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Marcos Valle: o surfista da bossa nova recuperou o groove do Brasil

Nos anos 70, o compositor de “Samba de Verão” deixou na praia a bossa nova e deu a volta à ditadura com a banda Azymuth. Falámos com Marcos Valle antes do concerto de Lisboa numa tour de regresso.

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O que é “groove”? Música, claro. Ritmo, talvez. Definir “groove” passa pelas mesmas deliberações inconcebíveis que nos garantem que são uns rabiscos numa pauta e madeira com cordas que fazem dançar, tirar o pé de chão, levantar poeira. Marcos Valle, representante máximo do groove, homem de cabeleira loira salgada e piano apimentado, revela indiretamente, ao se descrever, o que é afinal o groove.

“Sou um grande dançarino por dentro, por fora não”, diz ao Observador. “O ritmo é muito forte na minha vida, estou sempre swingando por dentro”. Groove é dançar por dentro e o próximo bailinho interno está marcada para dia 30 de agosto, no B.Leza, Lisboa. Marcos Valle e Azymuth tocam juntos pela primeira vez fora do Brasil, um encontro que conseguiu bater o pé ao ritmo da ditadura militar, denunciar a tortura, os demónios interiores da década de 70, e ainda, apenas com um punhado de instrumentos e rabiscos numa pauta, fazer um país dançar por dentro.

Previsão de tempo: neblina, com raios de sol

Em 1973 pousou no Brasil o extraterrestre Previsão de Tempo, álbum de Marcos Valle com a banda Azymuth, uma alienação musical da nossa aborrecida presença terrestre, de escritório e gravata, minutos contados, longe destes seres que planavam em nuvens de sintetizador. Entre cada golfada de ar, de silêncio, furam as notas esvoaçantes, uma batida que sabe a murro no estômago, uma palavra que ataca ferozmente um regime ditatorial, tiros certeiros de piano, calibre Fender Rhodes. “Apesar de ser um disco musicalmente de muito groove, alegre, tem um lado forte de protesto à ditadura”, confirma o compositor. “A própria capa do disco, comigo debaixo de água, é como se estivesse sufocado, lembrando os atos de tortura”.

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A capa de “Previsão do Tempo”, de 1973

A boiar, inerte, em frente ao fotógrafo, o irmão Paulo Sérgio Valle, letrista que traduziu em conceitos a miscelânea de sons que vinham das mãos irrequietas de Marcos Valle — e por sua vez, da soul de Stevie Wonder, funk de James Brown, jazz de Herbie Hancock, baião de Gonzaga, bossa de Gilberto — e costurou estas canções em bóias de salvação para o maremoto brasileiro. “A música ‘Tira a Mão’, que dizia, ‘tira-se, retira-se, tira daqui’, estava falando dos militares, ‘tira’ no Brasil é polícia, procurávamos falar de uma maneira que não fosse tão ostensiva, mas ainda fomos mutilados pela censura, era uma resistência”, explica Marcos. Os resistentes eram tipos que não gostavam de acordar cedo, como esclarecem no baião sem regras de “Nem Paletó, Nem Gravata”, que não se deixavam iludir pelo pão e circo do Maracanã, com “Flamengo Até Morrer”:

“Parece que finalmente resolvemos o dilema
Darío e Durval jogando juntos sem problema
Eu como um prato a menos, trabalho um dia a mais
E junto um trocadinho pra ver o meu Flamengo
Que sorte eu ter nascido no Brasil”

O time estava escalado, isto é, saiu a convocatória, era o ponta de lança Marcos Valle com Ivan Conti (bateria) e Alex Malheiros (baixo) nos flancos, e o criativo a distribuir passes de sintetizador, o teclista José Roberto Bertrami (hoje substituído por Kiko Continentino). “Apesar de cada um ser muito talentoso, quando eles tocam juntos existe uma linguagem, um perfeito entendimento, é uma coisa muito pessoal, parece que têm uma alma igual”. O álbum fundamental da música brasileira não existiria sem Azymuth, banda que então servia de acompanhante de luxo para Elis Regina e Odair José, até renascerem como monstros de groove nas mãos do compositor de “Samba de Verão”, batizados com uma canção deste mesmo surfista carioca.

“Estava fazendo a trilha sonora do ‘Fabuloso Fittipaldi’, os produtores queriam abrir o filme com uma música que eu já tinha escrito, sobre corrida de automóveis, chamada de ‘Azymuth’, o nome do aparelho que dá a direção dos aviões e carros”, conta. “Quando gravei novamente a música para o filme, eles trouxeram os três músicos”. O músico, ganha pão imprescindível da editora Odeon desde que estampou muita batucada nas novelas e nos salões de baile do Tio Sam, improvisou chamar esta gravação de Azymuth para não se comprometer com a Philips, editora concorrente que lançava ‘Fabuloso Fittipaldi’. Os novos três amigos gostaram, pediram licença ao compositor para continuar a usar o nome, e seguiram como Azymuth, a balouçar por uma longa carreira, desde “Manhã” à “Tarde”, suficiente para um dia inteiro de samples, desde Flying Lotus, Joey Bada$$ a will.i.am.

O álbum Previsão de Tempo é uma mão cheia de grooves, não obstante, salta dos auscultadores “Não tem nada não”, embalo hipnótico, excessivamente bem engendrado para morrer de uma assentada (“Não tem nada não II”). “Esse álbum é na mesma época que estou produzindo o álbum do Donato, Quem é Quem, e tinha de ouvir um monte de melodias em fita cassete para me preparar, entre elas a primeira parte de ‘Não tem nada não’”, recorda Marcos sobre o instante que marcou a carreira de João Donato.

“Talvez esse swing dentro de mim venha da minha família do Nordeste, a influência de xaxado, do baião, do acordeão, está tudo no meu sangue. Quando comecei queria pegar na técnica da música clássica que aprendi e colocar esse ritmo em teclas, trazer o groove para dentro de um instrumento brilhante, o piano”.

“A letra é totalmente baseada na história do Donato, que tinha voltado ao Brasil atrás de uma moça que achava que gostava dele, mas não gostava nada”. Raro apontamento lírico às lides da paixão, fora do campo de batalha, que prossegue em “Samba Fatal” e depois em “Tiu-Ba-La-Quiéba”, letra que sempre baralhou muita boa gente e é finalmente explicada: “Sou da segunda geração de surfistas no Rio de Janeiro, na praia do Arpoador, Ipanema, da época do surf romântico, e tinha um amigo que estava sempre pegando onda com a gente. De repente sumiu, ninguém sabia onde estava. Até que um dia, amigos comuns o encontrarem completamente maluco, não conseguia falar coisa com coisa, falava tudo trocado. Resolvemos usar essa linguagem para ‘Tiu-Ba-La-Quiéba’, e colocamos a possibilidade deste amigo ter sido vítima da tortura de choque, pelo regime militar.”

Segunda geração de surfistas e segunda geração da Bossa Nova

Previsão de Tempo foi lançado dez anos depois da estreia profissional de Marcos Valle, e “De Repente, Moça Flor”, última do álbum, é uma referência direta a “Moça Flor”, uma das canções embrionárias de 1963, assim como “Sonho de Maria”, todas gravadas com sucesso na segunda vaga da Bossa Nova, e com letra de Paulo Sérgio Valle. “O Paulo é um dos meus cinco irmãos, nos anos 60 moramos juntos, e quando comecei a fazer músicas, ele perguntou se dava para fazer uma melodia para uma letra chamada ‘Sonho de Maria’, foi a nossa primeira parceria”, explica, acrescentando que “a parceria sempre deu certo porque a gente tinha uma simbiose muito grande, temos apenas três anos de diferença de idade, ele me acompanhou quando cresci, sabia muito bem o que queria dizer com estas melodias”.

[“Sonho de Maria”:]

Agora, em 2018, Marcos Valle e os amigos da segunda vaga da bossa, Edu Lobo e Dori Caymmi, não passam ao lado da efeméride que marca os 60 anos de nascimento da batida de João Gilberto. Edu, Dori & Marcos é uma achega à saudade das melodias que encantaram o mundo, com novas interpretações destes três compositores, que ao lado de outros como Roberto Menescal, remaram de barquinho a nova onda da bossa, testemunho entregue diretamente das mãos de João Gilberto e Tom Jobim. “Edu Lobo havia estudado comigo no mesmo colégio, e só nos vimos novamente anos depois, quando entrei no ônibus e o encontrei com um violão”, recorda sobre o filho do compositor Fernando Lobo, amigo íntimo de Dori, por sua vez filho do gigante Dorival Caymmi. “Por conta dos pais famosos comecei a ser lançado nas reuniões de música, com aquela turma, meus ídolos todos reunidos, nem tive coragem de mostrar as minhas músicas no primeiro encontro”.

Numa destas célebre reuniões, que fizeram nascer a bossa e todos os mitos do sereno carioca balnear, canções de quem vive em frente ao mar, garantem ao jovem Marcos Valle que os Tamba Trio, banda de sucesso, querem gravar o “Sonho de Maria”, e que basta conseguir uma aprovação em frente aos mestres. “O pessoal aplaudiu as minhas músicas e naquele momento fui aceite pela Bossa Nova, foi uma noite inesquecível”. A porta estava escancarada, e o compositor, ainda de franjinha, não vai de modos, transmite o ritmo característico que palpita dentro do corpo, um swing indissociável da figura loira de olhar pleno. “Talvez esse swing dentro de mim venha da minha família do Nordeste, a influência de xaxado, do baião, do acordeão, está tudo no meu sangue”, reflete. “Quando comecei queria pegar na técnica da música clássica que aprendi e colocar esse ritmo em teclas, trazer o groove para dentro de um instrumento brilhante, o piano”.

Marcos Valle: “A minha vida seria muito diferente se não tivesse composto ‘Samba de Verão’” (foto de Quinho Mibach)

O resultado é “Samba de Verão”, e o impacto avassalador de quem vê passar esta canção — bronzeada, boazona, aos saltinhos e salpicos no mar — pode ser descrito como na própria letra:

“Olha, é como o verão, quente o coração, salta de repente, para ver a menina que vem”

[“Samba de Verão”:]

“Samba de Verão” chegou a estar três vezes ao mesmo tempo no top da Billboard norte-americana, um novo standard brasileiro, cantado por Sinatra e tantos outros, superado apenas por “The Girl from Ipanema”. “A minha vida seria muito diferente se não tivesse composto ‘Samba de Verão’”, consente o compositor que passou o ano de 67 numa longa digressão norte-americana com Sérgio Mendes, até decidir, surpreendentemente, que as atenções do mundo anglófono não lhe preenchiam a alma. “Comecei a sentir uma saudade imensa, uma vontade de voltar para o Brasil, não conseguia ter o desprendimento que outros músicos brasileiros tinham, era muito jovem”, explica hoje sobre o regresso ao Rio de Janeiro, no meio do turbilhão de sucessos nos EUA.

“Aquele momento de saudade, mais o momento do Brasil em 68, que foi o mais complicado da ditadura, me fez voltar para o Brasil e fazer logo a melodia de ‘Viola Enluarada’”. “Viola Enluarada”, gravada agora novamente no Edu, Dori & Marcos, é ao lado do “Bloco do Eu Sozinho” a primeira de muitas mutações na carreira de Marcos Valle, esta última com letra-poema de Ruy Guerra, terna canção que proclama a alegria teimosa brasileira, sobreviventes do samba para não chorar.

O compositor que na altura de “Samba de Verão” e “Preciso Aprender A Ser Só” demonstrava desconforto com a pressão social, e chegou a cantar:

“Se alguém disser que teu samba não tem mais valor
porque ele é feito somente de paz e de amor
não ligue não que essa gente não sabe o que diz”

E ainda:

“O samba bom é aquele que o povo cantar
de fome basta que o povo na vida já tem”

“Depois de anos e anos de censura absolutamente terrível, cada vez mais forte, ficou tudo cansativo para mim, começou me causando uma tristeza, falta de vontade de tocar subir ao palco. A censura abateu muito psicologicamente, a minha voz não saía, não queria cantar.”

Estava agora certo que tinha de fazer parte da luta armada de canções, e trocar de estratégia a cada ataque surpresa. “Sou irrequieto, não consigo ficar a fazer a mesma coisa, é da minha natureza, e sabia que podia dececionar fãs, que todas as mudanças são um risco, mas tinha de extrair de mim outras influências além da bossa, tinha de fazer uma mudança total nos meus discos, tinha de provocar”, reflete sobre a mudança brusca de sonoridades e momento mais inspirado da carreira, desde a crítica ao industrialismo de Mustang Côr De Sangue, o rock sensual do homónimo de 1970, o combativo Garra, o escape hippie lisérgico de Vento Sul, e claro, Previsão de Tempo. “A minha música é muito eclética, desde garoto que passei por música clássica, popular, jazz, rock, baião, e algumas vezes, quando ia gravar um disco, o que estava sentindo caminhava mais para um lado do que outro”.

E depois?

Entretanto, nos EUA, a Bossa já não era foda, e uma nova tentativa de furar o mercado internacional seria certamente um suicídio para a carreira intocável de Marcos Valle. “Depois de anos e anos de censura absolutamente terrível, cada vez mais forte, ficou tudo cansativo para mim, começou me causando uma tristeza, falta de vontade de tocar subir ao palco”, descreve sobre meados de 70, quando arrisca tudo e se muda para Nova Iorque. “A censura abateu muito psicologicamente, a minha voz não saía, não queria cantar”. Emigrante folgado, sem grandes planos, e chega de repente Califórnia, bate-lhe à porta Sarah Vaughan, depois os Chicago e Leon Ware, dá por si passam cinco anos de colaborações e trabalho entre os grandes da indústria.

Em Ipanema, tarde ensolarada, afeta ao doce balanço, decide que a nova década de 80 vai ser marcada pelo seu retorno à pátria quase democrática. Vontade De Rever Você, de 81, já gravado no Rio de Janeiro, de tronco nu e cabelo solto, foi ao lado do homónimo de 83 o período do pop clássico de boa disposição, exercício e namoriscar, que é como quem diz, qualquer dia na liberada Ipanema dos anos 80. O resto da carreira de Marcos Valle, desde as inúmeras presenças na TV Globo, aos samples de Kanye West, Air, Jay-Z, foi uma maré constante de vai e vem, de sucessivos desaparecimentos e aparecimentos, descobertas e consagrações, uma história que apanhou há mais de cinco décadas um jeito particular, batida envolvente, groove de uma vida, que ouvimos de olhos fechados, a dançar por dentro e esperamos que nunca acabe.

Azymuth & Marcos Valle em concerto, 30 de agosto às 22h, B’Leza, Lisboa. Mais info aqui.

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