A ideia era chamar os partidos para ouvir o que pensam do quente ano político que passou. Mas Marcelo Rebelo de Sousa fez mais do que isso: vestiu o fato de analista político e, junto dos partidos mais pequenos do Parlamento (os maiores serão ouvidos só na segunda-feira), explicou o que ele próprio pensa do momento político atual e dos riscos que traz para o futuro. O Presidente mostrou-se preocupado, sobretudo com os (des)equilíbrios do regime político — com a hipótese de um Governo PSD/Chega na cabeça mas também com a sua própria sucessão a ocupar-lhe o pensamento.
Foi, assim, uma série de reuniões (com Livre, PAN, Bloco de Esquerda e PCP) para falar do primeiro ano de maioria absoluta de António Costa, mas com o ano de 2026 em vista. É para esse ano que a sucessão de Marcelo está marcada, e será também para esse ano que, se o ciclo político prosseguir como é suposto, ficarão as próximas eleições legislativas — umas eleições cujos hipotéticos resultados preocupam o Presidente da República.
Apesar de ter sido o próprio Marcelo o responsável por agitar vezes sem conta o fantasma de umas eleições antecipadas, é o Presidente que transmite aos partidos a sensação de que não é seu desejo de avançar para esse cenário, que publicamente tem dito que seria uma “má notícia”. Primeiro motivo: a possibilidade de uma aliança entre PSD e Chega para chegar ao poder, uma hipótese que Luís Montenegro tem sido mais assertivo a afastar, mas que não rejeita liminarmente — nem, aparentemente, de forma suficientemente clara para deixar Marcelo descansado.
A vários dos partidos com quem falou esta tarde, o Presidente deixou essa nota: está preocupado com o “equilíbrio” do regime e com a ausência de uma alternativa moderada à direita, que garantidamente não se apoie no Chega. Das pessoas com quem Marcelo conversou, houve quem descrevesse o Presidente como “desgostoso” em relação ao estado do PSD.
Marcelo espera remodelação e não acredita em Costa recandidato
Perante um Governo que classificou nas audições como cansado e distraído, Marcelo foi diagnosticando os motivos para as falhas da equipa de António Costa: falta recrutamento fora do aparelho partidário e há um excesso de concentração das decisões e da gestão política no primeiro-ministro, que conta com um núcleo político demasiado reduzido (uma preocupação que também tem lugar no próprio PS, onde muito se tem insistido em soluções como criar o cargo de vice primeiro-ministro, por exemplo, ou chamar figuras com mais experiência e lastro político para ajudar o chefe do Governo).
Na leitura de Marcelo Rebelo de Sousa, como já tinha deixado claro em público, o refrescamento do Executivo é, de resto, uma opção desejável — e o Presidente confidenciou aos partidos ter a expectativa de que a tão antecipada remodelação governamental aconteça até ao fim do ano. Entretanto, prevê que Costa e o PS continuem a insistir numa ideia que tem sido alimentada nos últimos tempos e que o próprio primeiro-ministro já deixou no ar: a de uma possível recandidatura de Costa, primeiro-ministro há mais de sete anos, nas legislativas de 2026.
Não que Marcelo acredite verdadeiramente nessa hipótese: o Presidente estará convencido de que este é um cenário que o PS agita com o único objetivo de manter as atenções focadas em Costa, com a ideia de que está presente e não de saída, adiando assim — pelo menos de forma mais pública e visível — uma guerra de sucessão que pode rebentar assim que se perceba que a liderança de Costa tem uma data-limite marcada.
Costa quererá, nesta leitura, manter no ar a ideia de que está para ficar. E o Presidente acredita que, se o primeiro-ministro até já quis voar para Bruxelas, agora estará obrigado a ficar até ao fim da legislatura, como tem prometido com recurso formulações mais ou menos ambíguas — e como Marcelo tentou pressioná-lo a fazer logo na tomada de posse, quando fez equivaler a maioria absoluta do PS a uma maioria absoluta de António Costa e relembrou o primeiro-ministro que a campanha, e portanto a vitória, foi muito pessoalizada nas eleições de 2022.
“Não haverá dupla igual”. Marcelo não vê PS em Belém
Quanto às presidenciais, segundo apurou o Observador, Marcelo estará convicto de que os candidatos do PS — pelo menos os que têm sido aventados no espaço político — não ganham.
Mas está preocupado com o seu próprio processo de sucessão: o Presidente acredita que a manutenção de um equilíbrio no regime e da própria qualidade da democracia também está nas mãos de quem estiver em Belém, e que o papel que acredita estar a fazer, o de uma espécie de fiel da balança para evitar radicalizações ou populismos no sistema político português, precisará de continuar a ser feito no futuro.
No fundo, os cálculos políticos de Marcelo já vão além do seu mandato ou do de Costa, de olhos postos no futuro mas também com algum sabor a nostalgia na análise: “Depois de mim e do António Costa não haverá outra dupla igual”, terá comentado nas audições com os partidos.
A dupla, ainda que com uma relação mais tensa após a crise Galamba do que já teve no passado, funciona aos olhos de Marcelo — que ainda assim deixou um desabafo: está com receio de que Costa aproveite mais para estar “colado” ao Papa durante a vinda a Portugal pela Jornada Mundial da Juventude. Afinal, Marcelo é católico e olha com atenção para esse eleitorado — e mesmo sendo um Presidente em segundo e último mandato, nunca deixa essa preocupação de lado.
Governo arrasado por “tiques de autoritarismo” e tratar poder como “absoluto”
Apesar de, como o Observador ouviu em tom de brincadeira de várias fontes, as audições terem servido sobretudo para Marcelo falar e ser ouvido, os partidos levaram uma série de preocupações ao chefe de Estado, que convocou estas audições para fazer um balanço do ano, em vésperas de uma reunião do Conselho de Estado.
E o diagnóstico dos partidos foi arrasador para o Governo: por todos os lados se ouviram críticas à forma como o PS não resolve desigualdades e problemas nos serviços públicos, mas também à maneira como lida com o poder — como se fosse “absoluto”.
O PCP deixou, de resto, essa mesma acusação: o Governo, lançou Paulo Raimundo no fim da reunião, “trata a maioria absoluta como poder absoluto” e limita-se a fazer “simulações de diálogo” com os partidos.
Partidos que fizeram eco da mesma ideia: o PAN falou de um Executivo “fechado” sobre si próprio e a precisar de que Costa arrume a casa; Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, descreveu mesmo um Governo com “tiques autoritários”; e o Livre pediu ao Executivo que dialogue com os partidos para evitar uma “degradação” ainda maior da relação com o Parlamento, ou uma crise política que poderia fazer o país “saltar da frigideira para o fogo” (leia-se de um Governo instável do PS para um Executivo que inclua a extrema-direita).