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Manuela Gonzaga: “Era impossível não amar António Variações”

Há 12 anos, Manuela Gonzaga publicou a primeira biografia do cantor de “O Corpo é que Paga”. Esta quarta-feira apresenta uma nova versão na Feira do Livro de Lisboa.

António Variações morreu há 34 anos, a 13 de junho de 1984, e em tributo ao cantor é apresentada esta quarta-feira a nova versão da biografia assinada por Manuela Gonzaga – às 19h00, no auditório da Feira do Livro de Lisboa, com presenças confirmadas do músico Vítor Rua e da fotógrafa e produtora Teresa Couto Pinto. O livro intitula-se “António Variações: Entre Braga e Nova Iorque” e tem chancela da Bertrand. Deve chegar às livrarias na próxima semana.

Trata-se da versão revista e aumentada da única biografia integral do cantor, publicada em 2006 pela Âncora Editora e esgotada há vários anos. São 316 páginas baseadas em investigação própria, dezenas de depoimentos e várias entrevistas concedidas por Variações no início da década de 80. É reconstituída a vida de António Joaquim Rodrigues Ribeiro – do nascimento em 3 de Dezembro de 1944 a fenómeno pop português com carreira profissional de apenas três anos e dois álbuns. (Um filme biográfico está a ser rodado neste momento, com realização de João Maia, papel principal de Sérgio Praia e estreia marcada para o próximo ano).

Em entrevista ao Observador, Manuela Gonzaga conta que nunca foi amiga íntima de Variações e quando lhe pediram que o entrevistasse pela primeira vez, em 1982, até achou que seria uma tarefa “sem interesse nenhum”.

Nascida no Porto em 1951, viveu em Moçambique e Angola e regressou a Portugal depois do 25 de Abril de 1974. É mestre em História da Expansão, tem quatro filhos e três netos e dedica-se em exclusivo à escrita de romances, biografias e livros infantis.

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Em 2015 foi pré-candidata à Presidência da República, com o apoio do partido Pessoas Animais Natureza, mas não chegou a avançar. Hoje sai-lhe um elogio quando questionada sobre o desempenho do presidente Marcelo Rebelo de Sousa: “Posso não estar de acordo com ele em muitas coisas, mas era importante termos alguém assim, tão culto e educado.”

A escritora prepara um novo livro, mas não quer entrar em pormenores. “Porque eles fogem. Começamos a falar dos livros e eles desaparecem, vão-se embora.”

A capa da nova edição da biografia de António Variações

Escreve nas primeiras páginas que António Variações não tem seguidores nem poderia ter tido. Porquê?
Porque há uma autenticidade muito grande nele. Alguém tão autêntico não segue ninguém, segue-se a si próprio. E se alguém o seguir nunca poderá ser como ele.

O que é que explica essa singularidade?
Acho que ele era um génio. É um miúdo que aos cinco ou seis anos vai para cima de um penedo, perto da casa dos pais, no Minho, e diz que não está para ninguém. Solta a voz para cantar e ouvem-no a dois quilómetros. Ao mesmo tempo, era uma criança tímida, até se escondia atrás das portas. Só posso achar que era um génio.

Curiosamente, só depois dos 35 anos é que se tornou cantor profissional.
Já tinha tocado em bandas de garagem e fez um ou outro espetáculo antes de aparecer pela primeira vez na televisão, em 1981 [no programa “Passeio dos Alegres”, de Júlio Isidro]. Já tinha dado concertos na discoteca Trumps e no Scarllaty Club. Em Luanda, durante o serviço militar, tinha tido uma banda que ganhou um prémio. Explico isso no livro. Ele está o tempo todo a arranjar maneira de se profissionalizar. O contrato com a Valentim de Carvalho estava assinado desde 1978, mas passaram-se alguns anos até o chamarem para gravar, porque a própria editora não sabia bem como lidar com aquele carisma, como lançar aquele nome no mercado.

O facto de Variações não saber música também terá sido um obstáculo?
Alguns testemunhos dizem que sim, porque, à época, quem não sabia tocar não era muito bem visto no meio musical. Mas ele sabia dizer que música queria, cantarolava a melodia, “na, na, na, na…”, tinha uma caixa de ritmos, cantarolava e gravava em cassetes. O António não apareceu para a música só com o programa do Júlio Isidro. Foi sempre fazendo tentativas de se profissionalizar.

"Ninguém frequentava a casa dele, a não ser pessoas muito próximas e, mesmo assim, nem todos os amigos lá iam. Ter uma jornalista para almoçar deve ter sido uma ideia desagradável para ele, mas depois o momento tornou-se engraçado."

O trabalho como cabeleireiro era uma forma de sustento enquanto não conseguia viver só das canções?
Era, era. Uma vez, numa entrevista, disse-me que até tinha perdido algumas oportunidades, por exemplo, de ser cabeleireiro num paquete de longo curso, porque estava à espera que o chamassem para gravar o primeiro disco. E há uma entrevista dele na época com o título “A tesoura ganha para a música”.

Em que circunstâncias conheceu António Variações?
Foi em 1982, quando trabalhava para a “Música & Som”, que era o grande órgão de comunicação social em termos musicais. Uns anos antes, tinha começado a fazer a rubrica “Um Almoço Com…”. Almocei com muita gente, ia mesmo a casa das pessoas. Dina, Lena d’Água, Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Cândida Branca Flor, Rui Veloso, UHF, Heróis do Mar, tantos, tantos. Entrevistava cantores e músicos que estavam a aparecer, o que era raro na imprensa da época, que preferia dar destaque aos artistas estrangeiros. Uma vez, o nosso diretor, o Artur Duarte Ramos, pediu-me para ir entrevistar o António Variações. A minha primeira reação foi achar que não tinha interesse nenhum. Pensei: “Vou detestar falar com um cabeleireiro que canta Amália.” Todos somos preconceituosos, por isso é que muitas vezes entendo a raiz do preconceito.

Nessa altura, ele tinha publicado o máxi-single “Estou Além”, onde aparecia uma versão de “Povo que Lavas no Rio”.
Exatamente. Eu nem tinha ouvido com atenção, achava absolutamente incrível, mas o Artur Duarte Ramos pediu-me e lá fui a casa dele. Quando aquele ser me abre a porta, fiquei absolutamente desarmada. Aquela casa, o avental dele que era igual à toalha de mesa, os pratos das Caldas, as cores, os objetos considerados de mau gosto… A certa altura, comecei a rir, levámos o almoço todo a rir, com as lágrimas a caírem pela cara. A decoração daquela casa, com aquele critério, com aquele bom gosto, aquilo era um “happening”.

Variações fotografado por Teresa Couto Pinto

Diz no livro que António Variações preparou esse almoço meticulosamente.
Sim, ele agia assim em tudo na vida. Ninguém frequentava a casa dele, a não ser pessoas muito próximas e, mesmo assim, nem todos os amigos lá iam. Ter uma jornalista para almoçar deve ter sido uma ideia desagradável para ele, mas depois o momento tornou-se engraçado. Ele não cozinhou nada, disse logo que nem um ovo sabia estrelar. Fiel à sua frontalidade, disse que a receita se chamava “spaghetti fingido”, porque íamos fingir que tinha sido ele a cozinhar. Quem, na realidade, tinha tratado do almoço tinha sido o amigo Jelle Balder, um holandês, que, eu soube mais tarde, era o namorado. Só depois é que comecei a ouvir a música com atenção. Entrevistei-o mais algumas vezes e comecei a achar aquele homem absolutamente fantástico.

A imagem de estrela pop que hoje temos já existia naqueles breves anos de carreira?
O programa do Júlio Isidro deu-lhe holofotes, mas ele não ganhou o aplauso unânime. Mesmo no meio gay, não era unânime, até porque convivia mal com aspectos mais extremados da vida gay, sentia-se incomodado, não se identificava com algumas formas de estar. Ao mesmo tempo, adorava a Guida Scarllaty [travesti Carlos Alberto Ferreira] e tinha atuado no Scarllaty Club. Achava que Portugal precisava de cor e alegria. Talvez nem sempre o aceitassem por ele ser um pouco autoritário e ter mau feito. Isso é proverbial. Tinha anticorpos no próprio Ayer, o salão de cabeleireiro onde trabalhou. Não era uma pessoa de consensos. Não dizia um palavrão, mas nos círculos mais íntimos podia ser um bocado despótico.

Mantiveram contacto frequente, chegaram a ser amigos?
Encontrávamo-nos algumas vezes no Pap’Açorda, no Bairro Alto, ele ia lá jantar e eu também. Conversávamos sempre, mas não ficámos amigos, de maneira nenhuma.

Era um pouco anti-social?
Sim e ao mesmo tempo encantador. Sempre que me encontrava era muito gentil, genuinamente gentil. Penso que gostou sempre das entrevistas que lhe fiz, talvez fosse isso. Mas não passámos esse patamar. Ele era acima de tudo um solitário, em absoluto.

"Ele foi o embaixador telúrico das nossas raízes mais arcaicas. Foi embaixador do genuíno, do autêntico, das cores estridentes. A própria voz. Nunca mais conheci ninguém assim."

O visual muito excêntrico para os padrões da época foi uma forma de provocação?
Não, ele pensava “eu sou eu, o resto não importa.” Há pessoas muito espalhafatosas que não são autênticas, que usam a excentricidade como defesa ou provocação, mas o António era genuinamente aquilo. Mesmo os objetos que tinha em casa, coisas de aparente mau gosto, que cheiravam a uma certa pobreza que as pessoas queriam esquecer, tudo isso era verdade para ele. Era impossível não amar aquele homem. Foi uma paixão coletiva, de Portugal inteiro. Quando morreu, tive uma crise de choro como se fosse alguém da minha família. Não fui sou eu, foi o país. Ele tocava-nos. Escrevo no livro que ele foi o embaixador telúrico das nossas raízes mais arcaicas. Foi embaixador do genuíno, do autêntico, das cores estridentes. A própria voz. Nunca mais conheci ninguém assim. Não estou a dizer que não há mais génios, já tive a sorte de me cruzar com alguns, até vivi no Palácio do Alberto Pidwell [do poeta Al Berto, em Sines, por volta de 1975]. Mas ele era singular, inventou o próprio caminho.

É isso que explica que ainda falemos de Variações 34 anos depois de morrer?
Sem dúvida. Na editora, quando uma das assessoras de comunicação soube que íamos relançar a biografia, ficou completamente eléctrica de felicidade. E ela nunca o conheceu. Gente que nem era nascida quando ele morreu, tem um amor imenso pelo António. E há um aspeto mais recente. Acho que nos últimos anos as pessoas têm vindo a tomar consciência do poder das palavras dele, do grande poeta que António Variações foi. Ele era esmagador. Era tanta informação: a informação visual, vocal, a música, os poemas. Não se conseguia processar aquilo tudo. Com o desaparecimento dele, houve uma pausa e as pessoas começaram a pensar: “Espera, ele dizia isto, ele cantou aquilo, as palavras dele queriam dizer isto”.

Quanto tempo demorou a escrever a primeira edição, em 2006, e agora a fazer a revisão?
A escrita demorou cerca de um ano e meio. Estive a falar com pessoas, algumas das quais já morreram, como é o caso de alguns irmãos dele. Liguei para a América, para França. Estive no Minho, no lugar de Pilar, onde ele nasceu, passei uns dias largos naquela zona. Do mundo gay, muitas pessoas já morreram. A Rosa Lobato de Faria, minha querida amiga, também já desapareceu. Há quem queira fazer livros em seis meses, pela minha parte, não prescindo do método e do trabalho, porque estaria a mentir-me ou a defraudar o meu desígnio, o meu sonho. A nova edição foi um processo um pouco demorado, porque não conseguimos logo os direitos, mas em cerca de quatro meses fiz a revisão.

Foto de Teresa Couto Pinto

Porquê reeditar? Não ficou satisfeita com o livro de há 12 anos?
Achei que na altura não tinha sido possível fazer algumas coisas. Quando passei para a Bertrand, em 2006, pensei logo em reeditar os meus livros que estavam noutras editoras. Fui fazendo outras coisas, mas essa ideia ficou, era uma pressão que eu tinha. Ainda por cima, este livro foi muito usado, muito copiado, e nunca fui creditada. Fazem espetáculos e não dizem que se basearam no livro, conferências… Nem uma referência. Acho que é desonestidade intelectual, mas às vezes é também ignorância. Agora, com a fixação do texto através de uma editora como a Bertrand, penso que as pessoas terão mais cuidado.

Como se explica que nunca não tenha havido outras biografias de António Variações?
Houve uma, mas era um plágio, nem quero falar. Cheguei a estar numa conferência com o autor do plágio. Foi um escárnio. Se fosse eu, e quisesse escrever uma biografia do António hoje, ficaria aflita porque esta já existe e a investigação foi muito longe. Só procurando outro ângulo.

Falta tradição biográfica em Portugal?
Pode ser, mas há uma questão prática: quanto é que uma pessoa tem de ganhar para estar um ano e meio parada só a investigar? Neste caso, acho que é uma biografia pura e dura, com uma linguagem que a torna de fácil leitura, mas outras pessoas já têm feito notar que o livro também dá a ver, de forma acessível, o que era a emigração, a Guerra Colonial, o êxodo rural, o trabalho infantil, a violência, o pobre e o rico, a aldeia e a cidade. No fundo, a vida do António atravessou todas essas realidades. É uma criança que trabalha a partir dos 10 anos, como uma larga percentagem das crianças portuguesas naquela época, e as pessoas não sabem isso sobre ele. Lutou pelo seu sonho, é uma raridade. Não pôs em causa trabalhar, mas quis vir para Lisboa, porque sabia que aqui iria abrir as asas. Os retrógrados às vezes dizem que têm saudades do outro tempo. Saudades de quê? De quando as crianças iam trabalhar ou levavam tareia na escola? Quando os miúdos comiam pouquíssimo e não tinham sapatos para ir para a escola? Era bom? Não era pouca gente, eram 80% dos portugueses, os que viviam no campo. Os retrógrados dizem que ao menos vivíamos em paz? Ah sim, e a Guerra Colonial? Dizem que pelo menos havia respeito. Não, não havia respeito, havia medo, havia delatores nas esquinas. Eu não era de uma família rica, mas tínhamos quatro refeições por dia e andei no liceu, até ter descoberto que o liceu não era acessível a todos. É muito importante que estas realidades sejam contadas, neste caso através de um protagonista chamado António Variações. Não estou a dizer que o nosso tempo, hoje, é muito bom, estou a dizer que o nosso passado recente foi muito mau.

"Vivi a vida das redações, foi um tempo maravilhoso e agora está tudo tão diferente. Havia seniores e desapareceram dos jornais. Hoje vejo muitos disparates escritos. Os mais velhos tinham memória."

Fez jornalismo durante três décadas e há 18 anos tornou-se escritora a tempo inteiro. Tem saudades do jornalismo?
Estou muito grata ao percurso como jornalista, mas agora vejo-me como escritora. Estarei a usar ferramentas do jornalismo, quando me dá jeito, ou da historiografia, como neste caso, mas sinto-me no direito de as usar de forma literária. Vivi a vida das redações, foi um tempo maravilhoso e agora está tudo tão diferente. Havia seniores e desapareceram dos jornais. Hoje vejo muitos disparates escritos. Os mais velhos tinham memória, às vezes diziam-nos: “Tu não escrevas isso dessa maneira, porque isso não é bem assim, etc.” Quando vejo uma coisa muito injusta ou muito maravilhosa, ainda penso que se estivesse a trabalhar num jornal iria escrever sobre aquilo. É um pensamento quase automático. Acho que a pessoa nunca deixa de ser jornalista.

Gostou de ver a sua personagem no filme “Al Berto”, de Vicente Alves do Ó?
Ainda não vi. Sei que a história está mais efabulada do que aquilo que foi. A pessoa com quem eu vivia na altura era um “hippie”, usava túnicas e rabo de cavalo. Acho que no filme me puseram um namorado de fato e gravata. Foi uma época exultante.

O filme saiu no ano passado e recria uma parte da sua vida, como é que ainda não arranjou tempo?
Vou ter de ver. Aquilo também me comove… Se calhar estou a tentar resistir a essa comoção.

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