Esta entrevista a Manuel Cargaleiro foi realizada e publicada pelo Observador em julho de 2022, que voltamos a destacar a 30 de junho de 2024, dia da morte do pintor, aos 97 anos.
Quando lhe falamos da idade, Manuel Cargaleiro responde pelo outro lado: “Faltam-me quatro anos e meio para os 100.” Pega-nos pelo braço, a bengala na outra mão, e com entusiasmo guia-nos pela coleção do Museu Cargaleiro — um edifício moderno inaugurado há 11 anos no centro de Castelo Branco. Aponta para uma pintura, para uma peça de cerâmica, tudo obras que foi comprando e lhe ofereceram ao longo de décadas. Sorri e fala com ironia, sem levar nada muito a sério — talvez a desvendar um dos segredos da longevidade. “Sou muito otimista e acredito na boa-vontade dos outros”, afirma.
O encontro deu-se esta semana a propósito do doutoramento honoris causa que a Universidade da Beira Interior lhe concedeu nesta sexta-feira em cerimónia na cidade vizinha da Covilhã. Mas para já, aqui no museu que leva o nome do filho da terra — sob o olhar da companheira de quase 40 anos, Isabel Brito da Mana —, vamos ouvir histórias muito antigas e memórias de personalidades que conheceu.
Manuel Cargaleiro nasceu a 16 de março de 1927 em Chão das Servas, concelho de Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco, e cedo acompanhou a família até à Sobreda da Caparica, onde viveu até trocar definitivamente Portugal por França, no fim da década de 50. Há quase sete décadas que é parisiense de Saint-Germain-des-Prés. Ali se tornou artista plástico de repercussão internacional, pintor e ceramista premiado. Em 2019 recebeu a Medalha de Mérito Cultural, entregue pelo primeiro-ministro e a ministra da Cultura, e ainda a medalha Grand Vermeil, a maior distinção da capital francesa, esta das mãos da autarca Anne Hidalgo. Confessa, porém, que honrarias e comendas o deixam atrapalhado. “Sempre fui muito tímido, mas não tenho vergonha.”
O resto está nos livros. Aos 22 anos apresentou-se pela primeira vez numa exposição, organizada em 1949 no Palácio Foz, em Lisboa, pelo Secretariado Nacional da Informação. No mesmo espaço, em 1952, estreou-se em nome individual, com folha de sala assinada pelo artista plástico Jorge Barradas (1894-1971). Integrou as tertúlias de intelectuais em volta do Café Gelo e da Brasileira do Chiado e antes do salto para Paris, com bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, deu aulas de cerâmica na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Pelo meio, de 1960 a 1963, foi vereador da Cultura na Câmara Municipal de Almada.
Consagrado a partir de França, pintor cotado em leilões, representado primeiro pela famosa Galeria Albert Loeb e hoje pela Helene Bailly, tem obra espalhada pelo mundo em coleções particulares. Está no Museu Nacional do Azulejo, onde lhe organizaram uma grande exposição em 2007, e na Coleção de Arte Contemporânea do Estado – CACE, que regista apenas três óleos. Admiram-no muito em Itália, onde nasceu em 2004 a Fondazione Museo Manuel Cargaleiro. Os painéis da Via Sacra no Santuário de Nossa Senhora de Fátima em 1955 e o revestimento da estação do metro Champs-Élysées/Clemenceau em 1995 e 2019, são exemplos da produção que deixa. Mantém ligação à Fábrica Viúva Lamego, onde tem atelier, à Faiencerie de Gien e às fábricas de cerâmica de Vietri Sul Mare e Ravello.
Agora o mestre senta-se connosco a uma mesa e é ele quem decide o rumo. Começa por dizer que não tem computador e que o telemóvel só lhe serve para chamadas. “Nem sei mandar mensagens. Também não me faz falta.” A conversa acontece.
Como é que sabe que o computador e o telemóvel não lhe fazem falta?
Porque já vivo no meu mundo, um mundo um pouco especial. Vivo num sonho. Desejo e quero viver nesse sonho. Sou contra a guerra, contra os conflitos. O meu mundo é estar o mais possível na natureza. Sabe qual era a minha conversa esta manhã com o chauffeur? As memórias que tenho de quando a água corria ali à beira da estrada e pelas encostas. Lembro-me dos ribeirinhos aqui das aldeias da Beira Baixa e das raparigas que iam buscar água à fonte. A fonte entornava água, era tudo muito fresco e verde, havia violetas e ervas. Aqueles perfumes marcaram-me. Em França há um palácio, o château de Villandry, que penso que vem do século XVI, em que os jardins são de legumes. Em vez de flores, há legumes. É extraordinário. Se me perguntassem qual é a minha mensagem…
Nesse caso: qual é a sua mensagem?
É difícil dizer. A minha mensagem talvez seja orientar as pessoas para viverem junto à natureza e serem simples. O simples não significa que não conheçam os poetas. Ainda há poucos dias me lembrei do Agostinho da Silva, o filósofo. Passei um tempo em Brasília e ele estava lá, de maneira que à noite passeávamos e falávamos sobre estes temas.
Década de 70?
Talvez década de 60. Era ele professor no Brasil e queria que eu ficasse a dar aulas.
Por que não ficou?
Porque sou de Paris.
A simplicidade é também a mensagem do seu trabalho?
Mas eu complico tanto… Quero meter tudo dentro de cada quadrado. Trabalhei tanto… Deve haver poucos pintores que tenham trabalhado tanto. Há um que, evidentemente, fez muito mais do que eu, o Picasso. É um dos génios que admiro. Mozart e Beethoven vêm a seguir. Quando andava no liceu, eu e o Sidónio de Freitas Branco Pais, comprávamos discos de música clássica. Os meus pais, agricultores, gente muito simples que saiu daqui da aldeia de Chão das Servas, onde havia apenas umas 20 casas.
Saiu daqui com que idade?
Já fui fazer os dois anos à Sobreda.
As memórias das fontes e das águas são de quando vinha de férias?
Sim, os meus pais passavam pelo menos um mês aqui no verão. E vínhamos sempre pelo Natal ou pela Páscoa.
Ainda tem familiares aqui?
Muitos primos, alguns são primos direitos.
Porque é que falou de Agostinho da Silva?
Era um homem muito simples, mas extremamente profundo. Falava muito de arte, mas não da pintura e assim. Falava da criação. Ele queria saber porque é que um homem se torna músico ou pintor.
Já sabe o que o levou a si a ser artista plástico?
Não sei. O que acho importante foi o eu ser egoísta e não querer abdicar, para que não me roubassem tempo. Tenho andado a pensar nisto: já fiz tanta coisa, trabalhei muito em pintura, sim, mas sobretudo estudei muito a cerâmica. Quando era miúdo — esta história já a contei muitas vezes — ia à escola ao Monte da Caparica, depois ia ao Correio. Pegada com o Correio existia a olaria do senhor José Trindade. Punha-me a olhar para o homem e ele, de brincadeira, punha logo uma bola de argila e depois com as mãos e a roda fazia aparecer uma jarra. “Um milagre, este homem é um mágico”, pensava eu. Depois dava-me uma bola de argila e eu ia para casa. Quando chegava, punha-me a modelar e fazia bonequinhos.
Foi o início de tudo?
Foi. Só sei que queria pegar no barro e fazer.
Como foi a infância?
Tentei encontrar a felicidade no isolamento, nos meus sonhos. Vou dizer uma coisa que nunca disse e talvez não devesse dizer. Naquela altura tínhamos a II Guerra Mundial e eu escrevia coisas horríveis. O meu pai comprava todos os dias o Diário de Notícias e eu lia as coisas horrorosas sobre a Alemanha do Hitler e ficava muito impressionado. Escrevia umas redações contra aquilo. Sabe, metia aquelas coisas escritas numa caixa e depois ia enterrar a caixa. É estranho, isto. Queria destruir aquilo.
Era uma criança sozinha?
Tinha um irmão, um bocadinho mais velho, mais dois anos. Ele foi veterinário por engano. Naquela altura os pais e os professores é que decidiam o que o filho deveria ser. O meu irmão queria ser de Letras, mas dizia-se que era coisa para raparigas. “Os homens vão para veterinários, para estarem no campo e tratarem das vacas.”
Para si queriam o quê?
Qualquer coisa que não fosse artes. A minha mãe protegia-me imenso e ajudava-me às escondidas, mas o meu pai tinha uns amigos que achavam que os artistas são todos uns desgraçados. Tive de concorrer para ciências, entrei para a Escola Politécnica. Aí fui presidente da Juventude Universitária Católica, juntamente com a Maria de Lourdes Pintasilgo. Éramos colegas, muito amigos.
Ela já era uma mulher interventiva?
Agressiva, mas muito boa pessoa e muito inteligente. Ficámos amigos para a vida inteira. Bom, ainda fiz o segundo ano, mas a pouco e pouco deixei. Andava muito a pé para poupar os 10 tostões do elétrico. Juntava e pagava a uma senhora, uma pintora judia fugida ao Hitler, que estava em Lisboa e dava umas lições de desenho em casa, para quem queria concorrer à Escola de Belas-Artes. Já não me lembro do nome. Ela tinha muita qualidade, sabia imenso. Valeu a pena, porque lá entrei para belas-artes. Um dia chego a casa e digo que já não estou em ciências. Um escândalo. Aí o meu pai diz: “Tens cama, mesa e roupa lavada aqui em casa, mas para estudar não.” No dia seguinte peguei no jornal para encontrar lugares vagos e encontrei um concurso para a Caixa Geral de Depósitos. Fui para a fila, com uma quantidade de rapazes.
Ia ser bancário?
E fui. Mas acabei por não ficar a atender o público. O chefe da secretaria fez-me uma pergunta: “Quais são os seus projetos aqui na Caixa Geral de Depósitos?” E respondi: “Quero cá estar o menos tempo possível.” Ele recebeu bem a resposta. Já estava na Escola de Belas-Artes, queria era estudar. Aquele homem compreendeu e pôs-me na Caixa Geral de Aposentações, onde não tinha de atender o público, só fazia cartas e burocracia. Ganhava 1800 escudos por mês, era bastante. Vivia com 900 escudos e os outros guardava-os.
Vinha todos os dias da Margem Sul para Lisboa?
Levantava-me muito cedo, apanhava o barco em Cacilhas e saía no Terreiro do Paço. Depois andava de autocarro e de elétrico. Havia uns barcos maiores, que também transportavam carros. Eu e os outros rapazes, quando havia temporal, preferíamos ir nos barcos mais pequenos, sabe porquê? Para ver as mulheres a gritar de susto. Tínhamos prazer em ver aquele espetáculo.
Há sempre bom humor na maneira como conta a sua história de vida. Teve uma vida leve?
Sabe, tento o mais possível… Não me façam mal, não me incomodem. Percebe? A brincar, digo que sou como o meu signo, que é Peixes. Quando incomodam os peixes, eles fogem dali para fora. Sou assim. Tento escapar-me, sempre fui assim. A vida não é destrutiva. Tenho um sentimento construtivo da vida.
E criativo.
Isso acontece. Sento-me a uma mesa e começo a fazer. Não sou eu que trabalho é o subconsciente. Antigamente até tinha este pormenor: gostava muito de trabalhar de manhã, quando me levantava, ainda de pijama. Havia outros que ficavam noite dentro a criar. Eu não.
Fale-nos daquele tempo em que frequentava os cafés de Lisboa?
Mas ainda não lhe contei porque é que fui para a António Arroio. Não sei já em que ano [1953], fiz a segunda exposição da minha vida, na Galeria de Março, com organização do José-Augusto França. Não sei porquê, era um garoto, mas estes grandes nomes vinham ao meu encontro. Atraía-os sem saber porquê. Fui adotado na Brasileira do Chiado pelo Almada, Botelho, Jorge Barradas. Quem me meteu neste meio foi Luís Reis Santos [professor de História da Arte em Coimbra], um intelectual que tinha sido bailarino, julgo que a mulher dele também. Quando estava ainda no liceu, ele fez uma conferência no Museu de Arte Antiga sobre a pintura do século XVI na Holanda. Fui com um colega e fiquei fascinado. Não sabia nada e estava a perceber tudo, bastava ver os slides que ele passava. No fim, fui falar com ele. Sempre fui muito tímido, mas não tenho vergonha. Disse ao Luís Reis Santos: “Faço uns desenhos e gostava que visse.” Depois fui-lhe mostrar e ele em reposta deu-me um livro de sobre a história da cerâmica na Coreia. Percebi logo que aquilo que fazia não era nada ainda. Foi ele que me levou pela primeira vez à Brasileira para me apresentar ao Jorge Barradas, que me convidou logo para ir ao atelier dele na Fábrica da Viúva Lamego, na Palma de Baixo, ao lado da Universidade Católica.
A exposição na Galeria de Março foi um marco?
Tive imenso sucesso, vendi praticamente tudo. O Diogo de Macedo [escultor e museólogo] é que escreveu o texto para a exposição. Nessa altura, veja a sorte da vida: reforma-se um velhote que fazia o clássico azulejo azul e branco na António Arroio. Era lá professor. O Lino António, um pintor moderno que era diretor da escola, intercedeu a meu favor. Levou à exposição o Leite Pinto, que era ministro da Educação. Depois fui chamado ao gabinete do ministro, que me queria contratar como professor. “Mas, senhor ministro, não tenho nada. Fiz o segundo ano da Faculdade de Ciências e tenho a frequência das Belas-Artes.” E ele garantiu-me que me ia nomear professor efetivo de pintura cerâmica da António Arroio. Nessa altura, saí da Caixa e durante seis ou sete anos passei a dar aulas.
Como é que se dava com os miúdos?
No inverno, quando ia de sobretudo, tirava uma mão de gesso de uma estante e quando as minhas alunas chegavam cumprimentava-as com a mão de gesso. Elas davam gritos.
Era um provocador?
Era uma brincadeira. Tinha 22 ou 23 anos. Foi nas minhas aulas que realizámos todos os painéis, cada um com seis metros de altura por quatro de largura, da Via Sacra de Fátima, que ainda lá estão. Não havia esmaltes, tudo preparado, como há hoje. Fui muito amigo da Amália Rodrigues. Dizia-lhe: “Gostava de pintar como a Amália canta.” Ela era tão natural, eu gostava de ser natural. Tenho medo de não ser. Não quero não ser natural.
Via-se como professor o resto da vida?
Nem pensar, sabia que a minha vida não era aquilo. Tinha deixado tudo para ser pintor e fazer cerâmica e ia ficar ali na escola? Não. Queria mais.
Era ambicioso ou sonhador?
Sou sonhador. Não tenho ambição, que é uma coisa depreciativa. Tenho desejo de fazer, sou sincero comigo. Sou construtivo, não sou negativo, sou positivo. Quero o bem para todos, mas não me chateiem, deixem-me na minha liberdade.
Os cafés de Lisboa eram um espaço de liberdade?
O Gelo era claramente um refúgio, ninguém nos chateava. Havia muitos que estavam ali à espera que eu chegasse para lhes pagar o café. Outros esperavam entrar para a Legião Estrangeira, porque queriam morrer. Aquilo era um meio onde havia de tudo. Dei-me muito com o Herberto Helder, que ia almoçar a casa dos meus pais e depois desaparecia, ia lá para o meio das hortas e passava assim o dia. Dei-me com o Manuel d’Assunção, um grande homem. No meio daquele grupo havia uma rapariga, não sei o nome, era uma prostituta, amiga de todos.
Em que medida a religião o influenciou?
Fui sempre católico e tenho uma grande admiração pelo povo de Israel. Acho que toda a gente aqui da fronteira, de onde eu sou, resulta de uma mistura. Houve uma médica em Paris que aqui há um ano, mal me viu entrar no consultório, disse logo: “Mais um marrano.” Aqui nesta região somos todos marranos. Por isso é que as casas antigas da zona de Castelo Branco, quando agora as restauram encontram isso, estão cheias de símbolos judaicos. Cheguei a passar umas semanas em Israel a convite do embaixador [1985]. O meu bairro em Paris, o “sixième arrondissement”, também é muito judaico. Moro ali há 65 anos, veja lá.
Que relação tem com a religião ou com a espiritualidade?
Sou católico. Jesus Cristo foi enviado por uma força a que, para facilitar a vida, chamamos Deus. Tive uma relação muito forte com a Vieira da Silva. Na vida, na arte, na conversa. Conhecemo-nos em Paris. Um dia pediu-me para ir almoçar lá a casa, depois fechou-se comigo no atelier. Estava numa crise de confiança. Eu disse: “O Arpad é um grande pintor, muito bom do ponto de vista técnico, e a Maria Helena é uma bruxa genial.”
Que quis dizer com isso?
Que ela era o que era malgré ela. Não foi ela que quis ser artista, aconteceu ser assim. Ela foi intermediária, fez o sacrifício revoltado e sofrido de fazer as obras que fez. Sou exatamente o contrário. Aquela admiração que ela tinha por mim, vinha daí, ela via o contrário na minha obra. Ela sofria. Digo isto porque me falou na religião. Quando se assinalaram 10 anos da morte dela, a embaixada em Paris organizou uma cerimónia, onde até esteve a Maria Barroso. O jovem padre fez um discurso a dizer que a Vieira da Silva não era católica. Fiquei pior que estragado e disse ao padre que durante seis meses tinha ido muitas vezes a casa da Vieira da Silva para lhe ler excertos dos Evangelhos. Ela queria encontrar frases para gravar na pedra do túmulo. Como é que não era católica? Daí aquelas perspetivas que nunca mais acabam. Eu ponho flores, ponho alegria, ela não. Ela procurava o depois, o que há depois. Eu dizia-lhe: “Maria Helena, depois, depois… Depois há Deus.” É aquela força que não somos capazes de explicar por mais voltas que demos.
A criatividade também não se consegue explicar?
Também não. Ninguém sabe. Uma vez fui a Assis só para ver os frescos do Giotto. Quando vi aquilo percebi que aquele homem foi enviado por uma força especial. Não caiu ali de repente.
Houve algum momento em que olhou para um dos seus trabalhos e pensou que tinha havido ali a mão de Deus?
Fiz vários painéis para igrejas muito carregados de religiosidade mas que não é evidente. Uma das invenções mais bonitas da Humanidade são os anjos. Anjos, arcanjos, serafins. Já tenho perguntado a cardeais, incluindo ao nosso Tolentino, quem inventou os anjos. Acho que foi uma invenção desses malandros que são os poetas. Tenho uma admiração muito grande pelos anjos. E também pelos santos, pela vida deles.
Normalmente é uma vida de sofrimento.
E não só, também de malandrice. E também há santos que são uns chatos.
Que relação teve com o Estado Novo?
O meu pai teve alguma influência porque chegou a presidente do Grémio da Lavoura e provedor da Santa Casa da Misericórdia. Deixou uma obra social incrível. Quando começaram a fazer a siderurgia no Seixal, os operários que para lá foram viam as crianças morrer porque não havia ali um médico. Havia problemas horríveis, tinham de ir de barco para Lisboa. O meu pai levou a Misericórdia do Seixal a fazer uma maternidade. Um dia, foi convidado a entrar para a União Nacional, disseram-lhe que era inevitável, pela posição que tinha. Ele recusou. “No dia em que me obrigarem a entrar para a União Nacional, demito-me de tudo e volto a plantar couves e a semear batatas.”
A sua saída de Portugal teve relação com o ambiente político?
Teve, do ponto de vista estético, não do ponto de vista real. Uma coisa que aprendi com o meu pai foi a nunca nos metermos na política. E mesmo assim cheguei a ser vereador em Almada nos anos 60, quando o Aquiles Monteverde era presidente da Câmara. Éramos muito amigos, sempre fomos muito sinceros um com o outro.
É verdade que nos primeiros anos em Paris conheceu Picasso e Max Ernst?
Conheci toda a gente daquele tempo. Com o Max Ernst havia uma amizade, ele era um velhote, eu era um jovem. Ele queria que eu fosse com ele ver exposições, para não estar sozinho. Com o Picasso, foi diferente, nunca falei com ele. Vi-o várias vezes, estive ao lado dele no Café de Flore. Por decisão, nunca me aproximei. Um dia, o Armando Martins Janeira, embaixador de Portugal em Tóquio, chega a minha casa e pede-me para ir comprar três bifes para o jantar, a mulher dele também ia aparecer. Eu morava no número 19, o Picasso no número 7 da Rue des Grands Augustins. Um dia cheguei ao talho e encontrei o Picasso. “Estou diante de um génio.” Não tinha nada para lhe dizer. Diria o quê? Que gostava muito da pintura dele, que ele era um génio? Tudo seria pouco. Senti-me tão pequeno ao pé daquele monstro que nem quis dizer-lhe nada.
Imagine que as pessoas faziam o mesmo consigo: que nem lhe falavam por o admirarem tanto.
Sou a pessoa mais acessível.
Quando é que percebeu que iria ficar para sempre em Paris?
Nunca. Renovava a autorização de residência de três em três anos, não queria receber a autorização definitiva. Pensei sempre que voltaria a Portugal, mas fui sempre adiando.
Vem muitas vezes?
Depende das fases, mas já me canso muito.
Qual é a sua melhor obra?
É aquela que ainda não fiz.
E das que já fez?
São todas mais ou menos. A minha obra mais importante é o conjunto. Não quero dizer uma coisa qualquer sem categoria, teria de sentir. Dizer que isto ou aquilo é bonito não vale nada. Sabe, o que ainda me surpreende é o fogo, porque na cerâmica tanto trabalho eu como trabalha o fogo. Na pintura, as minhas obras estão sempre por acabar. Ainda hoje pego num quadro de 1965 e preciso de corrigir e acrescentar coisas. Hoje tenho mais força. Não é força física, é força mental.
Dizem que o azul é das suas cores preferidas.
É e não é.
Mas o azul não é a cor da tristeza?
É a cor da introspeção. Introspeção é tentarmos ser felizes sozinhos. Uma vez li uma poetisa argentina: “Sempre que saio à rua encontro um cão lazarento que me estraga o dia.” Estarmos tranquilos e em paz é muito difícil.
Para terminar: pode dizer-nos qual é o problema da arte portuguesa?
Não quero dizer mal de ninguém, a arte portuguesa tem grandes artistas. Sabe, todos os países do mundo querem ter um ou dois pintores em Paris, todos. Os portugueses que foram para lá nos anos 20 vieram-se todos embora. Malgovernados, com falta de espírito de sacrifício… Os pintores portugueses são fabulosos do ponto de vista técnico, a formação é ótima, têm todas as qualidades para triunfarem em qualquer lado. Mas, quando decidem sair de cá, olham para o que se faz nos outros países e pensam fazer o que veem fazer. Fazem o que os outros já fazem. Sabe qual é o resultado? Passam a ser artistas de segunda, não levam uma coisa nova. Olhe, há um miúdo fabuloso que gosta de mim, até vamos agora fazer uma coisa juntos. É o Vhils. Aquela ideia de picar a parede é admirável, ele tem uma visão de longe fantástica. Há uma profundidade na obra dele que admiro imenso. Ele está a fazer o que ninguém faz.
Já têm estado juntos?
Algumas vezes. Ele é do Seixal, onde há uma escola com o meu nome, e quando era miúdo via os meus trabalhos, porque eu organizava exposições e dava muitas coisas lá para as escolas. À volta da cabeça dele andam imagens das minhas cerâmicas. Fico todo contente, o miúdo tem 35 ou 36 anos. Há uns dias fui ao atelier dele no Barreiro, um pavilhão fabuloso, enorme. Vi lá um painel em madeira, todo pintado de uma cor. Digo-lhe assim: “Isto não está muito bem”. E o Vhils: “Quer pintá-lo? Eu dou-lho.” Portanto, já tenho uma ideia do que fazer, vou acrescentar, e espero trazer o painel aqui para o museu. Ele quer que assinemos os dois. Parece-me bem.