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O helicóptero, que trazia as bandeiras do Iémen e da Palestina, apareceu de surpresa. Dele desceram vários homens armados, de cara tapada, que rapidamente aterraram no convés do navio. Apontaram as metralhadoras aos 25 homens e tomaram o controlo do Galaxy Leader num ápice. De seguida, levaram a embarcação e toda a tripulação para o porto de Hodeidah.
“Quando vi o vídeo pela primeira vez, não parecia real, parecia um videoclipe de hip-hop”, comentaria mais tarde Dimitris Maniatis. O especialista grego fora instado pelo jornal alemão Die Zeit a comentar o vídeo divulgado pelos Houthis naquela que foi a sua ação mais disruptora no Mar Vermelho até agora: o sequestro de um navio britânico, gerido por uma empresa japonesa, que está agora na costa do Iémen à guarda do grupo armado xiita.
Foi a ação mais espetacular do grupo nos últimos meses, mas está longe de ser a única. Desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em outubro, que este grupo intitulado como Ansar Allah (“Apoiantes de Alá”) — e que exerce atualmente o controlo de facto do Iémen — tem atacado dezenas de navios mercantes que se deslocam pelo Mar Vermelho. Invocam a defesa dos palestinianos para justificar as suas ações: “Os Houthis não vão abandonar a causa palestiniana, independentemente de quaisquer ameaças dos Estados Unidos, de Israel ou do Ocidente”, declarou um dos seus porta-vozes.
As consequências das suas ações são muito maiores do que a dimensão do grupo, que controla um país pobre do Golfo arrasado por uma guerra. O estreito de Bab al-Mandab (“Portão das Lágrimas”), onde tem acontecido a maioria dos ataques, é um ponto nevrálgico do tráfego marítimo comercial. E embora os Houthis garantam que apenas atacam navios com ligações a Israel, no complexo e opaco mundo da navegação comercial é difícil garantir isso sobre todos os navios. Na prática, muitas empresas já se estão a afastar da região — o que pode ter um reflexo claro no aumento dos preços de bens de consumo e energia. E os Estados Unidos reagiram tentando criar uma frota de segurança para a região.
Mas o que querem os Houthis ao envolver-se no conflito entre Israel e o Hamas? E quão determinante pode ser a sua influência para o resto do mundo?
O grupo que pede “morte a Israel” e que mobilizou o maior número de manifestações pró-Palestina
Os “Apoiantes de Alá” são um grupo militante surgido no início da década de 2000, com raízes em grupos tribais do norte do Iémen. São xiitas, mas seguem a corrente do zaidismo. Em 2014, atacaram o governo na capital Sana. Os vizinhos Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos reagiram com violência e o país tem estado mergulhado numa guerra profunda desde então, onde já morreram quase 400 mil pessoas e onde a fome e a coléra ainda grassam.
A reação dos Houthis à situação em Gaza não é surpreendente se tivermos em conta que, desde sempre, têm na sua génese uma ideologia anti-semita. O seu lema oficial é “Morte à América, Morte a Israel, Maldição para os Judeus, Vitória para o Islão”. O discurso contra os judeus é comum no país, com o Telegraph a noticiar em 2021, por exemplo, que nas escolas é pedido aos alunos que escrevam a frase “Israel é o meu inimigo” e lhes é dito que devem combater “a tirania dos judeus”.
Desde o ataque do Hamas de 7 de outubro que os Houthis têm organizado várias manifestações populares de apoio à Palestina no Iémen — o especialista Nicholas Brumfield escreve mesmo que este é o país onde “provavelmente houve mais manifestações pró-Palestina per capita desde então”.
Por um lado, esse apoio explica-se pela posição que ocupam na geopolítica mundial, como aliados próximos do Irão que se definem como parte do chamado “Eixo da Resistência”. Mas essa não é a única razão pela qual se estão a envolver neste conflito, como explica ao Observador Thomas Juneau, professor especialista na política iemenita: “A nível interno, os Houthis querem mobilizar fortes sentimentos pró-palestinianos entre a população para reforçar a sua base”, explica o académico da Universidade de Otava.
“Querem também humilhar a Arábia Saudita. Depois de quase nove anos de guerra, não só a Arábia Saudita não conseguiu derrotá-los, como eles saíram desta guerra ainda mais fortes do que estavam antes.” E não há maior prova de força do que se envolverem no conflito que mobiliza as atenções do mundo.
Ataques no Mar Vermelho podem levar a subida de preços de bens e combustíveis
Não se pense que, pela distância que separa o Iémen do centro do conflito (mais de dois mil quilómetros), o impacto da ação dos Houthis é menor. É certo que os mísseis que disparou em direção a Israel tiveram um impacto quase negligente, sendo amparados pelas defesas aéreas do país. Mas o grupo do Iémen está a usar a sua posição geográfica, ao pé do estreito de Bab al-Mandab, para provocar o caos no comércio marítimo, afetando Israel e não só.
“O Mar Vermelho é uma rota do comércio marítimo global significativa. Por ano, transitam naquela região cerca de 35 mil navios, o equivalente a cerca de 10% de todo o PIB mundial”, nota ao Observador Corey Ranslem, especialista em segurança marítima da empresa Dryad Global. “A curto-prazo, o impacto no comércio mundial será mínimo, mas se este conflito continuar, poderá ter um impacto muito maior, com o aumento dos custos de envio dos bens que normalmente transitam nesta região.”
Os ataques dos Houthis a navios preocupam muitas empresas mundiais, que começaram a evitar fazer o trajeto da Ásia para o Ocidente através do Mar Vermelho. Foi o caso da petrolífera BP e das transportadoras Maersk e Hapag-Lloyd. Ao todo, o tráfego de navios no estreito entre os dias 15 e 19 de dezembro desceu 14% face à semana anterior, segundo dados do MarineTraffic citados pelo antigo marinheiro Tom Sharpe.
É que com o risco de ter um navio atingido por um drone ou míssil, o preço dos seguros dispara. Numa só semana, subiram de 0,07% do navio para 0,2%, de acordo com a revista Time — e isso pode traduzir-se num aumento dos preços dos bens transportados (que incluem petróleo, por exemplo).
A alternativa também representa mais custos, como explica Corey Ranslem: “As empresas que decidirem desviar-se da rota do Mar Vermelho têm de contornar a ponto sul de África [dobrando o Cabo da Boa Esperança] e entrar no Mar Mediterrâneo através do estreito de Gibraltar. Este desvio pode acrescentar 30 dias à viagem. A longo-prazo, isto pode traduzir-se num impacto significativo no preço de bens e combustível para os consumidores, especialmente para os europeus e para todos os que estão perto do Mediterrâneo.”
A resposta norte-americana que não tem o apoio oficial da Arábia Saudita
Com receio do impacto que a ação dos Houthis no Mar Vermelho pode vir a ter, os Estados Unidos decidiram reagir. Esta semana, anunciaram a Operação Guardião da Prosperidade, uma coligação de vários países que patrulhará o Mar Vermelho, com o objetivo de garantir a segurança dos navios comerciais.
Não há, por enquanto, detalhes sobre como se operacionalizará esta defesa. “Não sabemos quantos navios terá, quais as suas regras de empenhamento, nem quanto tempo demorará a coligação a organizar-se e a tornar-se operacional”, nota Ranslem. “O sucesso desta coligação dependerá das regras que terá para se envolver em combate e de qual o plano geral para proteger o comércio marítimo.”
A própria composição da coligação ilustra os problemas mais latos da região. As presenças confirmadas são as dos EUA, França, Reino Unido, Canadá, Itália, Países Baixos, Noruega, Espanha, Bahrain e Seychelles. Há outros nove países que estarão envolvidos, mas não querem que a sua presença seja conhecida. As ausências mais notadas são de atores regionais como o Egipto, que não desejam ser vistos como aliados de Israel.
Outra ausência é a da Arábia Saudita. O país adotou esta posição por temer que a ação pudesse ser entendida como um gesto hostil, que pusesse em causa as negociações que decorrem neste momento com os Houthis para alcançar um acordo de paz no Iémen. “A Arábia Saudita teme que, se a situação escalar no Mar Vermelho devido à sua presença nesta missão, os Houthis possam voltar a atingir os sauditas e fazer as conversações descarrilarem”, resume Thomas Juneau. “Isso seria muito prejudicial para o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, que tem investido esforços significativos para mudar a sua política externa da posição de confronto que adotou nos seus primeiros anos no poder.”
Um português também pode vir a ser indiretamente envolvido nesta coligação. Trata-se do Capitão-de-Mar-e-Guerra Rogeiro Martins de Brito, que comanda atualmente a operação Atalanta, da União Europeia, no golfo de Aden. Segundo o Die Welt, estarão a decorrer atualmente conversações entre os norte-americanos e esta força.
Passos necessários já que, segundo os especialistas, é pouco provável que os Houthis cessem os ataques no Mar Vermelho ao longo dos próximos tempos. “Eles sentem-se galvanizados”, nota o professor Juneau. “Sentem que ganharam a guerra no Iémen e que a sua posição interna não é desafiada. Sentem que a Arábia Saudita quer sair do Iémen e que quer evitar estragar as conversações. Provavelmente também consideram que os Estados Unidos e os parceiros regionais querem evitar uma escalada da guerra em Gaza e torná-la numa guerra regional.”
Mohammed al-Bukhaiti, um dos líderes dos Houthis, já confirmou isso mesmo: “Mesmo que os Estados Unidos sejam bem sucedidos a mobilizar todo o mundo, as nossas operações não irão parar até que o genocídio em Gaza termine.”