesse não se compara evidentemente ao de Aron. Nos antípodas da tese do “psicodrama” de Aron, encontramos André Malraux que, com a sua notória tendência para o exagero, afirmou que Maio revelava “uma das crises mais profundas que a civilização jamais conheceu”.
Das bandas do PC francês vieram certamente algumas das críticas mais ferozes à revolta dos estudantes. (Em Portugal também. Um escrito de António José Saraiva que procurava compreender com algum grau de simpatia o que se estava a passar, logo suscitou a crítica ortodoxa do então comunista Mário Sottomayor Cardia) A crítica central dos comunistas, como a de Claude Prévost, coincidente sob esse aspecto com a de Aron, é a de não estarmos face a uma verdadeira revolução. Claro que a falta de iniciativa do PC durante os acontecimentos traía essa convicção. A “maior greve da história” fez-se contra os estudantes, mesmo que sob a forma de adesão aos protestos destes. Para mais, a ausência de fusão, ou sequer efectiva colaboração, entre estudantes e operários, e o papel central ocupado pelos primeiros, não convidava particularmente a elogios por parte do PC. Daí à tese que Maio 68 possuía uma natureza essencialmente reaccionária, conduzindo ao reforço da ordem capitalista (Régis Debray, entre muitos outros, mas mais tarde e encontrando-se longe do PC). Em Itália, Pier Paolo Pasolini denunciava a violência dos filhos da burguesia, os estudantes, contra os polícias, filhos da classe operária.
O caso mais exemplar da atitude dos comunistas foi o do filósofo Louis Althusser, apesar da rareza dos seus comentários sobre a revolta dos estudantes. O documento mais revelador é uma carta enviada à comunista italiana Maria Antonietta Macchiocchi. Nela, o apóstolo da pureza científica do marxismo anunciava as objecções clássicas ao movimento estudantil, não sem antes lembrar que qualquer explicação que não obedeça ao marxismo-leninismo é uma “explicação simplista”: os estudantes – “na maioria, os filhos da grande burguesia francesa”, como escreveu noutro lugar – manifestavam uma “ideologia pequeno-burguesa dominante”, incapaz de proporcionar uma fusão com o movimento operário (tal como controlado pelo PC) e o “esquerdismo pequeno-burguês” , um esquerdismo “infinitamente mais difícil de tratar do que o esquerdismo proletário” (sublinhado de Althusser). A obsessão com o “tratamento” é patente: é necessário “um tipo muito especial de «tratamento» para este esquerdismo intelectual e estudante”. Aqui a imaginação voa e é impossível não pensar nos célebres tratamentos psiquiátricos a que serão submetidos os dissidentes soviéticos – ou, já agora, e sem intenção qualquer de ataque ad hominem, no próprio Althusser, submetido regularmente a internamentos psiquiátricos. Mas a doutrina geral é simples: fora do controle do PC, Maio 68 não obedecia à ciência marxista-leninista.
Com os anos, as interpretações críticas de Maio focaram-se sobretudo em dois aspectos: o da relação entre a mais mediática filosofia francesa dos anos sessenta e setenta com o pensamento dos estudantes (voltarei à questão depois) e a relação do próprio movimento estudante com o nascimento de um individualismo (concebido como indiferença para com a sociedade enquanto tal, à maneira de Tocqueville) que as décadas seguintes exibiriam. O livro-chave para esta última questão é o de Gilles Lipovetsky, L’ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain (1983) e conhecerá uma fecunda descendência, nomeadamente com dois livros de Luc Ferry e Alain Renaut: La pensée 68 (1985) e 68-86. Itinéraires de l’individu (1987). Marcel Gauchet adoptará posições muito semelhantes, e é essa também a posição, recentemente expressa entre nós, de Maria de Fátima Bonifácio. Cornelius Castoriadis protestará contra a tese segundo a qual o individualismo se encontraria já inscrito na própria maneira de pensar de Maio 68 – ele seria antes o resultado do falhanço da própria revolta, não o seu filho natural.
Maio e a filosofia
No já referido La pensée 68, Luc Ferry e Alain Renaut encontram em Maio 68 a presença do que apelidam o “anti-humanismo contemporâneo”, isto é, o conjunto das teses partilhadas pelo chamado “estruturalismo” francês dos anos sessenta e setenta e por quem se encontrava nas suas margens. Autores como Michel Foucault, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu, Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, etc., participariam dessa constelação anti-humanista, dominada pelas teses da « morte do homem » e de que « o sujeito não pensa, é pensado » (a mesma ideia encontra-se presente em Marcel Gauchet). Não faria sentido estar a discutir aqui a razão ou a falta dela desta tese, mesmo tendo em conta que Ferry e Renaut tiveram o cuidado de salientar que nada há de causalidade imediata na relação entre essa constelação filosófica e o pensamento dos participantes de Maio 68. Mais uma vez, Cornelius Castoriadis foi o mais vocal crítico desta assimilação, e o psicanalista Didier Anzieu, escrevendo sob o nome de Epistémon, afirmava já em 1968 que os acontecimentos de Maio significavam o certificado de morte do estruturalismo.
Reconhecendo a complexidade e o acerto de várias passagens de La pensée 68, resta que a tese central possui algo de contra-intuitivo, isto sobretudo se tivermos em conta as declarações dos próprios participantes de Maio, a começar por Daniel Cohn Bendit. Com efeito, Cohn Bendit declarou expressamente que nem sequer Herbert Marcuse fazia parte das leituras dos estudantes. Alguns teriam lido Marx, Bakunine, Althusser, Mao, Guevara, Henri Lefebvre e Sartre. Noutro lugar, e falando das suas leituras pessoais, referiu os textos publicados na revista Socialisme ou barbarie (1949-1965), animada por Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, e na Internationale Situationniste (1958-1969), cuja figura tutelar era Guy Debord.
Aqui, duas palavras sobre estas duas últimas referências são necessárias. Socialisme ou barbarie começou logo como uma crítica ao leninismo e ao trotskismo e acabou com uma recusa do próprio marxismo, numa conjuntura teórica em que o marxismo-leninismo era o dogma explícito de uma boa parte da esquerda francesa e uma inspiração mais ou menos envergonhada para a grande maioria da restante, além de fornecer uma crítica sistemática da União Soviética e dos restantes totalitarismos comunistas. A Internacional Situacionista, pelo seu lado, representou a tentativa mais radical de associação de uma vanguarda artística com uma vanguarda revolucionária, também ela desde o início em ruptura com o marxismo-leninismo e com as várias imposturas totalitárias.
Livros como o La société du spectacle (1967), de Guy Debord, ou a obra de Raoul Vaneigem publicada no mesmo ano, se não gozaram de influência imediata, iluminam retrospectivamente, quanto mais não seja através de vários slogans escritos nas paredes de Paris, aspectos essenciais do movimento dos estudantes. Guy Debord, especialmente, com uma prosa excelente habitada pela presença de autores como Baltasar Grácian e o Cardeal de Retz, merece consideração, até porque La société du spectacle possui um real interesse teórico. Dizer isto não significa evidentemente esquecer várias razões de crítica às doutrinas de um ou outro grupo, particularmente à Internacional Situacionista (o prazer expresso na destruição, por exemplo, aquilo que se poderia chamar “nihilismo activo”). Significa apenas salientar que as influências mais dominantes em Cohn Bendit representavam uma ruptura efectiva com um marxismo-leninismo dominante, apontando decisivamente para um horizonte completamente distinto deste.
De Gaulle e Cohn Bendit
De um certo modo, os principais protagonistas de Maio 68 foram De Gaulle e Cohn Bendit (se bem que haja eventual injustiça para com o brilhantíssimo Georges Pompidou, que manteve com De Gaulle uma relação complexa e não exactamente pacífica). Não se trata aqui obviamente de dizer que a figura de Cohn Bendit e a de De Gaulle, com a sua grandeza histórica e a sua notória complexidade, se encontram no mesmo plano. Resta que ambos representam as faces opostas de Maio. Raymond Aron escreveu que uma vitória de Cohn Bendit sobre De Gaulle (de quem, repita-se, foi um crítico constante) o teria ferido profundamente. E a verdade é que De Gaulle efectivamente venceu, naquela que terá sido a sua última vitória. Mas é preciso talvez ir um pouco mais longe.
Ir mais longe significa, entre outras coisas, lembrarmo-nos que a Vª República, fundada por De Gaulle em 1958, no seguimento, de resto, das incríveis trapalhadas da França do pós-guerra, magnificamente narradas por Antony Beevor e Artemis Cooper, e da continuação da IVª República, era uma democracia relativamente atípica, entre outras coisas por causa da própria figura de De Gaulle. Cohn Bendit escreverá vinte anos depois de Maio que “o gaullismo quis levar a cabo uma modernização industrial sem modernização cultural. Criou uma sociedade economicamente nova pretendendo manter os modos de vida tradicionais”. Não há praticamente estudo algum que não abone a favor desta posição. O próprio De Gaulle não esteve longe de o fazer.
Os propósitos de Cohn Bendit, por grandes que sejam os exageros que aqui e ali acontecem e por mais que retrospectivamente denuncie a idiotia do muito que se dizia e escrevia (ele próprio incluído) em Maio, mantêm uma razoável coerência: denúncia da fascinação pela violência, pela mobilização na rua e a confrontação, erro de certos slogans (“CRS=SS”, etc.). A um Sartre confuso e, como de costume, disposto a aderir a uma nova revolução, Cohn Bendit responde em Maio que não se trata de uma revolução, mas sim de uma revolta e que o progresso se faz através de “uma mudança perpétua da sociedade”. A distância para com o marxismo-leninismo é marcada desde o início. O movimento estudantil, diz Cohn Bendit, preparou o fim do comunismo e do esquerdismo. Seria sem dúvida um exagero, mas não um erro inteiro, pensar que há um ponto imaginário em que, sob vários aspectos, De Gaulle e Cohn Bendit se encontram um com o outro, para lá de todas as diferenças.
A “recuperação”
O que havia de efectivamente novo em Maio 68 – várias formas de libertação que a vida social requeria, como o lembrou aqui no Observador Manuel Villaverde Cabral e como enumeradas por Hervé Niquet – foi efectivamente “recuperado”, para utilizar a linguagem que, na época, tal como “reificado”, simbolizava o cúmulo dos horrores. Essa capacidade de “recuperar” é um dos maiores títulos de glória da nossa “civilização burguesa”, pelo menos nos seus melhores momentos. Ela corresponde, na medida do possível, e por paradoxal que possa parecer, ao exercício de interrogação filosófica sobre os fundamentos da sociedade, um pôr-se em causa que evita a violência – e a tragédia totalitária praticamente inescapável – das grandes rupturas, que ainda hoje em dia representam o desejo maior dos herdeiros do marxismo-leninismo. (Houve certamente violência em Maio de 68, mas, como escrevi acima, os seus efeitos trágicos foram muito reduzidos, e os acessórios ditaram o fim da revolta e a rápida vitória de De Gaulle. Trata-se, de resto, como nos conta o historiador Stanley Hoffman, de algo que tradicionalmente pertence ao “estilo francês de protestar”. Mas, é claro, é um tema que conviria desenvolver.)
Há certamente tanta ocultação como revelação nas “recuperações”. Mas, pese a alguém como Cornelius Castoriadis, esse é talvez o único modo possível de haver alguma revelação sobre o modo de ser da nossa sociedade: através da integração possível do que a contesta, no caso de tal integração ser reflectida e não uma forma de aceitação inconsciente. Apenas as democracias liberais o permitem. Dos dois livros que vale verdadeiramente a pena ler escritos “a quente” sobre Maio (La Révolution introuvable, de Aron, e La brèche, de Morin, Lefort e Castoriadis) é indubitavelmente o primeiro que se encontra mais próximo desta verdade essencial. E se algo há de interessante em Maio 68 sobre o qual convém reflectir, é exactamente isso.
De facto, uma “explicação” de Maio 68 não é em si propriamente necessária nem, creio, particularmente interessante (Philippe Bénéton e Jean Touchard estabeleceram, em 1970, uma tipologia das explicações possíveis). Como diz Marcel Gauchet: “Nunca tentei, na verdade, encontrar uma explicação sistemática [de Maio 68]. Pode-se viver sem isso. Não é a revolução francesa”. São os mecanismos da “recuperação” que importam. Para me servir de conceitos sartreanos clássicos, utilizando-os de um modo que seria inaceitável para Sartre e dando ao conceito de “série” um sentido muito mais flexível do que ele possui em Sartre, como é que um episódio de “grupo em fusão” pode levar, sem revolução, à reconstituição de uma “série” distinta daquela anterior à acção do “grupo em fusão”, uma “série” mais livre?
Para lá de todas estas considerações, permanecem os relatos das vivências dos participantes em Maio 68, sendo um exemplo a investigação levada a cabo por Hervé Hamon e Patrick Rotman. Mas as vivências são, na sua dimensão essencial, incomunicáveis. E a verdade ainda exprimível que contêm traz muitas vezes consigo, por muito que custe aos seus autores, uma ilusão retrospectiva do ponto de vista analítico.
E Portugal?
Em Portugal também houve um “Maio 68”. Foi com um ano de atraso, em 1969. Não foi em Paris: foi em Coimbra. De Gaulle era o Almirante Américo Thomaz. Cohn Bendit, Alberto Martins, que dirigiu a palavra ao Almirante. E teve o seu segundo grande momento num jogo de futebol, a final da Taça de Portugal, em que a Académica, símbolo da revolta, perdeu 2-1 com o Benfica. No final do jogo, os jogadores da Académica colocaram as capas de estudante aos ombros.