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Bill Cooper

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Marcelino Sambé: "A dança precisa de mudar e eu gostaria de fazer parte dessa mudança"

Está em Portugal convidado pela CNB para 3 récitas de "Giselle". Em entrevista, o bailarino principal do Royal Ballet de Londres recorda o início, o salto para palcos maiores e revela o que lhe falta.

É negro, nasceu num bairro social, tem um corpo não muito alto e muito musculado, um “corpo africano” como ele próprio classifica. Além disso, nasceu num pais, Portugal, onde a dança é uma coisa de nicho à qual quase só as elites têm acesso. Mas Marcelino Sambé veio ao mundo para pôr em causa os estereótipos e mostrar que “às vezes os sonhos realizam-se”.

Cresceu no bairro do Alto da Loba, em Oeiras, numa família desestruturada, perdeu o pai cedo e seria no centro comunitário do bairro que faria a sua educação, que haveria de passar pela dança desde sempre. Aos quatro anos era o único rapaz do grupo de dança do centro, as “Estrelitas Africanas”, além disso não havia festa ou casamento que não aproveitasse para mostrar os seus dotes. Hoje, aos 28 anos, é primeiro bailarino de uma das companhias de dança mais importantes do mundo, a Royal Ballet do Reino Unido. Na prática chegou tão longe como Cristiano Ronaldo no futebol, mas em Portugal há muitos que nunca ouviram falar dele. Agora, a convite de Carlos Prado, diretor artístico da CNB, vai estar uns dias em Lisboa, no teatro de São Carlos a “dançar até à morte” na peça Giselle, que está em cena até dia 23 de dezembro. Interpreta Albrecht, o protagonista, nas récitas de dias 7 e 10.

O Observador foi visitá-lo no camarim, por onde muitos bailarinos da companhia portuguesa passaram para o saudar. Contrariando as competitividades e as invejas que se diz serem tão comuns no meio artístico, à volta de Marcelino Sambé há um cerco de afeto, que ele aceita e devolve.

Marcelino Sambé e Anne Rose O’Sullivan, ambos bailarinos principais do Royal Ballet de Londres, vêm dançar “Giselle” com a CNB. Hoje tem este estatuto de referência, de protagonista convidado. Mas lembra-se porque começou a dançar?
A dança era aquilo que me fazia sentir especial. Desde muito cedo, se havia uma festa, um casamento eu punha-me logo a dançar. Depois tive a sorte de ter sido integrado no Centro Comunitário do bairro do Alto da Loba, que era uma espécie de segunda casa, segunda família. Até aos 10 anos fazia apenas danças africanas com o grupo “Estrelitas Africanas”, até que uma professora achou que eu tinha muito potencial e levou-me para fazer uma audição no Conservatório Nacional. Eu nem sabia o que era ballet clássico, só sabia fazer danças africanas. Lá fui eu de fato de treino e ténis e ainda hoje agradeço àqueles professores que debaixo daquilo que eu era viram o meu potencial para o ballet. E não só agradeço como isso me faz ter esperança que a dança comece a integrar outros miúdos como eu.

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Marcelino Sambé e Anne Rose O'Sullivan, ambos bailarinos principais do Royal Ballet de Londres, vêm dançar "Giselle" com a CNB

HUGO DAVID

E como é que foi a sua integração no Conservatório?
Eu era muito exuberante, irrequieto, não sei onde é que a professora Maria Luísa Carlos, arranjou paciência para me ensinar as bases do ballet. Mas a verdade é que fui tão bem acolhido, tão acarinhado desde o principio. Eles até me arranjaram roupas e material de dança porque eu não tinha nada. Mas passei a ir de comboio todos os dias, de Oeiras para o Cais do Sodré. Quando punha os pés fora do comboio já me sentia feliz. Adorei Lisboa desde o primeiro minuto. Eu mal saia do bairro e de repente estava ali no centro de Lisboa e tudo me parecia cosmopolita, colorido, animado, adorava observar as pessoas, ver o que vestiam. Depois eram os dias passados no conservatório e eu adorava dançar por isso estava sempre feliz. A exigência não me frustrava e às vezes ficava lá até às oito e meia da noite para poder ver os bailarinos mais velhos a ensaiarem e eu só pensava que queria ser como eles, dançar como eles. Depois fui adotado pela família Barroso e passei a viver aqui em Lisboa.

Pouco depois de ter entrado no Conservatório, começaram a levar-me a competições ao estrangeiro, fui a países no mundo todo, ganhei alguns prémios importante, como na Rússia ou nos Estados Unidos. Havia quem temesse que a escola estivesse a colocar-me sob muita pressão ao levar-me a tantos concursos, mas eu sentia aquilo como um prazer. Não me interessava muito se ganhava o prémio ou não, eu queria era dançar, portanto dançava feliz e acho que isso acabava por ajudar na minha performance.

Mas quando dançou no Prix de Lausanne foi diferente, é um dos principais concursos de dança, onde só chegam os melhores do mundo. Nesse sentiu a pressão para vencer?
Quando fui dançar no Prix de Lausanne, já sabia que queria impressionar a diretora da Royal Ballet School de Londres. Eu tinha esperança de poder entrar para essa escola, mas só conseguiria se tivesse uma bolsa de estudos. Mas acabei por ganhar o concurso e o prémio era justamente uma bolsa de estudos nessa escola. Mal acabei de dançar e as cortinas se fecharam, a diretora da Royal Ballet School veio ter comigo e convidou-me para eu ir para lá. De repente, tinha 15 anos, deixei tudo aqui, tudo o que era o meu equilíbrio: a minha família adotiva, o Conservatório, a sensação de ser bom no que fazia, o sentir-me especial…

Como foi ter 15 anos e viver sozinho em Londres?
Já conhecia Londres porque já tinha ido lá numas férias com a minha família. Londres foi tão impactante para mim. Aquela diversidade toda, a moda, a vida cultural, gosto muito de arte, de teatro, tudo isso me interessa. Poder viver naquela cidade foi bom, mas o início na escola não foi fácil. Aqui, no Conservatório, éramos seis rapazes, em Londres éramos 22. Apenas dois negros, eu e um rapaz jamaicano, eu não correspondia de todo ao tipo físico de um bailarino, não sou muito alto, sou largo, muito musculoso, tenho um corpo africano. No início eu olhava para aqueles rapazes muito altos e magros, longilíneos e sentia que não ia ter hipótese. Depois, também havia a minha forma de dançar e certos vícios que eu levava na minha técnica e lá eles são muito mais despojados, mais minimalistas. Claro que eu não conseguia dançar daquela forma e pensava muitas vezes “ah, não gostam de mim”. Mas com o passar do tempo comecei a sentir que o meu corpo se ia moldando àquela técnica, os meus músculos alongavam e isso foi desafiante. Também não foi fácil adaptar-me àquela maneira de ser do britânicos a frieza, a distância, mas hoje percebo que é uma coisa cultural e não é nada contra mim.

"Por causa do meu tipo físico, achava que nunca teria chances ali [na Royal Ballet]. Tive períodos de quase não comer para emagrecer e tentar ficar como os outros bailarinos... por isso o convite do diretor da companhia foi aquele momento em que senti que afinal os sonhos realizam-se. Foi o momento mais incrível da minha vida."

Michelle Obama disse uma vez que quando se é negro ou pobre não se pode falhar, porque não há segundas hipóteses. Sentiu isso algumas vez durante estes anos?
Compreendo e concordo totalmente com essa frase, mas nunca senti que isso tivesse acontecido comigo, felizmente foi o contrário, as pessoas sempre investiram em mim. Mesmo na London Ballet School, quando eu sabia que não era o preferido e me faziam críticas, percebi que essas críticas não eram uma humilhação, eram um investimento. Essa atitude acabou por fazer desaparecer as minhas inseguranças. Além disso, sou muito teimoso e sei quando é preciso largar o ego. Mas acho que o mundo da dança ainda está muito longe dos direitos dos negros, ou da comunidade LGBTQIA+ e é preciso fazer mais para integrar essas pessoas na dança.

A teimosia deu frutos, pois logo no início do terceiro ano do curso foi contratado pela companhia Royal Ballet, uma das melhores do mundo…
É verdade. Isso foi uma grande surpresa com a qual eu não contava, porque, por causa do meu tipo físico, achava que nunca teria chances ali. Tive períodos de quase não comer para emagrecer e tentar ficar como os outros bailarinos… por isso o convite do diretor da companhia foi aquele momento em que senti que afinal os sonhos realizam-se. Foi o momento mais incrível da minha vida. Até chorei. Porque foi a dança que me permitiu tudo, a dança foi o meu colo, o que me levantou e me puxou e puxa todos os dias para a vida.

Tinha 18 anos, vinha do bairro da Cova da Loba e hoje é o primeiro negro a chegar a primeiro bailarino do Royal Ballet. E agora para onde quer ir?
Quero ter saúde para continuar a dançar neste alto nível. E tenho outros sonhos que quero cumprir. Gosto muito de representar. Agora até contratei um professor de drama que me ajuda a interpretar melhor as personagens na dança, mas também a atuar. Gostava de fazer teatro, cinema. Outra das coisas que também gosto é de participar na construção de novas peças de repertório. Uma companhia como a do Reino Unido não pode estar sempre a refazer os clássicos, é preciso também responder ao nosso tempo. Uma das mudanças é que já fazem também peças em dança contemporânea, coisa que antes não faziam.

"De certa forma, eu representava a mudança que a Royal Ballet queria fazer, por isso escolheram-me", diz-nos Marcelino Sambé

Ricardo Lamego

Sendo que no Conservatório os bailarinos têm formação em ballet clássico e contemporâneo, porque é que escolheu o clássico?
Não foi uma escolha, adoro dançar as duas técnicas e ganhei prémios com as duas técnicas. Tive uma professora e coreógrafa maravilhosa, a Catarina Moreira, que é um tesouro que Portugal ainda não descobriu. Com ela ganhei várias competições a dançar contemporâneo. E como descobri mais tarde, essa minha valência foi importante para entrar para o Royal Ballet, pois a companhia queria começar a fazer bailados de contemporâneo, como a CNB já faz. Acho que é uma sorte para qualquer bailarino poder trabalhar com as duas técnicas. De certa forma, eu representava a mudança que a Royal Ballet queria fazer, por isso escolheram-me.

Tudo isso tem um lado de “conto de fadas”, mas e quando tem dias maus, quando sente que dançou menos bem, o que faz?
Tento manter sempre a minha vida equilibrada entre a dança e o fora da dança. Por isso, tenho a minha família com quem estou sempre em contacto, em especial a minha irmã Maria, que é bailarina aqui na CNB. Tenho um grupo de amigos de áreas muito distintas e o meu namorado, que é advogado. A carreira de bailarino é muito difícil, muito dura, as pessoas não têm ideia. Há uns anos fraturei a tíbia por stress, estive quase um ano sem dançar. E o facto de estar envolvido em vários projetos de criação também me ajuda muito.

Também tem feito trabalho na área da moda.
Sim, algumas coisas. Coreografei e dancei para uma marca de cosméticos e tenho feito vários editoriais de moda para a Dior e a Louboutin e para outras menos conhecidas. Adoro a abertura que existe no mundo da moda.

E as críticas? Os ingleses não têm a tibieza dos portugueses, aqui nunca se diz mal, os ingleses são fulminantes…
Tenho tido sorte. As críticas em geral são boas. Já ganhei o prémio de bailarino do ano e três vezes o prémio da melhor interpretação que é dado pelo circulo de críticos. Mas não me deslumbro com os críticos porque eles adoram levantar uma pessoa no alto e depois deixá-la cair à mínima coisa.

"Nos EUA dificilmente, não gosto daquele pais social e politicamente. Vejo-me noutro país, mas não fora da Europa. Apesar de tudo, aqui temos mais direitos. Vejo-me a continuar cá e a contar outras histórias, seja em dança ou em teatro."

A ultima vez que dançou em Portugal foi em 2015, agora vem como primeiro bailarino do Royal Ballet e vai dançar a Anna Rose O’Sullivan, que é sua colega na companhia. Sentes alguma pressão para corresponder às expectativas? Os bilhetes esgotaram…
Em 2015 era um bebé. Muita coisa mudou, eu mudei. Portugal deu-me tanto que quero retribuir o melhor que consigo. E estou muito grato ao Carlos Prado por me ter feito este convite. Há uns dias, quando cheguei de Londres e fui apresentado aos bailarinos da CNB, senti-me tão acolhido, tão mimado, como já não me sentia há muito tempo. É uma sorte para mim estar aqui. Há muitos bailarinos portugueses que admiro muito, como o Carlos Pinillos ou a Ana Lacerda. E coreógrafos. Adorava um dia trabalhar com a Olga Roriz ou com o Vasco Wellenkamp.

Agora volta a Portugal para dançar “Giselle”, onde faz o protagonista, Albrecht, condenado a dançar até à morte. Imagina-se a dançar até à morte?
Coitado do Albrecht, ainda bem que ele é salvo pela sua amada. Esta é uma peça muito exigente. Fiz este papel o ano passado em Londres e havia alturas que achava que ia ter um ataque cardíaco. Porque são tantos saltos, é de uma exigência técnica incrível. No fim, não é só o Albrecht que está exausto, eu estou realmente exausto.

Em Londres atingiu o topo da carreira a que um bailarino pode aspirar. Vê-se a dançar noutro país, nos Estados Unidos, por exemplo?
Nos EUA dificilmente, não gosto daquele pais social e politicamente. Vejo-me noutro país, mas não fora da Europa. Apesar de tudo, aqui temos mais direitos. Vejo-me a continuar cá e a contar outras histórias, seja em dança ou em teatro. Acho que precisamos de histórias de hoje, dos marginalizados, acho que a dança precisa de mudar e eu gostaria de fazer parte dessa mudança.

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