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Será que a União Soviética lutava apenas em nome do “internacionalismo proletário” ou escondia por baixo dessa palavra de ordem o desejo de se apoderar das riquezas naturais dos países que estavam na sua zona de influência? Qual o papel dos serviços secretos russos no negócio dos diamantes em Angola? E qual a ligação entre Mário Neves, conhecido jornalista português e primeiro embaixador de Portugal na URSS, e o KGB soviético?
O misterioso homicídio de um empresário soviético com negócios em Angola e Moçambique
No dia 2 de novembro de 2009, um grupo de desconhecidos atacou com armas metralhadoras o automóvel Mercedes em que seguia Shabs Kalmanovitch (1947-2009), conhecido homem de negócios com fortes ligações tanto aos serviços secretos soviéticos (e, depois, russos), como ao mundo do crime na URSS e na Rússia. Só passado 12 anos a polícia conseguiu capturar dois dos assassinos, mas até hoje continua a desconhecer-se quem ordenou esse crime.
Como acontecia nos anos 1990 e acontece ainda hoje na Rússia, raramente as autoridades chegam aos verdadeiros mentores dos assassinatos, principalmente quando o mundo do crime se cruza com os serviços secretos.
Kalmanovich, cidadão soviético de origem judaica, nasceu na Lituânia em 1947. Em 1971, emigrou com a família para Israel, mas para receber a autorização de saída teve de aceitar colaborar com o Comité de Segurança de Estado (KGB) da URSS.
No início dos anos 1980, começou a desenvolver os seus negócios em África, nomeadamente em Angola e Moçambique, com a ajuda de “portas abertas” em Portugal por Evgueni Pitovranov (1915-1999), importante dirigente dos serviços de espionagem e contra-espionagem soviética.
Evgueni Pitovranov: “Tchekista de Estaline” e “amigo” de Mário Neves
Filho de um sacerdote ortodoxo, Evgueni Pitovranov fez uma brilhante carreira no NKVD/MGB/KGB da URSS, chegando ao cargo de vice-chefe do Primeiro Departamento do MGB (Ministério da Segurança de Estado) da União Soviética e dirigente da espionagem soviética no estrangeiro. Nos anos 1950, quando ocupava o cargo de primeiro conselheiro do KGB junto do Ministério de Segurança da República Democrática Alemã, foi um dos dirigentes da repressão contra as greves operárias.
Em 1966, depois de passar à reserva, mas continuando a manter fortes contactos com conhecidos dirigentes dos serviços secretos soviéticos como Iúri Andropov, Pitovranov passou a ocupar o cargo de vice-presidente da Câmara de Comércio da URSS, organização que dirigiu entre 1983 e 1988. Quando Andropov passou a dirigir os serviços secretos soviéticos, chamou-o para a realização de um grande plano: criar novas formas de fazer espionagem paralelamente às clássicas.
Pitovranov recordou no livro Tchekisti Stalina, as palavras do chefe do KGB: “Sei que o camarada Estaline tinha a ideia firme de que não nos podíamos limitar à estrutura do trabalho de espionagem que existe hoje. Deve-se considerar as possibilidades de reverificar os dados conseguidos através da espionagem do KGB e da GRU [espionagem militar]. É preciso complementar o que eles fazem. Mas isto tem de ser feito de forma conspirativa e útil para o Estado. Pensa numa estrutura paralela aos órgãos de segurança de Estado que possas propor. Mas, antes disso, é preciso ponderar tudo e resolver fundamentalmente o que se deve fazer ou não.”
Segundo Pitovranov, ele próprio propôs a criação de uma organização de espionagem chamada “Empresa”, que tinha por objetivo utilizar homens de negócios ocidentais que estavam interessados em assinar contratos com a URSS. Tendo em conta as dimensões do projeto, Andropov decidiu criar no KGB a Secção “P”. Foi precisamente neste período que o homem de negócios soviéticos se cruzou com o conhecido jornalista português Mário Neves (1912-1999), numa altura em que este ocupava o cargo de Comissário da Feira das Indústrias Portuguesas.
Os dirigentes soviéticos necessitavam urgentemente de compreender o que se passava em Portugal após o 25 de abril de 1974 e enviaram Pitovranov a Portugal. Por intermédio de Mário Neves, encontrou-se com o então Presidente, general António de Spínola. No livro Tchekisti Stalina, publicado sob o patrocínio do Serviço de Espionagem Estrangeira (SVR) da Rússia, lê-se:
No dia seguinte à sua chegada a Lisboa, Neves recebeu o seu amigo-parceiro moscovita à tarde, os dois generais [Pitovranov e Spínola] encontraram-se secretamente no palácio presidencial… Spínola recebeu com evidente interesse a proposta de um canal conspirativo direto entre as direções dos pois países. Ele expôs a sua plataforma política e delineou as vias mais prováveis das transformações futuras”.
O trabalho realizado pelo homem de confiança de Andropov em Lisboa foi de tal forma bem-sucedido que recebeu um forte elogio numa das reuniões do Bureau Político do Partido Comunista da União Soviética.
Esta não foi a única vez que Pitovranov se deslocou a Portugal durante o chamado período revolucionário. Numa delas, visitou os Estaleiros Navais de Viana do Castelo, que, nessa altura, começava a construir navios rio-mar para a União Soviética, negócio que permitia desviar dinheiro soviético para os cofres do Partido Comunista Português (como indicam documentos publicados no livro “Cunhal, Brejnev e o 25 de abril”, do mesmo autor deste artigo).
António Amaro de Matos (1933-2020), economista e empresário português, recordou uma dessas visitas num longo depoimento sobre os seus 40 anos de vida profissional, divulgado no Jornal de Negócios:
“O primeiro caso (trabalhadores manipulados do começo ao fim de uma manifestação) é exemplificado pela visita do presidente da Câmara de Comércio da República da Rússia, Sr. Pitovranov, ao estaleiro. Vinha, na sua comitiva, também a primeira cosmonauta soviética e o presidente da Associação de Amizade Portugal-URSS que tinha tomado a iniciativa do convite. É costume dos estaleiros hastear a bandeira da nacionalidade de visitantes ilustres. Apesar do período revolucionário, não foi fácil encontrar uma bandeira da União Soviética. Mas encontrámo-la, embora de dimensão mais reduzida do que o normal, e hasteámo-la à entrada. Passado algum tempo, desapareceu a bandeira, escamoteada por trabalhadores da extrema-esquerda, menos apreciadores do grande país, nessa altura, ainda a vanguarda do movimento proletário internacional.
E quando o convidado chegou, além de não haver bandeira, foi envolvido por centenas de trabalhadores hostis, gritando o seu protesto pela visita. Receámos pela sua segurança. Acabámos por conseguir tirá-lo de dentro do carro, fizemos uma pequena exposição no auditório sobre o estaleiro e conduzimo-lo numa visita rapidíssima às instalações, sempre perseguidos por trabalhadores em fúria. Durante o almoço, na Estalagem da Quinta das Torres para maior tranquilidade, já mais recomposto, o nosso convidado teceu considerações muito agrestes relativamente aos nossos proletários e quanto à falta que nos fazia uma Sibéria qualquer para lhes dar destino”.
Confirmou-se também que Pitovranov não só tinha experiência de enviar trabalhadores para a Sibéria, mas também de reprimir as suas manifestações noutros países do bloco comunista.
Amaro de Matos continua as referências a Pitovranov no seu depoimento:
Retribuiu o convite e encontrei-o de novo na União Soviética. Mais tarde, voltou a Portugal e alguém na FIL o reconheceu como tendo sido o responsável pelo KGB na Alemanha Oriental durante a sangrenta repressão de 1957.”
Mas Pitovranov não se interessava só por Portugal, nem Mário Neves seria apenas um “amigo-parceiro”.
O jornalista russo Evgueni Zhirnov escreveu no jornal Kommersant:
“A atividade da “Empresa” teve mais êxito em Moscovo. Pitovranov conhecia um dos diplomatas ocidentais altamente colocados que estavam acreditados na capital da URSS, e começou a ajudá-lo nos seus assuntos pessoais e oficiais. A gratidão do diplomata não tinha limites, nomeadamente sob a forma de informação sobre a estrutura interna nas embaixadas estrangeiras a que o KGB não tinha acesso. Comunicava-lhe também o conteúdo das conversas entre os diplomatas altamente colocados sobre as questões mais sensíveis da política da NATO, Estados Unidos, etc.”
Este precioso informador era Mário Neves, o embaixador de Portugal em Moscovo. Vladimir Popov, antigo tenente-coronel do KGB, que, entre 1972 e 1991, controlava as viagens de soviéticos ao estrangeiro, as organizações culturais e a cooperação internacional, escreveu no seu livro Conjura dos canalhas. Notas de um ex-tenente-coronel do KGB:
“O escritor democrata Mário Neves, que também era diretor da Associação de Feiras de Lisboa, foi mais um dos valiosos contactos operativos da 8.ª Secção do 5.º Departamento do KGB. Nas conversas privadas com ele, Pitovranov tirou uma conclusão correta sobre o enorme potencial económico das colónias africanas de Portugal, perdidas por ele em 1974 depois da revolução dos “cravos vermelhos”. Neves, que conhecia bem importantes portugueses que tinham negócios em África, deu as respetivas recomendações a Pitovranov, que soube utilizá-los bem a favor do grupo de tchekistas por ele dirigido”.
Os serviços secretos soviéticos e russos não irão reconhecer que Mário Neves foi um seu importante informador, considerando mesmo essa alegação uma calúnia. Mas o relato dos acontecimentos que fazem no já citado livro Tchekisti Stalina deixa no ar mais perguntas do que respostas:
“Ele [Neves] habituava-se com dificuldades aos nossos frios e a algumas outras coisas, principalmente na organização da vida quotidiana. Pitovranov tornou-se o seu apoio seguro… Isso preocupou seriamente os serviços secretos portugueses: a conselho dos parceiros da NATO, eles começaram a desconfiar de que existisse algo de subversivo numa normal amizade humana. Neves passou a ser seguido, o seu gabinete e apartamento passaram a estar cheios de meios de escutas, todas as chamadas telefónicas eram controladas.”
Tudo indica que Mário Neves forneceria informações aos serviços secretos soviéticos apenas por mera simpatia política, não havendo provas de que tenha recebido contrapartidas financeiras. No entanto, esta colaboração de Mário Neves com o KGB não lhe prejudicou a carreira. Depois de regressar de Moscovo, em 1979, fez parte do V Governo Constitucional, chefiado por Maria de Lurdes Pintassilgo, na qualidade de Secretário de Estado da Emigração.
Portas abertas para o tráfico de armas e diamantes
Hoje é evidente que a tão apregoada política soviética de “internacionalismo proletário” não era mais do que uma capa para a URSS realizar a sua ação imperialista em competição com os Estados Unidos nos vários continentes, mas os novos países que emergiram após o fim do império colonial português pouco ou nada ganharam com a sua independência. Dilacerados por longas guerras civis, eram privados das suas riquezas naturais para pagar armamentos.
Segundo Vladimir Popov, Mário Neves ajudou a “abrir portas” para a entrada dos serviços secretos soviéticos nos negócios em África: “Pitovranov sabia do enorme potencial económico das ex-colónias africanas de Portugal, perdidas após a Revolução dos Cravos de 1974, das conversas privadas que o escritor democrata Mário Neves, que era também diretor da Associação de Feiras de Lisboa, mantinha com as elites políticas e de negócios influentes”. A seguir, Vladimir Popov escreve como começou a infiltração da “máfia” soviética, e depois, russa, em África:
Desde 1975, no território de Angola, Moçambique e Namíbia tinham lugar guerras civis. Nos combates participavam tropas da República Sul-Africana. A URSS, a pedido do dirigente do “Movimento Popular pela Libertação de Angola” (MPLA), prestava a este movimento uma ajuda militar e financeira significativa. Além da URSS, o MPLA recebia apoio militar de Cuba socialista.”
Homens como Pitovranov e Kalmanovich tentavam tirar os maiores proveitos possíveis. Segundo o antigo agente do KGB Vladimir Popov, “utilizando as possibilidades dos agentes ilegais soviéticos, [a URSS] começou a fornecer armas aos grupos adversários. Estes apenas podiam pagar com minérios, principalmente diamantes, platina e ouro”.
Os negócios de Kalmanovich corriam tão bem que rapidamente se alargaram ao Botswana e à Serra Leoa, tornando-o cada vez mais famoso entre os traficantes de diamantes. À medida que aumentava a sua riqueza, crescia também a sua influência política. Um dos feitos de que mais se gabava na vida foi a libertação de Miron Markus, homem de negócios israelita que foi feito prisioneiro pela Frelimo em Moçambique e acusado de espionagem. Kalmanovich foi um dos que participou na sua libertação.
Porém, em maio de 1987, o “homem de negócios” israelita foi, juntamente com o seu sócio Vladimir Davidson, detido em Londres e acusado de ter passado cheques falsos a uma empresa americana e de tentar vender “diamantes de sangue”. Libertado sob fiança, refugiou-se em Israel onde também acabou por ir para a prisão por “espionagem a favor de um Estado estrangeiro”. Ou seja, Kalmanovich continuava a trabalhar para o KGB soviético.
Foi condenado a uma pena de prisão de nove anos, mas passou atrás das grades pouco mais de cinco anos, tendo sido libertado em 1993 a pedido das autoridades e de influentes políticos russos. Regressou aos seus negócios escuros na Rússia e na Lituânia, tornando-se um dos principais personagens do crime organizado na Rússia, mas os seus concorrentes e inimigos não lhe terão perdoado “pecados antigos”.