Antes de escrever “12 regras para a vida” e de se tornar um fenómeno de popularidade a nível global — lutando contra o “politicamente correto” e as “ideologias de género” — o psicólogo Jordan Peterson escreveu Maps of Meaning, que acaba de ser editado em Portugal pela Lua de Papel/Grupo Leya, com o título “Mapas do Sentido: A Arquitetura da Crença“.
Este livro foi escrito ao longo de 13 anos. Foi publicado, originalmente, em 1999 pela prestigiada Routledge, especializada em publicações académicas. No livro, o autor, que ainda não era a vedeta internacional em que se transformou, procura explicar, à luz da ciência, a construção e a manutenção de sistemas de crenças, e o seu reflexo na regulação das emoções.
Mas a história começa com a sua própria experiência, dos conflitos internos que sentiu na formação da sua ideologia, e dos pesadelos que o atormentaram enquanto essa formação não se consolidou.
O Observador faz a pré-publicação do prefácio da obra, que vai para as bancas esta terça-feira, dia 15 de outubro.
Descensus ad inferos
“Uma coisa que não vemos protege-nos de uma coisa que não compreendemos. A coisa que não vemos é a cultura, na forma intrapsíquica ou interna como se manifesta. O que não compreendemos é o caos que deu azo à cultura. Se a estrutura da cultura for perturbada, ainda que inadvertidamente, o caos regressa. Faremos tudo – qualquer coisa – para nos defendermos desse regresso.
“O próprio facto de um problema geral ter acometido e assimilado uma pessoa por completo é uma garantia de que o sujeito realmente o vivenciou e talvez tenha obtido algo desse sofrimento. Depois refletirá o problema na sua vida pessoal e, destarte, revelar-nos-á uma verdade.” (Carl Jung, 1978)
Fui educado sob os auspícios protetores, por assim dizer, do cristianismo. Isto não significa que a minha família fosse explicitamente religiosa. Durante a infância, participei em conservadoras cerimónias protestantes com a minha mãe, mas ela não era uma crente dogmática, nem autoritária, e em casa nunca falávamos de questões religiosas.
Quanto ao meu pai, parecia essencialmente agnóstico, pelo menos no sentido tradicional. Recusava-se a pôr os pés numa igreja, exceto em ocasião de casamentos e funerais. Não obstante, os resquícios históricos da moralidade cristã permeavam-nos o lar, condicionando-nos as expectativas e as reações interpessoais de formas por de mais íntimas.
Afinal de contas, quando eu estava a crescer, a maioria das pessoas ainda ia à igreja; para mais, todas as regras e expectativas que constituíam a sociedade da classe média eram de uma natureza judaico-cristã. Até o número cada vez maior daqueles que não toleravam rituais e crenças formais continuavam a aceitar implicitamente – e a seguir – as regras que subjaziam ao jogo cristão.
Quando eu tinha uns doze anos, a minha mãe inscreveu-me na catequese, que servia como introdução à participação enquanto adulto na igreja. Eu não gostava de frequentar aquelas aulas. Não me agradava a atitude dos meus colegas ostensivamente religiosos (que eram poucos) e não lhes invejava a falta de estatuto social. Não gostava do ambiente escolar da catequese. Mas, acima de tudo, não conseguia engolir o que me ensinavam ali.
A dada altura, perguntei ao pároco como é que ele conjugava a história do Génesis com as teorias da criação apresentadas pela ciência moderna. Ele não as conjugava de todo; e, além disso, no fundo parecia mais convencido pelo ponto de vista evolucionário. Eu já estava à procura de um pretexto para desistir, e aquela foi a gota de água. A religião era para os ignorantes, os fracos e os supersticiosos. Deixei de ir à igreja e juntei-me ao mundo moderno.
Apesar de ter sido educado num ambiente cristão – e de ter tido uma infância boa e feliz, o que é pelo menos de alguma relevância –, estava mais do que disposto a enjeitar a estrutura que me havia acolhido. Também não houve quem se opusesse aos meus esforços rebeldes, quer na igreja, quer em casa – em parte porque os que eram profundamente religiosos (ou que talvez quisessem sê-lo) não dispunham de contra-argumentos intelectualmente aceitáveis. Afinal, vários dos princípios basilares da crença cristã eram incompreensíveis, senão mesmo absurdos. O nascimento virginal era impossível; o mesmo quanto à noção de alguém poder erguer-se do mundo dos mortos.
Terá o meu ato de rebeldia precipitado alguma crise familiar ou social? Não. As minhas ações foram tão previsíveis, de certa maneira, que não perturbaram quem quer que fosse, à exceção da minha mãe (e até ela depressa se resignou ao inevitável). Os outros membros da igreja – a minha “comunidade” – já estavam absolutamente habituados ao ato cada vez mais frequente de deserção, e nem deram por isso.
Será que o meu ato de rebeldia me afetou, pessoalmente? Só de uma forma que não fui capaz de perceber até muitos anos mais tarde. Desenvolvi uma preocupação prematura com questões políticas e sociais de larga escala por volta da altura em que deixei de frequentar a igreja. Porque seria que alguns países e algumas pessoas eram ricos, felizes e bem-sucedidos, enquanto outros estavam fadados à miséria?
Por que razão as forças da NATO e da União Soviética se encontravam constantemente em pé de guerra? Como seria possível que alguém se comportasse como os nazis durante a Segunda Guerra Mundial? Subjacente a estas considerações específicas havia uma pergunta mais abrangente, mas, na altura, mal conceptualizada: como é que o mal – em particular, o mal fomentado por um grupo – representava o seu papel no mundo?
Abandonei as tradições que me apoiavam mais ou menos ao mesmo tempo que deixei a infância. Portanto, eu não tinha uma “filosofia” socialmente construída que fosse mais abrangente e à qual pudesse recorrer para ganhar um maior entendimento à medida que me ia tornando consciente dos problemas existenciais que acompanham a maturidade. As derradeiras consequências dessa lacuna demoraram anos a manifestar-se por completo. Entretanto, porém, a minha preocupação nascente com questões de justiça moral encontrou uma resolução imediata. Comecei a trabalhar como voluntário para um partido de pendor algo socialista e adotei a linha do partido.
A injustiça económica era a raiz de todo o mal, na minha opinião. Tal injustiça poderia ser retificada como consequência de uma remodelação de organizações sociais. Eu podia participar nessa revolução admirável, pondo em prática as minhas crenças ideológicas. A dúvida desvaneceu-se; o meu papel era evidente. Em retrospetiva, pasmo-me com o caráter estereotipado das minhas ações – ou melhor, reações. Não sendo capaz de aceitar racionalmente as premissas da religião tal como as entendia, virava-me, consequentemente, para sonhos de utopia política e de poder pessoal. A mesma armadilha ideológica que tem apanhado milhões de outras pessoas nos últimos séculos.
Quando tinha dezassete anos, deixei a cidade onde cresci. Mudei-me para um sítio perto, onde frequentei uma faculdade de somenos, que me oferecia os primeiros dois anos da licenciatura. Foi aí que me envolvi na política universitária – na altura, era mais ou menos de esquerda – e fui eleito para a direção de governadores da faculdade.
A direção era composta por pessoas política e ideologicamente conservadoras: advogados, médicos e empresários. Todos tinham uma boa (ou pelo menos prática) educação, eram pragmáticos, confiantes e francos; todos tinham concretizado algo difícil e digno de valor. Eu não era capaz de deixar de os admirar, apesar de não abraçar a posição política deles. E o facto de os admirar desconcertava-me.
Eu tinha assistido a vários congressos do partido esquerdista, como estudante político e trabalhador ativo do partido. Esperava emular os líderes socialistas. A esquerda tinha uma história longa e honrada no Canadá, atraindo pessoas verdadeiramente competentes e dedicadas. No entanto, eu não conseguia gerar grande respeito pelos diversos ativistas de pouca importância com que me cruzava nesses encontros.
Parecia que viviam para se queixar. Frequentemente, não tinham qualquer carreira, família ou educação completada – nada tinham, para além de ideologia. Eram rabugentos, irascíveis e pequenos, em todos os sentidos da palavra. Eu deparava-me, consequentemente, com a imagem espelhada do problema que encontrava na direção da faculdade: não admirava muitos dos indivíduos que acreditavam nas mesmas coisas que eu. Esta complicação adicional só veio ampliar a minha confusão existencial.
O meu companheiro de quarto, que era um cínico perspicaz, expressava ceticismo em relação às minhas crenças ideológicas. Dizia-me que o mundo não podia ser completamente encapsulado dentro dos limites da filosofia socialista. Eu já tinha chegado mais ou menos a essa conclusão, mas não lhe dera voz. Pouco depois, contudo, li O Caminho para Wigan Pier, de George Orwell. Este livro foi o que acabou de me quebrar não apenas a ideologia socialista, mas também a fé em qualquer postura ideológica.
No famoso ensaio que conclui o livro (escrito para o British Left Book Club – e para grande consternação deste), Orwell descreveu a grande falha do socialismo e a razão para, com frequência, não conseguir atrair e manter o poder democrático (pelo menos, na Grã -Bretanha). Em traços gerais, Orwell dizia que, na verdade, os socialistas nem sequer gostavam dos pobres. Apenas detestavam os ricos.
Entendi de imediato a sua ideia. A ideologia socialista servia para camuflar ressentimento e ódio, instilados pelo fracasso. Muitos dos ativistas partidários que eu tinha encontrado usavam os ideais de justiça social para racionalizar o seu desejo de vingança pessoal.
De quem era a culpa de que eu fosse pobre, pouco instruído ou desprovido de admiração? Obviamente, dos ricos, instruídos e respeitados. Que conveniente, então, que as exigências da vingança e da justiça abstrata se encaixassem! Estava simplesmente certo obter recompensa daqueles que eram mais afortunados do que eu.
Claro que eu e os meus colegas socialistas não queríamos fazer mal a ninguém. Bem pelo contrário. Queríamos melhorar as coisas – mas íamos começar pelos outros. Percebi a tentação desta lógica, a falha óbvia, o perigo – mas percebi também que não caracterizava o socialismo em exclusivo. Qualquer pessoa que quisesse mudar o mundo mudando os outros deveria ser encarada com suspeita. As tentações de tal posição eram demasiado grandes para que fosse possível resistir-lhes.
Não era a ideologia socialista que colocava o problema, portanto, mas a ideologia, tão-só. A ideologia dividia o mundo de uma forma simplista, entre aqueles que pensavam e agiam de forma adequada e aqueles que não o faziam. A ideologia permitia que o crente se escondesse dos seus próprios desejos e fantasias desagradáveis e inadmissíveis. Chegar a tais conclusões desconcertou-me as crenças (incluindo a minha fé em crenças) e os planos que eu tinha formulado em consequência dessas crenças. Já não podia distinguir quem era bom de quem era mau, por assim dizer – por isso, já não sabia quem apoiar, ou quem combater.
Este estado de coisas revelou-se muito problemático, tanto pragmática como filosoficamente. Eu queria ser advogado especializado em Direito Comercial – tinha feito o Teste de Admissão à Faculdade de Direito, tinha feito os dois anos de cursos preliminares adequados. Queria aprender os meandros dos meus inimigos e embarcar numa carreira política. Este plano desintegrou-se.
Obviamente, o mundo não precisava de outro advogado, e eu já não acreditava que soubesse o suficientemente para apresentar uma fachada de líder.
Jordan Peterson. “Casamento não é para dar felicidade ao casal, é para dar estabilidade às crianças”
Simultaneamente, desencantei-me com o estudo de ciência política, o meu curso anterior. Eu tinha adotado essa disciplina para poder aprender mais sobre a estrutura das crenças humanas (e pelas razões práticas e profissionais acima descritas). Continuava a parecer-me muito interessante na faculdade, quando tomei contacto com a história da filosofia política. Quando me mudei para o campus principal da Universidade de Alberta, porém, o meu interesse desapareceu.
Tinham-me ensinado que as pessoas eram motivadas por forças racionais; que as crenças e ações humanas eram determinadas por pressões económicas. Tal não se me afigurava como explicação suficiente. Eu não acreditava (e continuo a não acreditar) que os bens – “recursos naturais”, por exemplo – tivessem valor intrínseco e autoevidente. Na ausência de tal valor, a valia das coisas tinha de ser social ou culturalmente (ou até individualmente) determinada.
Este ato de determinação parecia-me moral – parecia-me uma consequência da filosofia moral adotada pela sociedade, cultura ou pessoa em questão. O que as pessoas prezavam, economicamente, apenas refletia aquilo que elas consideravam importante. Isto queria dizer que a verdadeira motivação tinha de se encontrar no domínio do valor, da moralidade. Os cientistas políticos com quem eu estudava não viam as coisas assim, ou não as consideravam relevantes.
As minhas convicções religiosas, já de início malformadas, desapareceram quando eu era muito jovem. A minha confiança no socialismo (isto é, em utopias políticas) desfez-se quando me apercebi de que o mundo não era meramente um lugar de economia. A minha fé na ideologia sucumbiu quando comecei a ver que a identificação ideológica em si mesma constituía um problema profundo e misterioso.
Eu já não podia aceitar as explicações teóricas que a área de estudo que escolhera tinha para oferecer, e já não tinha quaisquer razões práticas para continuar na direção original. Terminei o bacharelato de três anos e deixei a universidade. Todas as minhas crenças – que tinham emprestado ordem ao caos da minha existência, pelo menos temporariamente – haviam-se provado ilusórias; eu já não via qualquer sentido nas coisas. Estava à deriva; não sabia o que fazer ou o que pensar.
Mas e os outros? Haveria nalgum lugar uma prova de que os problemas que eu enfrentava então tivessem sido solucionados, por quem quer que fosse, de alguma maneira aceitável? O comportamento habitual e as atitudes dos meus amigos e familiares não me ofereciam qualquer solução. As pessoas que eu conhecia bem não eram mais resolutamente focadas em objetivos nem mais satisfeitas do que eu.
As 12 regras para uma vida sem caos, receitadas pelo “fenómeno” Jordan Peterson
As suas crenças e os seus modos de ser pareciam limitar-se a disfarçar uma dúvida frequente e uma inquietude profunda. O que era mais perturbador era que, a um nível mais geral, algo realmente absurdo estava a ter lugar. As grandes sociedades do mundo estavam a construir febrilmente uma máquina nuclear, com capacidades destrutivas inimagináveis. Algo ou alguém estava a engendrar planos terríveis. Porquê? Pessoas que em teoria eram normais e bem-adaptadas seguiam com a sua vida de uma forma prosaica, como se nada se passasse. Porque não estariam perturbadas? Porque não prestariam atenção? Se eu estava?
A minha preocupação com o absurdo geral social e político e com a maldade do mundo – sublimada por um enamoramento temporário pelo socialismo utópico e pela maquinação política – voltou em grande. O mistério da Guerra Fria ocupava-me cada vez mais os pensamentos conscientes. Como é que as coisas poderiam ter chegado àquele ponto?
A História não passa de um manicómio
que não deixa pedra sobre pedra
e a sua leitura muito cuidadosa
deixa pouco por conhecer.
Eu não conseguia entender a corrida nuclear: o que poderia valer a pena que se arriscasse a aniquilação – não apenas do presente, mas também do passado e do futuro? O que poderia justificar a ameaça de destruição total?
Desprovido de soluções, havia pelo menos recebido a dádiva de um problema. Voltei à universidade e comecei a estudar psicologia. Visitei uma prisão de segurança máxima nos arredores de Edmonton, sob a supervisão de um professor-adjunto da Universidade de Alberta. O seu trabalho principal consistia em prestar cuidados psicológicos a reclusos.
A prisão estava cheia de assassinos, violadores e assaltantes à mão armada. Na minha primeira visita de reconhecimento, acabei no ginásio, perto da sala de pesos. Estava a usar um capote de lã, de 1890 ou algo assim, que tinha comprado em Portugal, e umas botas de couro de cano alto. O psicólogo que me acompanhava desapareceu inesperadamente, deixando-me sozinho. Não tardei a ver-me rodeado por homens desconhecidos, alguns dos quais extremamente grandes e com ar de poucos amigos.
Um, em particular, destaca-se na minha memória. Era excecionalmente musculado, estava em tronco nu e tinha o peito todo tatuado. Uma cicatriz terrível ia-lhe da clavícula ao abdómen. Talvez tivesse sobrevivido a uma cirurgia cardíaca de peito aberto. Ou talvez aquilo fosse a marca de uma machadada. Fosse o que fosse, era um ferimento que teria matado um homem mais fraco – alguém como eu.
Alguns dos prisioneiros, que não estavam vestidos de uma forma particularmente graciosa, ofereceram-se para trocarem as suas roupas pelas minhas. Isso não me pareceu grande negócio, mas não sabia bem como recusar. O destino salvou-me, assumindo a forma de um homem baixo, magro e de barba. Disse que o psicólogo o tinha mandado e pediu-me que o acompanhasse. Ele era só um, enquanto muitos outros (muito maiores) me rodeavam – e ao meu capote. Por isso, confiei nele.
Levou-me pelas portas do ginásio e para o pátio da prisão, sempre a falar num tom baixo, mas razoável, acerca de algo inócuo (não recordo o que seria). Eu não parava de lançar olhares esperançosos para as portas abertas lá atrás à medida que nos íamos afastando cada vez mais. Por fim, o meu supervisor apareceu e fez-me sinal.
Deixámos o prisioneiro barbudo e fomos para um gabinete privado. O psicólogo contou-me que o homenzinho de aspeto inofensivo que me tinha escoltado do ginásio assassinara dois polícias depois de os ter obrigado a cavar as suas próprias sepulturas. Um dos polícias tinha filhos pequenos e implorara que ele lhe poupasse a vida, por eles, enquanto cavava – pelo menos, segundo o testemunho do próprio assassino.
Isto chocou-me deveras. Eu já tinha lido sobre esse tipo de coisas, claro – mas estas nunca se tinham tornado reais para mim. Eu nunca tinha conhecido alguém que tivesse sido afetado nem que fosse tangencialmente por algo assim, e decerto nunca me deparara com alguém que houvesse feito algo tão terrível. Como podia o homem com quem eu tinha falado – que parecia tão normal (e tão inconsequente) – ter feito uma coisa tão pavorosa?
Algumas das disciplinas que eu frequentava nessa altura eram ministradas em grandes anfiteatros, onde os estudantes se sentavam em filas descendentes, fila após fila após fila. Numa dessas disciplinas – Introdução à Psicologia Clínica, o que era bastante apropriado –, havia uma compulsão recorrente que me atormentava. Sentava-me atrás de algum indivíduo incauto e escutava a aula do professor.
A dada altura da palestra, sentia invariavelmente uma vontade de espetar a ponta da caneta no pescoço da pessoa que se encontrasse à minha frente. Este impulso não era avassalador – por sorte –, mas era suficientemente forte para me assustar. Que tipo de pessoa terrível teria um impulso daqueles? Eu, não. Eu nunca tinha sido agressivo. Durante quase toda a vida, fora mais pequeno e mais novo do que os meus colegas.
Voltei à prisão cerca de um mês depois da primeira visita. Durante a minha ausência, dois prisioneiros tinham atacado um terceiro, por suspeitarem tratar-se de um informador. Depois de o prenderem ou amarrarem, pulverizaram-lhe as pernas com um tubo de chumbo. Tornei a ficar estarrecido, mas, desta vez, experimentei algo diferente. Tentei imaginar, imaginar mesmo, como teria eu de ser para fazer tal coisa.
Concentrei-me nessa tarefa durante dias e dias – e experimentei uma revelação medonha. O aspeto verdadeiramente aterrador de tal atrocidade não se encontrava no seu caráter impossível ou remoto, como eu começara ingenuamente por pensar, mas na sua facilidade. Eu não era assim tão diferente dos reclusos violentos – não era qualitativamente diferente. Era capaz de fazer o que eles eram capazes de fazer (embora não o tivesse feito).
Esta descoberta perturbou-me seriamente. Eu não era quem julgava ser. Surpreendentemente, porém, o desejo de espetar a caneta no pescoço de alguém desapareceu. Em retrospetiva, diria que o impulso comportamental se manifestara em conhecimento explícito – tinha sido traduzido de emoção e imagem para perceção concreta – e já não tinha “razão” para existir.
O “impulso” só ocorrera por causa da pergunta a que eu tentava dar resposta: “Como é que os homens podem fazer coisas terríveis uns aos outros?” Eu referia-me a outros homens, claro – homens maus –, mas continuava a colocar essa pergunta. Não havia qualquer motivo para pensar que receberia uma resposta previsível ou com algum sentido pessoal.
Ao mesmo tempo, algo estranho se passava com a minha capacidade de conversar. Eu sempre gostara de me embrenhar em debates, independentemente do tópico. Via-os como uma espécie de jogo (não que isto tenha o que quer que seja de único). De repente, porém, não conseguia falar – para ser mais preciso, não suportava ouvir-me a mim
mesmo a falar.
Comecei a ouvir uma “voz” dentro da minha cabeça, a comentar as minhas opiniões. Sempre que eu dizia uma coisa, ela dizia outra – algo crítico. A voz empregava um refrão comum, que era proferido num tom algo enfastiado e factual:
Tu não acreditas nisso.
Isso não é verdade.
Tu não acreditas nisso.
Isso não é verdade.
A “voz” aplicava tais comentários a quase todas as frases que eu dissesse.
Não sabia o que pensar disto. Tinha noção de que a fonte do comentário fazia parte de mim, mas tal noção só me ampliava a confusão. Que parte, ao certo, era eu – a que falava ou a que criticava? Se era a que falava, então o que era a que criticava? Se era a que criticava… bem, nesse caso: como seria possível que praticamente tudo o que eu dizia fosse mentira?
Na minha ignorância e confusão, decidi fazer uma experiência. Tentei dizer somente coisas que o meu revisor interno não desafiasse. Isto implicava escutar atentamente o que quer que dissesse, falar muito menos e, com frequência, ver-me obrigado a parar a meio de uma frase, envergonhado, e a reformular os pensamentos. Depressa reparei que me sentia muito menos agitado e mais confiante quando só dizia coisas contra as quais a “voz” não protestava.
Isto foi um alívio. A minha experiência fora um sucesso: eu era a parte que criticava. Não obstante, demorei muito tempo a reconciliar-me com a ideia de que a maioria dos meus pensamentos não era real, não era verdadeira – ou, pelo menos, não me pertencia.
Todas as coisas em que eu “acreditava” eram coisas que achava que pareciam boas, admiráveis, respeitáveis, corajosas. Todavia, não eram minhas – eu tinha-as roubado. A maioria tirara de livros. Depois de as “compreender”, abstratamente, presumia que tinha direito a elas – presumia que podia adotá-las como se fossem minhas: presumia que eram eu. A minha cabeça estava cheia de ideias de outras pessoas; repleta de argumentos que eu não conseguia refutar logicamente.
Na altura, eu não sabia que um argumento irrefutável não é necessariamente verdadeiro, nem que o direito a identificarmo-nos com certas ideias tinha de ser conquistado. Por volta desta época, li qualquer coisa de Carl Jung que me ajudou a compreender aquilo que estava a viver. Foi Jung quem formulou o conceito de persona: a máscara que “fingia individualidade”. A adoção de uma máscara assim, segundo Jung, permitia que cada um de nós – e aqueles à nossa volta – acreditasse que éramos autênticos.
Disse Jung:
Quando analisamos a persona, tiramos a máscara e descobrimos que o que parecia ser individual é, no fundo, coletivo; por outras palavras, que a persona era tão-só uma máscara da psique coletiva. Fundamentalmente, a persona não é nada real: é um meio-termo entre o indivíduo e a sociedade quanto ao que um homem deve parecer ser.
Ele assume um nome, recebe um título, exerce uma função, é isto ou aquilo. De uma certa forma, tudo isto é real, mas, em relação à individualidade essencial da pessoa em causa, é apenas uma realidade secundária, uma formação de compromisso, para cuja formação os outros muitas vezes têm maior contribuição do que ele. A persona é uma aparência, uma realidade bidimensional, para lhe dar um apodo.
Apesar da minha capacidade verbal, eu não era real. Custou-me admitir isto.
Comecei a ter sonhos absolutamente insuportáveis. A minha vida sonhada, até então, fora relativamente banal, tanto quanto me lembro; para mais, nunca tive uma imaginação visual muito boa. Não obstante, os meus sonhos tornaram-se tão horríveis e tão emocionalmente desgastantes que muitas vezes tinha receio de ir dormir. Tinha sonhos vívidos como a realidade. Não podia fugir-lhes, nem ignorá-los. Circulavam, em geral, em torno de um único tema: o da guerra nuclear e da devastação total – em torno dos piores males que eu, ou algo em mim, era capaz de imaginar:
Os meus pais viviam numa moradia normal, num bairro de classe média de uma pequena cidade no norte de Alberta. Eu estava sentado na cave escura desta casa, na sala de estar, a ver televisão, com a minha prima Diane, que, na realidade – na vida acordada –, era a mulher mais linda que eu alguma vez tinha visto. Um pivô interrompeu subitamente o programa.
A imagem e o som do televisor ficaram distorcidos e o ecrã encheu-se de estática. A minha prima levantou-se e foi atrás do aparelho para verificar o fio elétrico. Assim que lhe tocou, começou a ter convulsões e a espumar da boca, paralisada de pé pela corrente intensa.
Um raio brilhante de luz a entrar por uma pequena janela iluminou a cave. Corri escadas acima. Nada restava no piso térreo. A casa fora completa e absolutamente varrida, deixando apenas o soalho, que passara a servir de telhado da cave. Chamas vermelhas e cor de laranja ocupavam os céus de horizonte a horizonte. Nada restava do que o meu olhar conseguia abarcar, exceto umas quantas ruínas esqueléticas: não havia casas, nem árvores, nem quaisquer sinais de outros seres humanos ou de vida alguma. Toda a cidade e tudo o que a rodeava na pradaria plana fora completamente obliterado.
Começou a chover lama, uma carga pesada. A lama cobria tudo e deixava a terra castanha, molhada, plana e baça, e o céu plúmbeo, todo cinzento. Umas quantas pessoas aflitas e em estado de choque começaram a reunir-se. Levavam nas mãos latas de conservas sem rótulo, todas amolgadas, que só continham papas e vegetais. Ficaram no meio da lama, com um ar exausto e transtornado.
Surgiram uns quantos cães, saindo de debaixo das escadas da cave, onde se haviam instalado inexplicavelmente. Mantinham-se de pé, nas patas traseiras. Eram magros como galgos e tinham focinhos afilados. Pareciam criaturas de algum ritual – como Anúbis, dos túmulos egípcios. Traziam pratos, nos quais havia pedaços de carne grelhada. Queriam trocar a carne pelas latas. Aceitei um prato. No centro estava um naco circular de carne, com dez centímetros de diâmetro e dois centímetros e meio de altura, malcozinhado, oleoso, com um osso no meio. De onde teria vindo?
Ocorreu-me algo terrível. Acorri à cave, onde estava a minha prima. Os cães tinham-na esquartejado e estavam a oferecer a carne aos sobreviventes do desastre.
Tive sonhos apocalípticos desta intensidade durante um ano ou mais, enquanto ia a aulas na universidade e trabalhava – como se nada de invulgar se passasse na minha mente. Porém, algo com que eu não tinha qualquer familiaridade estava a acontecer. Eu estava a ser afetado, simultaneamente, por eventos em dois “planos”. No primeiro plano encontravam-se as ocorrências normais, previsíveis, quotidianas, que eu partilhava com todas as outras pessoas. No segundo plano, contudo (e apenas para mim, ou assim eu julgava), existiam imagens pavorosas e estados emocionais insuportavelmente intensos.
Na altura, este mundo idiossincrático e subjetivo – que toda a gente costumava tratar como ilusório – parecia-me encontrar-se de alguma forma por trás do mundo que toda a gente conhecia e encarava como real. Mas o que quereria dizer real? Quanto mais eu observava, menos compreensíveis se tornavam as coisas. Onde estava o real? O que estaria no fundo de tudo? Não me parecia que pudesse viver sem o saber.
O meu interesse pela Guerra Fria transformou-se numa verdadeira obsessão. Pensava na preparação suicida e assassina dessa guerra em todos os minutos de todos os dias, desde que acordava até ao momento em que me deitava. Que resultado poderia ter tal situação? Quem era responsável?
Sonhei que corria por um parque de estacionamento de um centro comercial, a tentar fugir a qualquer coisa. Corria pelos carros estacionados, abrindo uma porta, gatinhando pelos assentos da frente, abrindo a outra porta, passando para o seguinte. De repente, as portas de um carro trancaram-se. Eu estava no lugar do pendura. O carro começou a andar sozinho. Uma voz disse bruscamente: “Não há fuga possível.” Eu estava numa viagem, a ir a algum sítio aonde não queria ir. Não era eu o condutor.
Fiquei muito deprimido e ansioso. Tinha pensamentos vagamente suicidas, mas, sobretudo, desejava que tudo simplesmente desaparecesse. Queria deitar-me no meu sofá e deixar-me afundar, literalmente, até que só o meu nariz estivesse à vista – como o tubo de respiração de um mergulhador à superfície da água. A minha consciência das coisas era-me insuportável.
Certa noite, cheguei a casa tarde, enojado comigo mesmo e zangado depois de ter estado a beber numa festa da faculdade. Esbocei um retrato tosco e austero de um Cristo crucificado – de olhar irado e demónico – com uma cobra enrolada em volta do pulso nu, como um cinto. A imagem perturbou-me – pareceu-me, apesar do meu agnosticismo, sacrílega. Mas não sabia porque a tinha pintado, nem porquê. De onde teria vindo aquilo?
Havia anos que não prestava qualquer atenção a ideias religiosas. Escondi a pintura debaixo de umas roupas velhas no meu armário e sentei-me de pernas cruzadas no chão. Baixei a cabeça. Tornou-se óbvio para mim nesse momento que não tinha desenvolvido qualquer compreensão real de mim mesmo ou dos outros. Tudo aquilo em que eu havia acreditado acerca da natureza da sociedade e da minha natureza revelara-se falso, o mundo parecia ter enlouquecido, e algo estranho e assustador estava a acontecer na minha cabeça.
James Joyce afirmou: “A História é um pesadelo do qual eu estou a tentar acordar”. Para mim, a história era literalmente um pesadelo. O que eu mais queria naquele momento era acordar e fazer com que os meus terríveis sonhos desaparecessem. Desde então que tento encontrar sentido na capacidade humana, na minha capacidade, para o mal – em particular, para os males associados à crença. Comecei por tentar dar sentido aos meus sonhos. Afinal, não podia ignorá-los. Talvez estivessem a tentar dizer-me alguma coisa? Eu nada tinha a perder ao admitir essa possibilidade.
Li A Interpretação dos Sonhos de Freud, que me pareceu útil. Ao menos, Freud levava o tema a sério – mas eu não podia encarar os meus pesadelos como concretização de sonhos. Para mais, aquilo que eu sonhava parecia ter uma natureza mais religiosa do que sexual. Eu tinha uma vaga noção de que Jung desenvolvera um conhecimento especializado acerca de mito e religião, pelo que comecei a ler os seus escritos. Os académicos que eu conhecia davam-lhe pouco crédito, mas também não se interessavam aí por além por sonhos. Eu não podia deixar de me interessar pelos meus. Eram tão intensos que eu temia que me deixassem demente. (Qual era a alternativa? Acreditar que os terrores e as dores que me causavam não eram reais?)
Havia muito de Jung que eu não compreendia. Ele apresentava argumentos que eu não entendia, falava uma língua que eu não dominava. De vez em quando, todavia, as suas afirmações faziam-me sentido. Ele oferecia a seguinte observação, por exemplo:
Deve ser admitido que os conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo podem muitas vezes assumir formas grotescas e horríveis em sonhos e fantasias, de tal modo que nem o mais fervoroso racionalista é imune a pesadelos devastadores e medos tormentosos.
A segunda parte daquela frase decerto parecia poder-se aplicar a mim, embora a primeira (“os conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo”) permanecesse misteriosa e obscura. Ainda assim, aquilo era promissor. Ao menos, Jung reconhecia que as coisas que estavam a acontecer-me podiam acontecer. Para mais, oferecia algumas pistas quanto à causa. Por isso, continuei a ler. Depressa me deparei com a seguinte hipótese. Ali estava uma solução potencial para os problemas que eu enfrentava – ou, pelo menos, a descrição de um lugar onde procurar tal solução:
A elucidação psicológica de […] imagens de [sonho e fantasia], que não podem ser remetidas ao silêncio ou cegamente ignoradas, leva logicamente às profundezas da fenomenologia religiosa. A história da religião no seu sentido mais abrangente (incluindo, por conseguinte, mitologia, folclore e psicologia primitiva) é uma arca do tesouro de formas arquetípicas a partir das quais o médico poderá retirar paralelos úteis e comparações esclarecedoras para acalmar e clarificar uma consciência que está completamente à deriva. É absolutamente necessário fornecer a estas imagens fantásticas que surgem de forma tão estranha e ameaçadora diante do olho da mente alguma espécie de contexto, para as tornar mais inteligíveis. A experiência tem demonstrado que a melhor forma de o fazer é mediante material mitológico de comparação.
De facto, o estudo de “material mitológico de comparação” fez desaparecer os meus pesadelos. A cura obtida por este estudo, contudo, foi adquirida à custa de uma transformação completa e muitas vezes dolorosa: aquilo em que acredito no mundo, agora – e, consequentemente, como ajo – difere tanto daquilo em que acreditava quando era mais novo que é como se eu fosse uma pessoa completamente diferente.
Descobri que as crenças compõem o mundo de uma forma muito real – que as crenças são o mundo, num sentido mais do que metafísico. Contudo, esta descoberta não me transformou num relativista moral: bem pelo contrário. Fiquei convencido de que o mundo-que-é-crença é ordeiro; de que há absolutos morais universais (embora estes se estruturem de maneira a permitir que um leque diverso de opiniões humanas continue a ser tanto possível quanto benéfico). Acredito que indivíduos e sociedades que descuram estes absolutos – por ignorância ou oposição determinada – estão condenados à miséria e, a seu tempo, à dissolução.
Aprendi que os significados dos substratos mais profundos dos sistemas de crença podem ser tornados explicitamente compreensíveis, até a um pensador racional e cético – e que, assim, podem ser sentidos como fascinantes, profundos e necessários. Aprendi porque é que as pessoas travam guerra – porque é que o desejo de manter, proteger e expandir o domínio da crença motiva até os atos mais incompreensíveis de opressão e crueldade fomentada por grupos – e o que pode ser feito para minorar esta tendência, apesar da sua universalidade.
Aprendi, finalmente, que o terrível aspeto da vida pode na verdade ser uma pré-condição necessária para a existência da vida – e que é possível encarar tal pré-condição, consequentemente, como compreensível e aceitável. Espero poder fazer com que quem leia este livro chegue às mesmas conclusões, sem exigir qualquer “suspensão de juízo crítico” irrazoável – exceto a necessária para encontrar e considerar inicialmente os argumentos que apresento.
Estes podem ser resumidos da seguinte forma:
O mundo pode ser validamente construído como um fórum de ação, bem como um lugar de coisas. Descrevemos o mundo como um lugar de coisas, usando os métodos formais da ciência. As técnicas da narrativa, porém – mito, literatura e drama – representam o mundo como um fórum de ação. As duas formas de representação têm sido desnecessariamente antagonizadas, porque ainda não formámos uma imagem clara dos seus respetivos domínios. O domínio do primeiro é o mundo objetivo – o que é, da perspetiva da perceção intersubjetiva. O domínio da seguinte é o mundo do valor – o que é e o que devia ser, da perspetiva da emoção e da ação.
O mundo como fórum de ação é composto, essencialmente, por três elementos constituintes, os quais tendem a manifestar -se em padrões típicos de representação metafórica. O primeiro é território inexplorado – a Grande Mãe, natureza, criativa e destrutiva, fonte e lugar de descanso final de todas as coisas determinadas. O segundo é o território explorado – o Grande Pai, cultura, protetor e tirânico, sabedoria ancestral cumulativa. O terceiro é o procedimento que faz a mediação entre os territórios inexplorado e explorado – o Filho Divino, o indivíduo arquetípico, Verbo criativo e explorador e adversário vingativo. Adaptamo-nos a este mundo de personagens divinas, tanto quanto ao mundo objetivo. O facto desta adaptação implica que o ambiente seja “na realidade” um fórum de ação, bem como um lugar de coisas.
A exposição desprotegida a território inexplorado produz medo. O indivíduo é protegido de tal modo como consequência de imitação ritual do Grande Pai – como consequência da adoção da identidade de grupo, que restringe o significado das coisas e confere previsibilidade a interações sociais.
Quando a identificação com o grupo se torna absoluta, contudo – quando tudo tem de ser controlado, quando já não se permite que o desconhecido exista –, o procedimento criativo explorador que atualiza o grupo já não pode manifestar-se. Esta restrição de capacidade de adaptação aumenta drasticamente a probabilidade de agressão social.
A rejeição do desconhecido equivale à “identificação com o demónio”, a contraparte mitológica e eterno adversário do herói explorador e criador do mundo.
Tal rejeição e identificação é uma consequência de orgulho luciferiano, que declara: tudo o que eu sei é tudo o que é necessário saber. Este orgulho, a presunção totalitária da omnisciência – a adoção do lugar de Deus pela “razão” – é algo que inevitavelmente gera um estado de ser pessoal e social indistinguível do inferno. O inferno desenvolve-se porque a exploração criativa – impossível sem reconhecimento (humilde) do desconhecido – constitui o procedimento que constrói e mantém a estrutura protetora de adaptação que dá vida a tanto do seu significado aceitável.
A “identificação com o demónio” amplia os perigos inerentes à identificação de grupo, que tende, por si mesma, à estultificação patológica. A lealdade ao interesse pessoal – significado subjetivo – pode servir como antídoto contra a tentação avassaladora constantemente colocada pela possibilidade de se negar a anomalia. O interesse pessoal – significado subjetivo – revela-se na fronteira do território explorado e por explorar, e é indicativo da participação no procedimento que assegura uma adaptação contínua e saudável do indivíduo e da sociedade.
A lealdade ao interesse pessoal equivale à identificação com o herói arquetípico – o “salvador” – que defende a sua associação ao Verbo cria dor perante a morte e apesar da pressão de grupo para que se conforme.
A identificação com o herói serve para diminuir a insuportável valência motivacional do desconhecido; para mais, proporciona ao indivíduo uma perspetiva que tanto transcende como mantém o grupo.
Sumários similares precedem cada capítulo (e subcapítulos). Lidos como uma unidade, constituem um retrato completo, embora comprimido, do livro. Deverão ser lidos em primeiro lugar, depois deste prefácio. Desta maneira, a totalidade do argumento que apresento poderá rapidamente contribuir para a compreensão das partes.”