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Mário de Sá-Carneiro: o excesso e a zoina

Fernando Cabral Martins, professor de Literatura e especialista na obra de Sá-Carneiro, recorda o legado do poeta a propósito dos cem anos da sua morte, que aconteceu em Paris a 26 de abril de 1916

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Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.

Uma obra meteórica

Há três tipos de textos em Sá-Carneiro: os que não publica, os que apenas publica soltos e os que integra em livros. Os textos que não publica são apenas os exercícios iniciais em cadernos (editados em 1986 por François Castex, sob o título Poemas Juvenis). Os que apenas publica soltos na imprensa são raras colaborações. Os que integra em livros são quase todos os que escreve a partir de 1912 (há nele um desejo de livro, com uma arquitectura forte e uma estratégia de publicação, que Pessoa, por exemplo, não tem). São eles: em 1912, Amizade, peça de teatro escrita de parceria com Tomás Cabreira Júnior (um amigo que se suicida com um tiro de pistola, no início de 1911, nas escadas do Liceu Camões) e que se representa em Lisboa nesse ano, no Club Estefânia, e Princípio, livro de contos; em 1914, A Confissão de Lúcio, romance, e Dispersão, poesia; em 1915, simultaneamente ao Orpheu 2, o livro de narrativas Céu em Fogo. Além dos dois números de Orpheu, estes quatro livros são o mais importante conjunto textual modernista publicado nesse tempo.

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Depois, envia em 1916 a Pessoa um caderno com os versos de Indícios de Oiro passados a limpo, livro que vem a ter edição em 1937, promovida pela presença e sob orientação de Pessoa. Tal como terá de esperar por 1987 a publicação de Alma, peça de teatro de 1913 escrita com outro amigo, Ponce de Leão. Entretanto, da muita correspondência que escreveu, o que mais conta são os dois volumes de Cartas a Fernando Pessoa, editados pela primeira vez em 1958 e 1959.

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Isto dito, há um primeiro Sá-Carneiro que, sob a dominante decadentista, corresponde a uma primeira fase do seu trabalho (na verdade, paúlica seria a designação apropriada). A sua produção vanguardista tem já a ver com uma segunda fase, que talvez se possa marcar a partir do Orpheu 2 e do seu último regresso a Paris.

A oposição e sucessão das duas fases por que passa o seu trabalho pode ter ainda uma outra fundamentação poética, que é a mudança do oxímoro como figura central – “eu não sou eu” – para aquilo que na correspondência várias vezes irá referir como o “destrambelho”, ou seja, a dissonância que resulta do contraste entre tonalidades extremas (como no poema “Aquele Outro”: “O mago sem condão – o Esfinge gorda…”).

Por outras palavras, é a transição brusca do excesso como desejo e destino (“Morro à míngua, de excesso”, do poema de 1913 “A Queda”) – para a zoina e para a fatalidade do mal (“E sempre o Oiro em chumbo se derrete / Por meu Azar ou minha Zoina suada…”, do poema de 1916 “Crise Lamentável”).

A revolução na linguagem

Do ponto de vista da História, é como se Sá-Carneiro refizesse todo o caminho que conduz ao Modernismo.

Escreve, em Paris, de Janeiro a Maio de 1913 (regressa a Lisboa em finais de Junho), os fragmentos “Além” e “Bailado”, o conto “O Homem dos Sonhos” (cujo tema pode ser aproximado do de “O Marinheiro”, peça de Pessoa publicada no Orpheu 1) e todos os poemas de Dispersão. Elabora, na correspondência com Pessoa desses meses, um projecto de arte que consiste na criação de uma nova linguagem. É então que se dá o nascimento do Paulismo, logo desdobrado em Interseccionismo, no quadro da teorização do Sensacionismo que Pessoa elabora em 1914, e que será o fundamento dessa linguagem inaudita – que os contemporâneos não tinham como saber ler.

Há um primeiro Sá-Carneiro que, sob a dominante decadentista, corresponde a uma primeira fase do seu trabalho (na verdade, paúlica seria a designação apropriada). A sua produção vanguardista tem já a ver com uma segunda fase, que talvez se possa marcar a partir do Orpheu 2 e do seu último regresso a Paris

O diálogo entre Sá-Carneiro e Pessoa é o facto literário por excelência da transmutação que ocorre no Modernismo português.

Mais tarde, entre Janeiro a Março de 1914, escreve dois textos que se relacionam pelo seu tema: Ressurreição – e a muito célebre quadra 7:

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Para além de se ter tornado um emblema de Sá-Carneiro, esta quadra é uma formulação concisa do tema central do conto “Ressurreição” que é escrito ao mesmo tempo: numa e noutro, a questão é a perda de um Eu definido, a flutuação num espaço em que não há identidades fixas.

É inevitável lembrar aqui a data de 8 de Março de 1914. É nesse dia que, numa carta de 1935 a Casais Monteiro, Pessoa situa a génese dos heterónimos. Quer dizer, é pela mesma altura em que a crise do Eu se torna questão central para a escrita de Sá-Carneiro que Pessoa resolve o imbróglio, que é o mesmo e sentido do mesmo modo, dando vida poética a outros que não ele, desdobrando-se em personagens de autores de si mesmo diferentes.

Depois de nova estadia em Paris, de Maio a Setembro de 1914, e numa deambulação que o traz de volta a Lisboa, fugindo da eclosão da Grande Guerra, Sá-Carneiro escreve, entre outros, a série de doze poemas intitula da “Para os ‘Indícios de Oiro'”, publicada no Orpheu 1.

Há então um hiato na sua produção, de finais de Outubro de 1914, que se segue ao ponto final no seu último conto, “Asas”, a Fevereiro de 1915. “Asas” é, de resto, um dos seus contos mais curiosos, pois delineia de modo caricatural uma figura de artista – Zagoriansky – a quem são atribuídos os fragmentos “Além” e “Bailado”. Por este processo, aliás, esses dois textos de inícios de 1913, que foram os primeiros do Paulismo, revelam o seu lado de paródia e provocação.

Quanto aos “Poemas sem Suporte” para Orpheu 2, são escritos entre Março e Maio de 1915: “Elegia” e “Manucure”, dois textos que respondem a poéticas diferentes, simbolista e futurista, e funcionam como os painéis de um díptico. Não é sem razão que os seus poemas, com os de Álvaro de Campos, são os que mais polémica despertam nesse número da revista.

Último meses, últimos poemas

Sá-Carneiro parte para Paris a 11 de Julho de 1915, sem explicações nem despedidas, como se quisesse fugir. É de então que data o poema “Desquite”, cujo título parece remeter para essa conjuntura autobiográfica de ruptura.

Quer dizer, é pela mesma altura em que a crise do Eu se torna questão central para a escrita de Sá-Carneiro que Pessoa resolve o imbróglio, que é o mesmo e sentido do mesmo modo, dando vida poética a outros que não ele, desdobrando-se em personagens de autores de si mesmo diferentes.

A que se seguem os “Poemas de Paris”, segundo o título previsto por Sá-Carneiro (carta a Pessoa de 19 de Outubro de 1915): “Escala”, “Sete Canções de Declínio”, “O Lord” e as três redondilhas escritas em Setembro, “Serradura”, “Abrigo” e “Cinco Horas”, que acentuam um tom de verdadeiro “desquite” da escrita paúlica de antes. Há em todos estes versos uma grande intensificação da carga emocional e, ao mesmo tempo, uma simplificação de processos. É desta altura também o poema “Ápice”, que parece marcar uma opção pela experiência real do mundo físico. Sinal de que alguma coisa mudou de vez.

E, de Outubro de 1915 em diante, os últimos poemas, entre os quais o tríptico de sonetos “O Fantasma”, “El-Rei” e “Aquele Outro”, contribuem para a identificação de uma imagem do poeta como decepção viva, caranguejola sem remédio e sem esperança.

Recorde-se que a síntese que é a poesia heteronímica de Pessoa torna num só os três géneros fundamentais do esquema tradicional, pois ela é, indestrinçavelmente, lírica, épica e dramática. Ora, a arte de Sá-Carneiro tem exactamente a mesma energia transgressiva das fronteiras entre os géneros, visível, por exemplo, em “Eu-Próprio o Outro”, narrativa que é ao mesmo tempo uma sequência lírica, ou em longas passagens de contos como “A Grande Sombra”, “Mistério” e “Ressurreição”. E a natureza trágica dos últimos poemas remete também para uma aproximação entre a poesia lírica e uma espécie de acto teatral.

No entanto, onde Sá-Carneiro realiza uma verdadeira metamorfose dos géneros literários é nas cartas. Os próprios poemas da última fase de Paris (a partir de Julho de 1915) não podem ser lidos sem essas cartas, nas quais muitas vezes se integram: já não é apenas de “poesia” ou de “correspondência” que se trata, e já nem sequer de “arte” no sentido institucional do termo, mas de outra coisa qualquer, para a qual não há nome porque não se distingue da vida.

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