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A poucas horas de Portugal se estrear no Euro, Nuno Ribeiro, que o mundo do futebol conhece por Maniche, falou com o Observador da altura em que fazia parte do meio campo de luxo da seleção com Deco e Costinha. Do pesadelo daquela final perdida do Euro 2004 e de como, mesmo assim, Scolari conseguiu pôr os portugueses com bandeiras nas janelas. De como é diferente esta equipa, e o futebol atual, sem que isso a torne mais fraca, elogiando vários jogadores, dos A aos sub-21, que garantem o futuro, mesmo que Ronaldo esteja para durar e o veja no Mundial do Qatar, se calhar para nos dar o título que nos falta.
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Mas o jogador revela também coisas sobre si. De como cresceu numa família pobre, num bairro social (o da Boavista) e chegou a sonhar ser pintor (há rascunhos a prová-lo). E de como foi por falta de dinheiro que começou nas escolinhas do Benfica aos 9 anos, e não no Sporting, de que era adepto (e sócio desde os 2 anos), porque o passe de transportes que tinha não dava até Alvalade (o L123 era mais caro) — mesmo que depois tivesse de pedir ajuda a uma prima benfiquista para contar ao pai, adepto ferrenho dos leões, que ia jogar de águia ao peito.
Maniche foi um dos oito jogadores que atuou nos três grandes do futebol português. Do Benfica guarda a alcunha dada pelo primeiro treinador e os bons tempos em que chegou cedo à equipa principal e depois a capitão, mas também o caso que o marcou para sempre, aquele em que foi colocado a treinar à parte por recusar renovar o contrato que o obrigava a mudar de empresário.
José Mourinho, o treinador que mais o marcou, chamou-o para o FC Porto, clube a que diz dever toda a carreira e onde ganhou tudo. Apesar de ter sido obrigado a comer arroz de grelos, que detesta, em casa de Pinto da Costa com medo de não assinar, hoje garante ser portista de coração e até converteu o pai. Mesmo assim ainda lhe deu o gosto de terminar a carreira em Alvalade.
Pelo meio ainda passou por alguns dos grandes europeus, como Atlético de Madrid, Chelsea ou Inter (foi campeão inglês e italiano), e não lhe faltam histórias para contar. Recusa a ideia de que é “arrogante”, brinca com vários episódios da carreira, recorda cenas caricatas, algumas extravagâncias e revela que apesar de poder viver só dos rendimentos do futebol se tornou um empresário. Agora dedica-se aos vinhos.
[Vídeo. A entrevista na íntegra:]
Quando é que teve aquele clique de que podia ser um grande jogador de futebol, que podia chegar ao topo, aos maiores clubes?
Quando somos jovens, o mais importante é sonhar. Não nos preocupamos, não temos expectativas, as coisas vão acontecendo. Tive a felicidade de ir para o Benfica muito cedo, onde nos começam a incutir a tal mística, a vontade de jogar futebol a um ritmo alucinante, a ter mais responsabilidades, porque estamos num clube muito profissional. Depois vamos ganhando cada vez mais esse gosto pelo futebol. Fui com 9 anos, já jogava na rua com os meus amigos, mas nada é comparável a um clube com a grandeza do Benfica. Depois foi continuar a sonhar cada vez mais, ultrapassando etapas e obstáculos. Quando se tem a noção é quando se assina o primeiro contrato profissional. No meu caso foi com 16 anos.
Hoje é diferente, os jovens jogadores já pensam sair logo para outros clubes da Europa. Na vossa altura era assim?
Não, não. Quem disser isso está a mentir. O principal objetivo, e isso também é um exemplo para os jovens atuais, quando estamos a jogar na casa-mãe é chegar um dia à equipa principal. Estamos a lidar de muito perto com os nosso ídolos e o mais importante é jogarmos no nosso escalão para chegarmos onde eles chegaram. Comecei a treinar com a equipa principal com 16/17 anos e aí assim temos, eu tive, a perceção de ‘eu posso estar aqui’, ‘eu quero estar aqui’. Mas é no clube-mãe.
Quando chegou à equipa principal do Benfica foi no final do chamado ‘Verão quente’ de 94, aquele em muitos jogadores mudaram para clubes rivais, em concreto do Benfica para o Sporting. Tinha também consciência de que seria possível jogar noutros clubes, como no FC Porto e no Sporting, como veio a acontecer?
Quando assinei contrato profissional, com 16 anos, assinei por cinco anos. Jamais pensava jogar noutro clube a não ser no Benfica. Até cheguei, depois de vir emprestado do Alverca, a ser capitão, e nunca imaginava mudar de clube. Mas na vida por vezes acontecem situações inesperadas, que não controlamos. Tudo pode mudar em frações de segundo. Como naquela hora em que depois não renovei de novo o contrato. Mas nessa altura, como jovem, não pensava mudar porque estava num grande clube.
Falou em ídolos. Que ídolos eram os seus?
Não sou muito de ídolos. Gosto é de referências. As referências é que me ensinam. Os ídolos são muito relativos, são aqueles que em jovens vimos jogar na TV e gostamos pelo que fazem dentro do campo, mas não os conhecemos fora do campo. Nessa altura era o João [Vieira] Pinto, porque era uma referência do futebol nacional, um jogador que estava sempre em alta, uma referência no Benfica, um jogador que desequilibrava, e na seleção era um ídolo também para todos os portugueses. Revia-me muito naquilo que o João fazia dentro de campo, porque era muito aguerrido, tinha muita personalidade, dava tudo, e identifico-me com esses jogadores.
Foi para o Benfica apesar de ser sócio do Sporting (porque não tinha o passe L123 para chegar a Alvalade)
Já contou que foi para as escolas do Benfica porque os seus pais não tinham dinheiro para pagar o autocarro até Alvalade. Foi uma infância difícil no Bairro da Boavista?
Difícil mas feliz. O importante é sermos felizes, independentemente das condições financeiras que os nossos pais têm ou não. Não tinha culpa de o meu pai não ter nascido num berço de ouro, tive de trabalhar para os ajudar até hoje. Orgulho-me muito dos princípios e dos valores que eles me deram: sonhar, lutar por aquilo que queremos e colocar objetivos de vida para atingirmos. A senha do passe só dava para o Estádio da Luz, teria de comprar outro, que era mais caro, o L123 na altura, para o Estádio de Alvalade, e já não havia dinheiro para isso. Por isso fui para o Benfica. Até fui a pé na primeira e segunda vez que fui às captações. A minha escola, a Pedro Santarém, em Benfica, era relativamente perto, e para um jovem de 9/10 anos não era muito para correr pelo seu sonho. Nem me custou nada. O pior, quando assinei, era voltar para casa, porque chegava muito tarde e um miúdo vir num autocarro às dez e meia da noite, onze da noite, para um bairro problemático, não era muito aconselhável.
E os estudos ficaram onde?
Fiz o 9.º ano na altura, não tive oportunidade de fazer mais porque fui internacional muito jovem, comecei a fazer parte das seleções jovens, era impensável ter tempo para jogar e conciliar com a escola. Mas há quatro anos acabei de fazer o 12.º ano, era um dos meus objetivos.
Antes de ser jogador de futebol tinha outros sonhos? Queria ser o quê? Engenheiro, médico, advogado…
Gostava de ser pintor. Não de casas (apressa-se a corrigir), já sabia que iam perguntar, não, de desenhar. Quando fui para o Colónia, depois do Atlético de Madrid, eles testaram as minhas qualidades como pintor e desenhador. Dei uma entrevista a dizer que gostava de ser pintor quando era miúdo e eles levaram-me a um bosque para eu pintar. Veio-me à memória a catedral de Colónia e desenhei-a, metade, e eles ficaram surpreendidos. Depois deram aquilo para uma instituição de caridade.
E há por aí quadros para vermos? Nas paredes?
Não. Prefiro guardá-los. Não são assim muito bonitos. Tenho olhos na cara também (risos).
Alguma vez pensou: se tivesse o L123 se calhar tinha sido melhor por causa da formação do Sporting ou sempre achou que o Benfica foi o caminho certo?
O meu pai era ferrenho sportinguista. Quando depois assinei pelo FC Porto e tive sucesso, ele virou portista também. O FC Porto está para mim como os meus pais e os meus filhos, para toda a minha vida. Por tudo o que me deu e continua a dar, a nível de respeito e de projeção mundial. E o meu pai seguiu as minhas pisadas. Mas nessa altura, quando assinei pelo Benfica, estive alguns dias ainda para lhe contar e ele não achou muita piada. Fez-me sócio do Sporting aos 2 anos, ia ver muitos jogos no tempo do Douglas, do Silas, do Luisinho, gostava muito dessa equipa — o meu pai incutiu-me o gosto pelo verde e branco. A minha prima, a minha tia e a minha mãe, que são do Benfica, é que lhe deram a volta à cabeça e lá me deixou ir. Depois começou a seguir-me algumas vezes, as que podia, porque não tinha carro. Mas tentava levar-me e trazer-me a jogos e treinos, gastou algum dinheiro, o que tinha, para me acompanhar.
Como é que um filho chega a casa e diz ao pai sportinguista ferrenho que vai jogar no Benfica?
Não fui eu quem disse, foi a minha prima. Não tive essa coragem.
Acabou depois por terminar a carreira no Sporting, fechando o ciclo. Este ano foi comemorar o título? Achou razoável aqueles festejos em tempo de pandemia?
Não sou hipócrita. Não vou dizer que fui festejar ou fiquei extremamente contente. Fiquei contente, é um clube que me diz alguma coisa, que me deu alguma coisa, sou sócio desde os 2 anos, cheguei a sócio número 7.874. Mas onde fui mais feliz foi no FC Porto. Não sou daquelas pessoas que diz que sim só para parecer bem. Gostei que o Sporting tivesse ganho, mas gostava mais se tivesse sido o FC Porto.
Já não é sócio?
O meu compadre é que me pagava as quotas e depois fazia as contas com ele no final do ano. Se ele continua a pagar, ainda sou.
A sua alcunha, Maniche, vem do avançado dinamarquês alto e loiro Michael Manniche que jogou no Benfica nos anos 80. Os colegas faziam bullying, gozavam consigo?
Foi o mister Arnaldo Teixeira [o primeiro treinador] nos infantis que me pôs essa alcunha. Comecei nas escolas do Benfica como ponta-de-lança, era louro e tinha o cabelo comprido e foi por aí, porque as semelhanças não eram muitas mais. Não sou muito alto e ele é extramamente alto, segundo dizem — não me recordo muito das qualidades que o Manniche tinha –, fazia muitos golos mas não era muito bom tecnicamente. Por isso era mais pelo meu aspeto físico: o cabelo, ser loiro e branquinho. De resto não tinha nada a ver. Nesse ano, nos infantis, até joguei a lateral direito. Mas naquele tempo não havia redes sociais, hoje é que os miúdos nascem ensinados, ninguém sabia quem era o Manniche, queríamos era jogar.
De treinar à parte no Benfica, à época de ouro no FC Porto com Mourinho (apesar do arroz de grelos de Pinto da Costa)
Fez esse percurso todo no Benfica, chegou a capitão, mas depois acabou obrigado a treinar à parte e acabou por sair. Olhando para trás consegue perceber o que se passou? Alguém do Benfica lhe deu uma justificação?
Não há o que justificar. As pessoas sentem-se envergonhadas, do meu ponto de vista. Já contei a minha versão várias vezes, nunca foi desmentida porque não pode ser, porque foi verdade. Tinha um contrato de cinco anos para renovar em cima da mesa, iria renovar, nem olhei para os valores, e o presidente, Luís Filipe Vieira, disse que só renovaria se mudasse de empresário. Tinha na altura o Paulo Barbosa e teria de mudar para o José Veiga, que depois veio a pertencer à estrutura do Benfica. Recusei, porque o Paulo Barbosa me acompanhava desde os 16 anos e sempre me tinha tratado muitíssimo bem. Aquela condição não fazia sentido, não tinha lógica nenhuma. Como eu sou, arrisquei. Acabava o contrato um ano depois, estive a trabalhar à parte dos meus colegas, foi uma fase extremamente difícil da minha carreira, mas a minha persistência e a confiança que tinha em mim projetaram-me para outro clube. O Mourinho, que esteve no Benfica comigo e me colocou a capitão, foi para o FC Porto e levou-me. Mas foi lamentável essa situação, por vezes pode acabar com a carreira de um jogador. No meu caso tive a felicidade de encontrar um treinador que me conhecia, uma equipa fantástica e um grupo de trabalho fabuloso no FC Porto.
Voltou a falar com Luís Filipe Vieira sobre esse assunto? Já lhe perguntou porquê? Já lhe perdoou?
Não tenho de perdoar nada. São situações que acontecem no futebol. A pessoa também não tinha experiência alguma como presidente de um clube, estava a aprender, ainda continua a aprender, e não tenho de desculpar nada, não sou rancoroso. Só que não esqueço. Porque podia terminar a minha carreira, não sabia o que me podia acontecer naquela altura. Há uma mágoa profunda que jamais vou esquecer. Mas há males que vêm por bem.
Antes, Mourinho ainda esteve para ir para o Sporting. Depois daquele 3-0 do Benfica ao Sporting, Inácio foi despedido do Sporting, mas Mourinho também saiu do Benfica e depois veio-se a saber que esteve para ir para o Sporting mas acabou por não assinar. No balneário do Benfica tinham consciência disso?
Fomos apanhados de surpresa. Nem sequer imaginávamos que o Mourinho pudesse sair do Benfica, quanto mais para o Sporting ou o FC Porto. As coisas estavam a correr bem, estávamos a aproximar-nos do primeiro lugar, só que o Benfica estava em convulsões, era um clube totalmente desorganizado. Quando alguém diz que se se ganhar as eleições muda de treinador, independentemente dos resultados, como se sente o treinador? O Mourinho pôs o lugar à disposição e seguiu a sua vida. Como jogadores ficámos muito preocupados, porque nos identificávamos muito como o trabalho dele, a sua forma de ser, a sua transparência, a sua frontalidade. E os resultados vieram a confirmar isso mesmo.
Já pressentia que Mourinho era um treinador diferente de todos os outros que tinha tido? E que ia ter esta carreira?
Não tinha tido ainda muitos treinadores. Mas Mourinho demonstrou logo a sua personalidade e caráter. Nos treinos era diferente. Todos os treinos, mesmo os físicos, eram com bola. Que é aquilo de que um jogador gosta. Se for para correr, mas correr com bola, até nos esquecemos e fazemos tudo naturalmente. Ele também tinha de se impor como treinador, porque até essa altura era apenas tradutor e adjunto. Há uma história comigo, que é exemplo disso, e que conto de forma rápida. Logo na sua primeira semana, num jogo-treino contra os juniores, fiz uma entrada muito forte a um colega, aos cinco minutos. Ele mandou-me correr à volta do campo até ao intervalo. Com uma azia tremenda, lá corri a trote, fui caminhando. Nessa semana não me convocou. Na semana seguinte, à frente de todos os meus colegas, perguntou-me se sabia o motivo de não ter sido convocado. Respondi que tinha sido pela entrada muito dura sobre um colega e que não o devia ter feito. E o Mourinho respondeu-me: “Não foi por isso, eu até gosto de jogadores agressivos, determinados, que dêem tudo nos treinos. Não foste convocado porque estavas muito mal fisicamente. Em 40 minutos só deste duas voltas ao campo”. E aí não pude dizer nada, mesmo que quisesse responder. Isso mostra como ele é.
Mourinho foi o treinador que mais o marcou ou houve outros?
Não. Foi ele. Partilhei o balneário com ele em três fases diferentes. No Benfica, na sua primeira fase também. No FC Porto, onde tivemos o sucesso que tivemos e ficou bem patente o que ele podia ser como treinador. E depois no Chelsea, numa altura complicada para mim, fui para o clube com uma lesão, emprestado pelo Dínamo de Moscovo, sabia que não ia jogar muito, mas mesmo assim ele acreditou em mim. Há um grande reconhecimento de tudo o que ele fez por mim. E dele também. Porque não são só os treinadores que ajudam os jogadores, os jogadores também ajudam a projetar os treinadores para outros patamares.
Como é que está a vossa relação hoje? Acompanhou a carreira dele? Falam regularmente?
Trocamos mensagens. Ele acompanha o o canal 11, onde estou como comentador desportivo, e manda coisas na brincadeira, a dizer que tenho um blazer bonito, um blazer mais ou menos, o cabelo mais engraçado, coisas dessas (risos). Ele tem um grande sentido de humor. E também nos encontramos como embaixadores da FIFA e da UEFA. Falo muitas vezes com ele.
Concorda com a ideia de que o Mourinho, com o passar dos anos, está diferente? Mais tranquilo, menos obcecado pelo sucesso?
Quando se ganha todos os títulos e financeiramente se está bem, se atingiu o auge, só se tem motivos para sorrir, só se tem de ser feliz, porque é um homem realizado. A vida corre-lhe bem, tem ganho quase sempre, apesar de pôr sempre patamares muito exigentes a si próprio.
No FC Porto ganhou a Liga dos Campeões, ganhou a Taça UEFA, ganhou a Intercontinental (onde, como melhor jogador, até recebeu aquele carro que depois trocou por ienes que os seus colegas espalharam no avião por brincadeira), foi duas vezes campeão, ganhou uma Taça, uma Supertaça. Diz-se portista de coração, apesar de ter começado no Benfica e de ser do Sporting. Encontrou assim mesmo tantas diferenças entre estes clubes?
Existe uma grande diferença, sim. Viver no Porto é completamente diferente de viver no resto do país. Sem entrar em políticas, para jogar no FC Porto tem de se dar o dobro ou o triplo daquilo que se dá nos outros clubes. Porque se luta contra tudo e contra todos. Quando fomos campeões europeus era um quadrado numa página do jornal. E um título de jornal sobre nós era sempre de um jogador que podia sair para o Benfica. Essas coisas magoam. Porque o FC Porto é dos clubes que projeta mais o nome de Portugal. E tem de ser tratado como tal. Senti isso na pele como jogador, por isso é que vivo no Porto, adoro estar nesta cidade, porque é diferente. E quando se ganha também tem um sabor muito especial. O clube elevou o nome do país lá fora e por vezes não é tão reconhecido no nosso país como devia ser.
Recorda com um brilho nos olhos o meio-campo Maniche/Costinha/Deco? Nunca mais houve outro igual?
Quando fui para o Chelsea, o Lampard também disse a mesma coisa, que nunca tinha visto um meio-campo tão bom. Conhecíamo-nos fora de campo, havia um conhecimento mútuo como pessoas e jogadores, não precisávamos de olhar para saber onde é que o Deco iria estar, não precisávamos de falar para saber que quando o Costinha saísse da posição dele eu tinha de baixar. Não era preciso comunicar, bastava um olhar para as coisas fluírem de forma natural. O meio-campo é a chave para o sucesso de uma equipa e nós conseguimos fazer isso na perfeição. Em 87 [quando também foi campeão europeu] o FC Porto também tinha um grande meio-campo. O Benfica e o Sporting também tiveram grandes meios-campos. Mas nós conseguimos ganhar e projetar esse meio-campo para a seleção onde tivemos sucesso… quer dizer, sucesso relativo, porque não ganhámos a final à Grécia [no Euro 2004].
Descreveu o ADN FC Porto: onde se inclui Pinto da Costa? Como foi e como é a relação com ele? E qual a primeira imagem que recorda do presidente quando chegou ao FC Porto?
A primeira imagem é forte, de respeito, por tudo o que é e continua a ser, de presidente com mais títulos no mundo. Só de olhar para ele, a sua presença impõe respeito. Recordo-me uma vez de estarmos a ganhar um jogo 2-0 ao intervalo, mas não estarmos a jogar muito bem — e no FC Porto não chega só ganhar, a exigência é muito grande. Ele raramente ia ao balneário, e não foi, foi apenas ao quarto de banho e foi embora, mas nós percebemos que tínhamos de mudar a atitude. A presença dele dizia ‘meus amigos, comecem a correr mais, comecem a jogar melhor, porque eu não estou a gostar’. E isso faz toda a diferença. Não é preciso gritos, não é preciso enxovalhar, não é preciso humilhar. A figura dele bastava. Era só entrar no balneário para se perceber se as coisas estavam a correr bem ou estavam a correr mal.
Há aquela história quando assinou pelo FC Porto, foi a casa dele e teve de comer arroz de grelos, que detesta…
Tive de comer, senão não assinava, não sei… (risos)
Já alguma vez lhe disse que não gostava e que comeu e calou…
Ofereci-lhe o meu livro [“Maniche 18, As Histórias (ainda) não contadas”, onde relata o episódio] e só para verem a memória que ele tem, disse-me: “Mas recordo-me que ainda querias repetir”. E eu respondi: “É verdade presidente, mas não gostava nada, foi só para assinar”. E consegui.
As zangas, o (alegado) mau feitio e a falta de vocação para treinador (para não engolir elefantes)
Voltamos ao Sporting. Acompanhou a presidência de Bruno de Carvalho e aquele momento da invasão da Academia? Como é que viu esse momento e como é que vê hoje o Sporting?
Como todos os apaixonados do futebol, achei triste. O desporto, e o futebol em concreto, não tem lugar para o fanatismo. Todos os jogadores entram em campo para fazer o melhor para a sua equipa, os da seleção para dignificar o nosso país. Ninguém gosta de perder e estas situações são lamentáveis e não podem ocorrer. O Sporting mudou e mudou para bem. Os grandes problemas do Sporting vinham de dentro, também de fora, mas mais de dentro para fora. Agora o Sporting conseguiu estruturar-se, organizar-se e acima de tudo contratar um treinador a condizer com o seu projeto. Está de parabéns pela volta que deu.
Acabou a carreira em 2011 no Sporting, depois de passar pelos três grandes, por grandes clubes estrangeiros, por ganhar quase tudo o que havia a ganhar. Fica como um jogador de topo, mas também com a fama de que tem um feitio impulsivo…
Quando dizemos a verdade somos chamados de arrogantes (risos). Quando se joga com a intensidade com que eu jogava, muita gente dizia que era incorreto. Não compreendo, tento entender, colocar-me do outro lado, mas acho que não. Dava tudo dentro de campo, era uma das minhas características, Não há um clube que tenha representado que possa dizer que não dei tudo. Posso ter jogado mal alguns jogos, mas dei tudo. Mas nunca fui maldoso. Gostava era de ganhar, ainda sou assim, tenho uma personalidade e um caráter muito forte porque não gosto de mentiras, perco muitas coisas por ser assim. E não vou mudar. Quando cheguei ao Sporting, o clube estava numa fase muito complicada, com muitas mudanças de presidentes, de treinadores e jogadores, ficámos em terceiro, depois até foi pior, acabaram em sexto. Mas sempre fui para ganhar.
Mas há alguns casos conhecidos, como aquele em que se zangou com o Nuno Espírito Santo no Dínamo. Depois de dizer que queria sair do clube ele ficou magoado e deixaram de falar até final da época. Já fizeram as pazes?
Sim. As pessoas não sabem, mas quem ajudou a levar o Nuno Espírito Santo para o Dínamo de Moscovo fui eu. Nessa altura fui o jogador mais bem pago do clube e a transferência mais cara do futebol russo. Tinha alguma moral para falar com o presidente (risos) e aconselhar um ou outro jogador. Mas não me adaptei, foi uma transformação muito grande. Foi passar do FC Porto, onde estava habituado a todos os miminhos, em que o roupeiro me colocava a roupinha no lugar, onde pensava futebol uma hora e meia e depois fazia a minha vidinha, para o Dínamo, onde tinha de acordar uma hora mais cedo para ir à procura dos equipamentos para treinar, apesar de o clube pagar muitíssimo bem. Não me adaptei ao futebol russo, não me adaptei ao clube, não me adaptei à mentalidade, e dei uma entrevista a dizer que queria sair. O Nuno Espírito Santo veio logo dizer que os jogadores portugueses do clube não tinham nada a ver com as declarações que eu tinha feito. Mas só falei por mim: eu não gosto, eu não quero, eu quero sair. Não falei pelos meus colegas. Nem pelo meu irmão, que também estava no clube. Mas já me cruzei com o Nuno, ele perguntou-me porque estava chateado com ele e aquilo resolveu-se. Como homens. Não gostei da atitude dele porque não coloquei em causa nenhum colega, só a mim. São histórias que ficam no baú.
Mas há outra, com o treinador Javier Aguirre, no Atlético de Madrid. Essa foi mais dura.
Foi muito mais dura. Não tenho medo de falar dessas coisas, não há nenhum jogador que não tenha uma situação dessas, estão é escondidas, não gostam de contar, só gostam de contar as coisas boas. Eu posso contar tudo, porque no futebol temos coisas boas e más. Tenho de me orgulhar da carreira que fiz e essas situações desagradáveis podem acontecer num balneário. Íamos jogar para a Copa do Rei a uma cidade muito longe de Madrid e nessa semana lesionei-me num joelho. Ele pensava que estava a fazer filme para não jogar com uma equipa muitíssimo inferior e fazer a viagem. O médico tinha feito a ressonância, mas não tinha avisado antes e ele não se convenceu e mandou-me até repetir os exames, mesmo depois de ver os primeiros e falar com o médico. Não me convocou e depois chamou-me à frente de todos os meus colegas e disse-me que já não contava comigo. Fiquei surpreso, ele justificou-se dizendo que todas as pessoas têm de estar disponíveis seja qual for o jogo, dando a entender que não tinha querido ir jogar. Recordo-me que estava com uma toalha enrolada ao corpo, levantei-me a segurar na toalha com medo que ela caísse, e fui direito a ele, quase lhe encostei a cabeça. E disse-lhe palavras que não devia ter dito, que era uma porcaria como treinador, mas ainda pior como pai, porque se não sabia lidar com jogadores, não sabia lidar com os filhos. Arrependi-me e pedi-lhe desculpa na altura, não tinha que misturar coisas pessoais, mas também disse que não retirava nada do que pensava dele como treinador, que era fraco, muita coisa que não vale a pena agora dizer…
E saiu para o Inter.
Fui emprestado ao Inter de Milão [foi campeão italiano em 2007-2008]. Mas depois, no regresso, o Miguel Angel, que era o dono do clube, pediu-me para lhe pedir desculpa, porque queria que ficasse no plantel, disse-me que era jogador do clube e não do treinador. Pus o meu orgulho de parte e fui falar com ele. “Mais uma vez peço desculpa pelas palavras infelizes que tive em relação à sua família, não devia tê-lo feito, estou aqui para ser mais um, para trabalhar, para ajudar o Atlético”, disse-lhe. Mas ele respondeu: “Nuno, estás desculpado, vais treinar, mas nunca vais jogar comigo”. Comecei a treinar atrás da baliza, já não era uma novidade para mim (mais risos), e só quando faltava alguém é que ele me incorporava num treino ou outro. Até que chegou o primeiro jogo da pré-eliminatória da Liga dos Campeões, contra o PSV Eindhoven. Estou no duche e o Forlán e o Kun Aguero disseram-me que ia ser convocado. Respondi-lhes: “Vocês estão loucos, estou a trabalhar à parte, o homem nem me pode ver, como posso ir para um jogo, ainda para mais uma pré-eliminatória da Champions League!” O que é certo é que fui convocado, joguei a titular, fiz um golo e dei o outro para o Aguero. Há histórias incríveis. Ele mais tarde foi despedido e em frente aos meus colegas disse-me que eu é que tinha razão, porque havia muitos jogadores que estavam contra ele, que iam falar nas costas dele ao presidente, que ele veio a saber disso, e que eu fui muito frontal e tinha de se aconselhar comigo e não o fez.
E aquele caso com o Costinha depois de ter escrito na primeira edição do seu livro que tinha sido ele a rasgar a camisola do Rui Jorge no balneário do Sporting e não o Mourinho, como se dizia? Já assumiu que foi induzido em erro, que mandou retirar a passagem das edições seguintes, mas eram amigos, foi adjunto dele até, e mesmo assim ele processou-o?
Essa situação não tinha que acontecer. Foi uma pessoa que induziu em erro o editor do livro. Eu estava no balneário, mas não tive a perceção, não me recordo, nem sei se estava no duche ou vi, e deixei ir para a frente. Não achei também um história tão relevante, até podia ter sido eu, enfim. Mas não foi de bom tom, tinha de lhe ter perguntado primeiro, foi um erro. O editor retractou-se. Retirei automaticamente a história. O processo não foi comigo e o editor chegou a acordo com ele. Fui seu adjunto no Paços de Ferreira e na Académica, só que não me identificava com o trabalho, pedi para sair e a partir desse momento não houve diálogo. Respeito-o como pessoa e colega e ele a mim.
Mas afinal, quem rasgou a camisola do Rui Jorge?
Nem sei agora. Não me peçam para dizer mais nada sobre isso, senão ainda levo um processo (risos).
Porque é que nunca foi treinador? Falta de vocação?
Tenho perfil para o ser, não tenho é disponibilidade mental para encarar essa situação. Ocupa muito tempo, tenho de engolir vários sapos, muitas vezes elefantes, e tinha de estar 24 horas mais uma vez virado para o futebol. E não quero isso para esta fase da minha vida. Virei-me para a produção de vinho, ocupa menos tempo, mas também é uma atividade de que gosto. Já tinha essa paixão há alguns anos, mas quando se joga e bebe um copo as pessoas dizem que se bebe duas garrafas e se as coisas correm mal dizem que estivemos até às três da manhã a beber (mais risos), por isso não podia.
Se viesse a ser treinador, teria um estilo mais próximo do Sérgio Conceição ou do Rúben Amorim?
Estão a querer chamar-me arrogante outra vez (risos). Para se ter sucesso hoje em dia são precisas duas coisas: comunicação e relacionamento humano. Isso tem de fazer parte de um treinador. E tem de se ser sincero e verdadeiro com os jogadores. Por isso é que muitos treinadores não têm sucesso, porque cada vez mais o jogador já não é aquele jogador burro como se achava, que não pensa nas coisas. Sabe falar, sabe comunicar, pede opiniões ao treinador, quer aprender e tem de se estar adaptado a esta nova realidade, tem de se mudar o chip. Muitos treinadores não têm sucesso porque não mudam o chip. Um treinador que foi jogador não pode ser mais um, não pode dar exemplos do passado, até porque pelas redes sociais sabe-se tudo o que se passou, o que fizeste, como fizeste, que carro tens, se vestes uma gravata, calções ou chinelos. Seria um misto de Mourinho e Sérgio Conceição, mais a minha personalidade, porque temos o nosso cunho pessoal. E também um pouco de Pepa, um treinador que é discreto, que sabe aquilo que quer, que não ultrapassa ninguém para ter sucesso. Rúben Amorim também comunica muito bem, tem bons métodos de treino.
Acha que o FC Porto fez bem em renovar com o Sérgio Conceição e o Sérgio Conceição em ficar? Ou há já um certo desgaste?
Desgaste não há. Há um projeto. O FC Porto tem um projeto de há quatro anos e renovou por mais três com o Sérgio Conceição. Isso prova que existe uma linha que o clube quer: ganhar, que é sempre o apanágio daquela casa; mas ao mesmo tempo valorizar, potenciar jovens talentosos, incorporando-os aos poucos na equipa, ou alguns deles transferindo-os por valores muito altos. O mercado, além da experiência e dos títulos, exige hoje esses jogadores para projetar para outros níveis e depois rentabilizar para vender. Está-se a falar de um treinador que já ganhou títulos, financeiramente reforçou os cofres do FC Porto, nestes quatro anos, em 230 milhões, e isso é muito num clube que estava com muitos problemas financeiros e que lhe possibilita agora contratar jogadores que quer para a equipa. É um treinador que conhece a casa, conhece a cidade, identifica-se com os adeptos. Não esquecendo Pedroto ou Artur Jorge, o FC Porto não teve um treinador com tanta mística e que se identificasse tanto com o clube como Sérgio Conceição.
Do Rúben Amorim não parece haver dúvidas, é o campeão. E Jesus, devia sair do Benfica depois desta época?
Os clubes não podem mudar de treinador ano após ano quando as coisas não correm bem. Isso é insustentável. O Benfica investiu muito dinheiro nesta temporada, investiu em jogadores que provavelmente não se adaptaram, não correu bem. Com o investimento que fez, o Benfica obrigatoriamente teria de ganhar títulos, não aconteceu, e quando assim é coloca-se tudo em causa. O que se passa é que metade dos jogadores não foi Jesus quem contratou. Claro que a responsabilidade é sempre dele, é o líder, é quem coloca os jogadores a jogar. Mas do meu ponto de vista houve um scouting mal feito e agora há que tirar ilações do que correu mal e melhorar esta época, que vai ser um ano decisivo. O Benfica não pode errar nas contratações.
Já que falámos de zangas, falemos também dos seus amigos do futebol. O seu maior amigo é o Deco, ficaram amigos desde o Alverca?
Sim, é o Deco. No futebol muita gente diz que tem muitos amigos, mas não concordo. Existem colegas e ex-colegas, um respeito mútuo entre profissionais, mas amigos amigos, tenho muito mais fora do futebol. Isso tem a ver com pessoas, hoje em dia é tão difícil arranjar um amigo que temos de valorizar aqueles que temos e levá-los para toda a vida. E o Deco é fantástico a todos os níveis. Cruzei-me com ele no Alverca e a partir daí, até hoje, somos, já não digo amigos, mas irmãos.
A final perdida no Euro, a ‘juventude’ de Pepe e Ronaldo, as promessas e as apostas para este Europeu
Neste arranque de Euro 2020, ainda tem pesadelos com aquela final do Euro 2004 que perdemos com a Grécia?
Acima de tudo ficou o sentido do dever cumprido. Fizemos uma campanha histórica, pela primeira vez Portugal chegou a uma final de uma competição tão importante e o orgulho foi o de termos dado oportunidade aos portugueses de gostarem mais do seu país. Foi uma organização em termos de segurança, de bilheteira e de tudo o mais, fantástica. Dentro de campo tínhamos a noção da responsabilidade, sabíamos que, mal houvesse um falhanço, o negativismo viria ao de cima, e no primeiro jogo contra a Grécia [que perdemos por 1-2] veio logo o ‘já fomos’. Percebemos que tínhamos de ser um grupo forte e jogo após jogo os portugueses começaram a acreditar, até colocaram bandeiras nas janelas. Foi tudo bom. Não chegámos ao objetivo final, aí veio o pesadelo. Tínhamos todas as condições de vencer essa partida, mas não conseguimos por um erro, que ainda por cima estava projetado pelo Scolari durante a semana, porque a Grécia só conseguia marcar golos de bolas paradas e foi exatamente isso que aconteceu [Angelos Charisteas fez o 1-0 depois de um canto]. Uma falha de marcação, uma saída em falso, pode acontecer a qualquer jogador, mas mesmo assim não é desculpa, porque tivemos muito tempo para marcar um golo ou dois e não fizemos por incompetência nossa e alguma infelicidade. Não foi justo, porque jogámos muitíssimo melhor, mas isso não vale de nada. É uma mágoa tremenda. Mas foi a partir desse momento que os portugueses começaram a exigir mais das outras gerações e a acreditar e a apoiar mais a nossa seleção.
Qual foi a importância de Scolari para recuperar essa auto-estima dos portugueses? E havia um Maniche mais com bola na seleção do que no FC Porto campeão europeu?
Tinha a vantagem de estar a jogar com os dois colegas que tinha no FC Porto e quando se tem uma base é mais fácil. Se recuarmos alguns anos, em 1984 e em 2000, quando tivemos as melhores seleções, do meu ponto de vista, havia sempre essa base.
Foi a melhor época da sua carreira?
Foi, de facto. Dois/três anos de FC Porto, mais dois de Atlético de Madrid e depois duas competições pela seleção, em 2004 e em 2006, no Mundial. Foi onde estive melhor.
Desde 2004, nestes 17 anos, que evolução é que vê — se é que vê — na seleção?
Não podemos olhar muito para o passado. São outros jogadores, outras características, outras formas de pensar. Os métodos de trabalho hoje em dia são melhores, as condições de trabalho são melhores. Não foi por isso que nós não conseguimos ir a uma final. Tudo se consegue quando se tem um grupo coeso, nada se consegue sozinho, remam todos para o mesmo fim, quando se juntam os melhores do nosso país segundo o selecionador. Quanto a diferenças, acho que há um futebol mais físico, onde a qualidade está a passar um pouco despercebida. Os sistemas são feitos com duplo pivô, já não há aquele protagonismo para o n.º 10. E acho que o futebol é criatividade, é magia. Entendo porquê, é para proteger o treinador, porque se tem três/quatro resultados negativos é despedido. Despedem-se treinadores como se veste uma camisola e isso tem de mudar. Os treinadores quando querem ter um futebol positivo, romântico, alegre, de ataque, retraem-se porque primeiro querem não perder e só depois ganhar. Antigamente era o contrário. Era fazer tudo para ganhar e depois ver o que dava na defesa.
Os jogadores eram outros, eram outros tempos. E o Ronaldo, também era outro?
Sim. Os anos passam por todos nós, agora também tenho cabelo branco (risos). Mas ele é uma máquina de fazer golos. Já não tem aquela potência que tinha quando estava a jogar a extremo, coloca-se mais perto da baliza, por isso joga na seleção a ponta-de-lança. Mas tem toda a facilidade em marcar, faz golos com o pé esquerdo, faz golos com o pé direito, golos de cabeça e faz a diferença. E continua igual na motivação, na disponibilidade, é um profissional exemplar, trabalha como se tivesse 17/18 anos. Ele próprio sabe que já não tem a frescura de outrora, mas isso faz parte de um profissional de futebol, não se dura para sempre. Mas ele vai durando e vai dando muitas alegrias à nossa seleção. E espero que continue a dar neste Europeu.
Ainda o vê no Mundial do Qatar?
Acho que ele vai fazer o Mundial do Qatar. Falta à nossa seleção ser campeã do Mundo, quiçá nessa altura façamos um excelente Mundial e ganhemos. Porque também ninguém esperava que ganhássemos o Euro 2016, diziam que éramos das piores seleções e a pior ganhou o único título que temos.
Olhando para esta seleção e para a de 2016, mesmo sem fazer comparações, acha que Fernando Santos tem mais soluções?
O Fernando Santos é um treinador muito conservador. Gosta de ter a sua base e confiar nos jogadores. Tem essa base e vai incorporando jogadores que estão num momento de forma tremendo nos clubes e quase obrigatoriamente têm de ser chamados.
Esta é uma seleção que pode ser considerada ‘velha’ pela idade de muitos jogadores?
Não acho. O Ronaldo tem 36 anos e é dos melhores jogadores do mundo, faz a diferença nos clubes por onde passa. Fez na Juventus, tornou-se o melhor marcador de todos os tempos. O Pepe é um dos melhores centrais do mundo ainda hoje. Não vejo na idade nem um posto, nem um peso… Isso só conta quando as coisas não correm bem. Temos aqui uma simbiose de experiência com juventude e é assim que deve ser, na seleção e nos clubes. O que faz a diferença é o talento.
Dos jovens jogadores que estão na seleção A e dos que jogaram a final pela seleção sub-21, se tivesse de apostar naquele que é a maior promessa, quem escolheria?
Essa seleção sub-21 tem jovens com um potencial e um talento muito grande. Não devemos estar preocupados com o futuro da seleção porque temos uma geração que aí vem com muita capacidade. Não sei se é uma revelação, acho que já é uma certeza… Aliás, gosto de dois… Do Vitinha, dos sub-21, e gosto muito, muito mesmo, do Diogo Costa, do guarda-redes da seleção e do FC Porto. Encheram-me as medidas. Também gosto muito do Daniel Bragança, do Fábio Vieira, do Dani Mota, noutro registo, temos uma seleção jovem fantástica. Na seleção A, o Nuno Mendes fez uma época tremenda, e o Pote, o melhor marcador da nossa liga. Temos muita qualidade.
Quando é que demos esse salto, quer em termos de jogadores, quer também de treinadores, para o momento em que estamos agora, com portugueses nas grandes equipas mundiais?
O primeiro salto foi o Mourinho, o Mourinho abriu as portas a muitos treinadores, pelo sucesso. De jogadores (risos), não vou dizer que fui eu e o Costinha, mas fomos para o Dínamo de Moscovo e abrimos muitas portas para outros jogadores irem para a Rússia… Tivemos uma geração de ouro, com Paulo Sousa, Fernando Couto, Figo, Sérgio Conceição, Rui Costa, Vítor Baía, tantos exemplos. O selecionador nessa altura tinha tanta dificuldade em levar todos, uns ficavam no banco, outros não eram convocados. Por isso é que também não quero ser treinador.
Falou de médios e de um guarda-redes, mas não de centrais. Será esse o maior desafio que Portugal tem nesta altura quanto a opções para o futuro?
Temos uma geração com futuro. Antigamente diziam que não tínhamos laterais esquerdos, agora temos com muita qualidade. Agora fala-se de centrais mas, tirando o Pepe, está aí o Rúben Dias, o Fonte já tem uma idade, mas o Domingos está na lista. E há outros que vão aparecendo.
Vamos lá a umas apostas: quem é que vai ser campeão europeu? E até onde é que Portugal pode chegar?
Retiro três frases de Fernando Santos: primeiro ele diz que futebol não é matemática pura; depois diz que os jogadores têm de ter disponibilidade; e, por último, diz que a seleção é candidata a ganhar este título, mas não diz que é favorito. Temos excelentes jogadores, tecnicamente muito evoluídos, que estão a jogar nas melhores equipas do mundo, mas temos que fazer a diferença é dentro do campo. Favoritos? São sempre os mesmos. A França está fortíssima, a Alemanha está fortíssima, a Itália também. Calhámos num grupo extremamente difícil, mas gosto de Fernando Santos por ele ser realista, é o grupo que é.
Falhou ser dono de um clube, está a apostar no negócio dos vinhos e deixou-se de extravagâncias
Em 2017 teve aquele projeto do Camacha, que acabou um ano depois, e percebia-se que lhe dizia muito, por estar perto de um bairro social. O que é que correu mal e o que é que retirou dessa experiência?
Fui contactado pelo presidente, o Camacha nem sequer tinha dinheiro para inscrever jogadores, sou uma pessoas de sonhos — às vezes correm é mal (risos), acordo e depois é um pesadelo — e avancei. Foi negativo, mas tirei ilações. Encontrei outra realidade, o meu projeto era levar o clube para níveis nacionais, não estávamos todos a remar para os mesmos objetivos e confesso que não estava também preparado para assumir um projeto como presidente. Queria. Muito. Mas temos de ter a consciência de que é preciso prepararmo-nos antes para abraçarmos certos projetos. Todos os dias tinha problemas, havia um subsídio dado pelo Governo Regional mas só para jogadores madeirenses, se levasse um do continente retiravam-me 10%, e para construir uma equipa forte não pode ser só com jogadores locais. Encontrei uma equipa também já velha, com muitos vícios, e não vivendo lá regularmente prejudicou-me, faziam coisas nas minhas costas de que não sabia, enfim… Tinha um protocolo, vi muitas coisas de que não gostei e não fiquei, não renovei. Apenas cumpri a obrigação de pagar os ordenados aos jogadores e treinadores até final da época. Foi um erro de casting, aprendi, injetei algum capital meu, foi um risco, mas não volto a fazer, porque é muito mais fácil trabalhar com o dinheiro dos outros do que com o nosso (risos).
E agora, desde 2018, o outro sonho, uma aposta nos vinhos, o “18 my Maniche”? Só dá o nome ou é mesmo negócio?
Não, tive várias propostas para dar nome a um vinho e não quis. Queria fazer um vinho próprio, em que fosse eu a comprar as vinhas, as uvas, fazer toda a produção, fermentação, marketing, tudo, tudo, tudo. Queria encontrar um parceiro credível, que tivesse um nome no mercado, interno e externo. Fiz uma parceria com a Quinta da Pacheca. Não quero chegar a um hotel ou a um restaurante e não saber explicar o meu vinho às pessoas que o pedem. Tenho dois DOC, de branco e tinto, o primeiro lote esgotou, já estamos a preparar um reserva para sair no final deste ano, já estamos a exportar para Suíça, França, Alemanha e Luxemburgo. Não esperava em plena pandemia ter este sucesso. Foram muitas horas, fui fazendo com a enóloga Maria Pimentel um vinho ao meu gosto, que é um risco.
É também comentador no Canal 11. Tem mais algumas ocupações? Vive tanto os sonhos que tem, não quer também retomar a pintura?
Não, essa era um brincadeira, não comecem a fazer filmes do pintor ‘à séria’, não é nada disso, eram só rascunhos (risos). O vinho levou-me a conhecer pessoas diferentes, de outras atividades, a aprender bastante. Tenho aliás um projeto para lançar no Gerês um terreno que vou explorar nessa linha. Já tenho um branco e um tinto do Douro, no Gerês só posso fazer o verde e o espumante. Vou começar este ano com alguns quartos… depois explico melhor. Sou uma pessoa que vai à luta, não fico sentado no sofá a ver TV ou séries. Gosto de ir para frente, para o terreno, aprender com pessoas que acho que têm algo que me ensinar.
Ganhou o suficiente com o futebol para agora viver tranquilamente e fazer estes negócios ou tem mesmo que fazer estes negócios para viver?
Podia estar parado completamente e viver do que ganhei no futebol. Lá está, as pessoas depois dizem que sou arrogante e prepotente (risos). Mas só tento responder de forma genuína. Mas não, não precisava de ter estes negócios para ter uma vida tranquila. Tenho isto porque é uma ocupação, é uma novidade, e porque não gosto de estar parado. Se a gente pára não aprende. Ficamos inúteis. Gosto de ter uma visão abrangente de todas as áreas, ir à procura de conhecer tudo um pouco e ver se vale a pena ou não investir. Às vezes não é preciso muito dinheiro para ter sucesso, é preciso é investir bem. Tinha todas as condições para estar sossegado na minha casa, mas não sou essa pessoa. Nasci pobre, mas não quero ficar pobre para toda a vida.
Qual foi a maior extravagância que fez com o dinheiro que ganhou no futebol?
Fiz muitas que agora não fazia. Começamos a pensar de forma diferente. Quando se joga futebol o dinheiro vai entrando com facilidade, o contrato está assinado. Mas quando acaba tem de se ter um plano de vida, a projeção que queres para o futuro: que ocupação nos deixa feliz e que negócio queremos ter para ganhar. Porque toda a gente quando abre um negócio é para ganhar. Eu abro para ganhar, não para perder, fico furioso quando perco. Mas tenho de ter os pés assentes no chão, abrir com cuidado, com prudência, apesar de ser muito positivo.
Mas conte lá uma dessas extravagâncias?
Já comprei carros no valor de mais de meio milhão, tive um Lamborghini desse valor. São coisas da juventude, em que existe alguma irresponsabilidade. Já abri garrafas de champanhe, não uma mas várias e de vários valores, quando hoje em dia bastam duas e fico contente porque divirto-me na mesma. Naquela altura pensava que três ou quatro ou cinco eram um show off do tamanho do mundo, mas aquilo não levava para lado nenhum. Roupa, ténis, antes eram dez pares de ténis Dolce & Gabbana, agora compro dois ou três, já uso mais chinelos e estou aqui na piscina ao lado. Há prioridades e há momentos na vida. Também há que desfrutar, e tentei fazer isso no momento. Agora tenho outra responsabilidade como empresário, sem gastar o dinheiro que me custou tanto a ganhar.
Ao longo do seu percurso, do que é que mais se orgulha e do que é que mais se arrepende?
Arrependi-me de ter saído do Atlético de Madrid, não o devia ter feito, foi um erro de carreira. E provavelmente acabei a carreira muito cedo. Podia ter jogado mais alguns anos, em países como os Estados Unidos, a Arábia. Mas pronto, acabei quando tinha que acabar porque a minha cabeça… O futebol tem uma componente muito emocional e jogar ao mais alto nível, em clubes com a obrigação de ganhar e atingir os objetivos todos durante a época, cansa a nível mental. Vim para o Sporting numa altura complicada e cansou demasiado, fiquei extremamente desgastado, e acabei nessa altura. Mas acabei feliz, com a consciência tranquila, e com uma carreira de que me orgulho muito. Fiz tudo aquilo que queria, para o bem e para o mal, tomei as atitudes que quis, e sofri as consequências, boas e más. Mas a coisa positiva que me encheu mais o ego foi o primeiro ano de FC Porto, aquele em que ganhei a Taça UEFA [vitória sobre o Celtic por 3-2].
Como é que gostaria de ser recordado?
Como sou. Penso que sou consensual tanto nos adeptos do Benfica, como do Sporting e do FC Porto. Mas acima de tudo como português, porque dei tudo pelo meu país, dignifiquei o meu país e gostava de ser reconhecido como essa pessoa que deu tudo dentro de campo, fui verdadeiro. Sou um ser humano normal, com os seus defeitos e virtudes, e fiz tudo pelos clubes que representei.