A manhã nasceu limpa, mas o barulho dos tambores e das buzinas era intenso e os manifestantes levantavam dezenas de bandeiras do Chega e do Brasil na Avenida D. Carlos I. Mas o protesto contra a presença de Lula da Silva, Presidente do Brasil, antes da sessão solene do 49.º aniversário do 25 de Abril não era o único motivo de muitos dos manifestantes que se foram ali juntando: a corrupção estava também no centro dos discursos que se iam ouvindo — seja corrupção no Brasil, com referências a Lula da Silva, seja corrupção em Portugal. “Qualquer dia temos o Sócrates a discursar”, dizia um dos manifestantes, com os olhos posto na Assembleia da República. E esta foi uma das frases mais ouvidas e que foi, aliás, repetida pelo líder da bancada parlamentar do Chega, Pedro Pinto, já depois do discurso do Presidente do Brasil dentro do Parlamento. “Corremos o risco de um dia ter José Sócrates a discursar no parlamento. Os outros partidos olharam de lado para o nosso discurso na Assembleia da República, mas nós não nos importamos”, disse aos manifestantes.
Mas José Sócrates não é o único político citado. Ouve-se, mais do que uma vez, a referência aos anos que antecederam o 25 de Abril. O saudosismo de um tempo em que a liberdade não existia também saiu à rua esta terça-feira e alguns diziam para quem estava ao seu lado que “o melhor de sempre foi o dr. António de Oliveira Salazar”. Além desta, bastante repetida, ouviam-se outras frases a registar. Num grupo de homens, vestidos de preto, dizia-se que é preciso “despertar os portugueses”. “E matar alguns”, acrescentava outro, enquanto dava uma gargalhada.
A vontade de protestar era tanta, que a equipa do Chega, responsável por coordenar esta manifestação, ia fazendo uma contagem decrescente para a chegada do Presidente brasileiro. “Faltam 20 minutos para o bandido chegar”, iam dizendo ao microfone. Mas quando Lula da Silva chegou, os manifestantes nem deram conta, já que o carro onde seguia entrou pelo lado oposto do Parlamento, fora do campo de visão de quem estava contra a sua presença.
“Lula, ladrão, o teu lugar é na prisão”
No meio dos militantes do Chega, encontravam-se várias camisolas do Brasil e outras com a cara de Jair Bolsonaro, o antigo Presidente brasileiro. Mas, do lado dos brasileiros, estar contra Lula da Silva não significa estar de acordo com a Bolsonaro. “Lula tem duas caras. Lula age conforme a conveniência do momento. Ele é perigoso, ladrão e, infelizmente, engana todos ou quase todos. Eu não apoio Bolosnaro, mas Bolsonaro com certeza não é favorável a esta guerra. Mas eu não sou Bolsonaro, sou Brasil. Se o Lula estivesse certo, eu com certeza apoiaria o Lula”, defendia Regina Romeiro, de 62 anos, que está de visita a Portugal com o marido. Quando souberam que o Presidente brasileiro iria estar no Parlamento, “não houve dúvidas” e marcaram presença, apesar de admitirem não conhecer bem as linhas que conduzem o partido de André Ventura.
E uma das frases de ordem mais ouvidas, sobretudo quando perceberam que Lula da Silva já estava dentro do Parlamento, era precisamente “Lula, ladrão, o teu lugar é na prisão”. Aliás, Rosileine Santos, brasileira a viver em Portugal há 17 anos, gritou bem alto estas palavras. “Estou indignada com essa vergonha que está a acontecer hoje, por homenagearem um ladrão, que roubou os cofres do Brasil, roubou todo o tempo e ele não foi eleito, ele foi colocado lá”, afirmou ao Observador, repetindo mensagens sem sustentação factual de que as eleições brasileiras foram manipuladas.
“Estou também indignada com o facto de os políticos portugueses chamarem um ladrão para discursar no dia em que se comemora a liberdade. É uma data histórica e memorável, não se deveria homenagear um ladrão”, acrescentou a brasileira, que disse ainda que Lula “não deveria vir em dia nenhum”.
São contra o Presidente do Brasil, mas o pior é a corrupção em Portugal. E há quem diga nem ser do Chega
No meio da manifestação, ouvem-se várias conversas. Uma delas, entre três pessoas, que não tinham bandeiras do Chega, nem camisolas do Brasil. Conversavam sobre a aprovação das medidas sobre identidade de género nas escolas, que tiveram luz verde todos os partidos, com abstenção do Chega e do PCP. “Não acho bem”, dizia Paula Santos. Depois, ao Observador, Paulo Sérgio, que integrava o grupo, explicava: “Como é que uma criança de seis anos tem consciência para saber?”. E é aqui que divergem em relação ao partido de André Ventura. Não sou militante de partido nenhum. Venho, porque há coisas que acho importantes. Todas as pessoas podem ter uma opinião. Este Estado é que é ditador”, acrescentou.
No meio de tanto tema — como a corrupção em Portugal e a vinda de Lula da Silva –, Duarte Henriques, que veio de Torres Vedras, defende ainda que “é muito feio ter um Presidente de outro país a discursar”. Porquê? “Este é um dia nacional, não é para um estrangeiro discursar”, defendeu. “Isto só tem uma explicação: estão todos feitos uns com os outros. Este é um feriado nacional, não é para os estrangeiros virem para cá. Para já, é um corrupto e não ganhou as eleições. Aquilo foi tudo montado”.
E, depois, um tema também muito falado pela direita radical: “Só tem voz ativa quem tem alinhamento de esquerda, todos os outros estão proibidos”, acrescentou.
As desavenças, os partidos que apareceram na manifestação e os que vieram de longe
André Ventura tinha dito que esta seria “a maior manifestação de sempre contra um chefe de Estado”, mas a rua que liga a Avenida 24 de Julho a São Bento não terá juntado mais que dois a três mil, segundo a versão da própria organização, ou mil, de acordo com os números da PSP à agência Lusa. Ainda assim, há quem tenha vindo de longe para marcar presença. Jorge Silva e António Alves são desses exemplos. Saíram bem cedo da Figueira da Foz, só para conseguirem estar na manifestação e os dois recém-militantes do partido de André Ventura acrescentaram que a sua desilusão vai além da corrupção e de Lula da Silva no Parlamento português.
“O meu descontentamento é o Marcelo. O Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa que me desiludiu completamente. No primeiro mandato ainda votei nele, mas no segundo já não votei. Foi a pessoa que mais me desiludiu. Pensava que ele era um homem pela democracia, mas para mim é um comuna”, disse Jorge Silva. E este foi o único dia das comemorações de Abril em que os dois amigos saíram à rua. “No 25 de Abril trabalho. O 25 de Abril não foi o dia da liberdade. Deitou-se abaixo uma ditadura, mas não se deu o acesso à liberdade. Se não tivesse havido 25 de novembro, hoje não teríamos liberdade”, acrescentou António Alves.
Pouco antes destas palavras e mais longe da vista destes dois amigos que vieram da Figueira da Foz, registava-se o único momento de tensão a registar nesta manifestação. Do lado esquerdo do palco, juntaram-se mais dois partidos, nenhum com representatividade parlamentar: o MPT e o Ergue-te (ex-PNR). Houve troca de insultos entre um dos membros do Ergue-te, José Pinto Correia (ex-PNR), e outro do Chega, mas rapidamente o ambiente voltou ao normal e o barulho dos bombos voltou sobrepor-se às vozes.
Já no fim da manifestação, altura em que a sessão solene no Parlamento já tinha terminado, André Ventura discursou aos manifestantes que ainda estavam na Avenida D. Carlos I. E voltou a mencionar o antigo primeiro-ministro: “Durante os últimos seis, sete anos perguntámos: Será que José Sócrates vai ser julgado? Será que os milhões das construtoras, os milhões que foram desviados e que permitiam vidas de luxo, será que alguma vez chegarão à Justiça? Agora começamos a ver que não. No Brasil, o que é que aconteceu com todas as construtoras, onde a Lava Jato mostrou que tinham propina? Todos nós ouvimos. Foram todos inocentados. Esta não é a Justiça que nós queremos”.