“Linda”, “Só queria uma noite contigo”, “Grandes mamonas”, “Anda cá”, “Miau”, “Ei, princesa, estás de mau humor?”.
Uma mulher atravessa o palco, o rosto trancado resiste a cada piropo que o atinge como um golpe. “Não é necessário contacto físico, para sentirmos que nos estão a tocar”, diz-nos, de olhos cravados no público. “Às vezes um olhar é suficiente”. E continua: “O homem baixa o vidro, um pouco mais. “Anda lá, entra…” O homem continua a guiar, atrás de mim. Não vai para lado nenhum: sou eu a sua meta.”
Não é uma situação hipotética, é um episódio do dia-a-dia de metade da população mundial — as mulheres. É esse retrato da violência exercida sobre o corpo feminino que a coreógrafa francesa Mathilde Monnier mostra no espetáculo Black Lights, que tem uma apresentação única no Festival de Almada, a 10 de julho, no Palco Grande da Escola D. António da Costa, naquela cidade.
“É a primeira vez que trago um tópico social e político a palco de uma forma que é tão clara”, diz Monnier ao Observador, dias antes. “A peça explica como nos [mulheres] sentimos a toda a hora, desde que o sol amanhece.”
Nesta sequência de histórias de violência há abusos físicos e verbais, demonstrações de machismo, discriminação. E, tal como na vida, estão em todo o lado: na rua, em casa, no emprego, na escola, nos transportes, no tribunal. Sem rodeios ou enfeites literários, de forma crua, direta.
Foi depois de assistir à série H24 (2021), do canal ARTE, que a criadora francesa escolheu debruçar-se sobre a temática, escolhendo nove dos 24 textos que as realizadoras Valérie Urrea e Nathalie Masduraud filmaram sobre a violência exercida diariamente sobre mulheres nas mais variadas situações. “Escolhi os textos a partir do que era para mim mais importante: a capacidade de se adaptarem ao palco”, justifica. Optou por aqueles em que “não há ambiguidade sobre a mensagem, em que a mensagem é clara”.
Aos 65 anos, a bailarina e coreógrafa Mathilde Monnier ocupa um lugar de referência no panorama da dança contemporânea francesa e internacional. A sua última passagem por Portugal foi em 2019, com Please Please Please (a partir do texto que Tiago Rodrigues escreveu para ela e para La Ribot). Black Lights é, de alguma forma, uma continuação dessa peça. Também esta dá “poder ao corpo”. “Conta muito mais histórias do que o texto, na verdade. Há uma clareza, não tanto de mensagem, mas de postura. A posição da performance é muito clara. Não é sobre ser a vítima. É sobre dizer a verdade”. No caso, que a violência e o assédio são uma experiência diária do que implica ser uma mulher no mundo.
Há uma aparente dualidade em Black Lights: se a palavra é o meio de denúncia das fragilidades, o corpo é o instrumento de afirmação. A vulnerabilidade que se escuta contrasta com uma atitude de confiança e autoridade. Monnier concede: “É verdade. O corpo tem muito poder. Queremos mostrar que ele tem de ser visto, em frente ao público, mostrar que estamos aqui.”
Aos poucos, cada uma das mulheres vai tomando um lugar de destaque no palco. Atravessam a cenografia cada vez menos constritas, progressivamente conquistando espaço e amplitude nos movimentos. Abeiram-se do público, reclamam o direto ao corpo e, consequentemente, ao poder. Quando chegam a primeiro plano, contam uma história, à vez. Mathilde Monnier “sabia que queria atrizes, de diferentes idades, contextos, nacionalidades, experiências”. Assim chegou a oito intérpretes: Aïda Ben Hassine, Kaïsha Essiane, Lucia García Pulles, Mai-Júli Machado Nhapulo, Jone San Martin Astigarraga, Ophélie Ségala, e as portuguesas Carolina Passos Sousa e Isabel Abreu, esta última responsável por abrir o espetáculo com um verso em jeito de eufemismo: “Há qualquer coisa que não bate certo”.
Ao longo de pouco mais de uma hora, o público é confrontado com diferentes tipos de violência, da perseguição de carro a mulheres que regressam a casa sozinhas ao assédio mascarado de elogio, passando pela descredibilização escondida na crítica construtiva ou até ao código de vestuário em prol do bem de todos — veja-se a necessidade de usar saltos altos para que os clientes de uma determinada empresa fiquem “bem dispostos”.
São histórias individuais, com base em factos verídicos, mas que ecoam como uma só. “Todas as vozes são no fundo uma voz comum”, diz ao Observador Carolina Passos Sousa, 27 anos, que leva à cena o “único texto em que uma mulher acaba por agir”. “Cada uma tem uma história, mas estamos juntas e encontramos uma voz comum, feminista. Mas no fundo só estamos a partilhar histórias. E agora? Agora resolvam”, desafia.
“Fala-se sobre as coisas altamente visíveis, altamente palpáveis, e sobre as coisas invisíveis, que não conseguimos nomear, e que são altamente violentas”, explica ao Observador Isabel Abreu, que não esconde a importância que o espetáculo e o encontro com Monnier representa no seu percurso. Atriz reputada, nome maior da representação portuguesa, que colhe rasgados elogios (“é, para mim, uma das melhores atrizes deste tempo”, descreve-a a coreógrafa), e simultaneamente uma mulher também ela assombrada pelo que não se vê.
“Tenho uma piada é que é que já nasci aquecida”, afirma com um sorriso, depois de revelar que, até Black Lights, não fazia aquecimentos de corpo nem de voz. “Acho que a minha relação com o corpo foi uma resposta às violências a que socialmente fui sujeita”, confessa. Nomeadamente a forma como, na infância, a marcou ter usado um aparelho para corrigir a forma de andar. “O facto de ter os pés para dentro, aquela maneira de andar, as botas ortopédicas, os elásticos, e ser gozada por isso, fez com que me fosse sistematicamente afastando do meu corpo, não quisesse estar disposta à humilhação do que era não ser capaz. Tinha uma forma de andar muito particular. Depois cresci e mesmo no Conservatório o corpo foi sempre uma questão. Nunca fiz desporto, odeio desporto por causa desse trauma, acho que a palavra é mesmo essa. Durante muito tempo nem usava saia. Lá está, são as micro-violências sobre o corpo feminino, sobre os estereótipos, coisas que nós não nos apercebemos, mas que ficaram aqui.”
O convite e consequente encontro com Mathilde Monnier foi um momento transformador. “Não queria acreditar que seria possível, e muito menos aos 46 anos, deparar-me com o meu corpo em movimento, com a dança. Mas a dança existe em nós, independentemente do nosso corpo”. Não é por acaso que o espetáculo esteve para se chamar Ceci est mon corps (“Este é o meu corpo”, em português). De resto, a expressão é repetida ao longo do espetáculo.
Não há uma tentativa de choque em Black Lights, que foge à tentação do tom moralista e acusatório. Mas não exclui situações limite, como o caso de uma mulher que faz repetidas denúncias, mas que nunca é ouvida. “Quando a primeira juíza disse que o meu testemunho era “duvidoso”, senti a esperança resvalar”, escutamos.
“Estamos sistematicamente a ser inundados com essas notícias, de pessoas que avisam não sei quantas vezes que vai acontecer”, lamenta Isabel. “E as pessoas que às vezes têm a coragem de denunciar são muitas vezes tratadas como se fossem as culpadas de estar a querer fazer mal a alguém que lhes fez mal a elas. Como se estivessem a querer destruir a vida de alguém que lhes fez mal”.
Em Black Lights, o palco torna-se arena e a cada palavra a mais a desigualdade se expõe como um golpe preciso. “Embora haja muita gente que acredita que não, que já partilhamos os mesmos lugares, que temos o mesmo, que a paridade existe, que esta igualdade existe, não é verdade. Não ocupamos. Lamentavelmente.”
Mathilde corrobora. “Há muito a fazer. Se há muita gente já a falar sobre este assunto, a verdade continua a ser mais complexa do que isso. Mesmo no mundo da artes ainda existe uma posição hierárquica de superioridade masculina. Basta olhar para política em Franca, são sobretudo homens que encabeçam os partidos. Estamos num momento em que temos de lutar de novo. Nada é garantido. Pode um dia ser, quando os homens tiverem a mesma posição que as mulheres. Mas esse não é o caso hoje. Por isso é que ainda temos de lutar.”
Desde a estreia em Montpellier, França, em junho de 2023, que o público tem reagido com fervor. “Continua a ser incrível ver como, sobretudo as mulheres, são tocadas pela peça. Realmente tocadas”, diz Mathilde. “É uma explosão”, descreve Isabel. “Vi muitas, muitas, muitas mulheres a chorar muito no fim do espetáculo. Por onde a música as pode levar, mas também por como se vão identificando com as palavras, as histórias”.
“Algumas pessoas choram, outras querem lutar, ou querem dar o seu testemunho. É como se falássemos diretamente para o público. Cria-se uma relação muito direta, íntima”, nota Mathilde. O que pensarão os homens que vêm o espetáculo, a quem é denunciado o privilégio de não terem, na sua maioria, de lidar com o olhar intruso, com o gesto não consentido? Monnier contesta. “Não sei o que os homens pensam. É um mistério. No público vejo homens que agradecem, que dizem ‘agora sei’, ‘agora já não posso dizer que não sabia disto”, ‘abriu-me os olhos'”. Todavia não se deixa deslumbrar: “Os homens que vêm a este tipo de performance já estão de alguma forma no processo de mudança e de se questionarem. Empatizarão os que tenham sofrido situações de violência. Talvez esses entendam, de uma forma diferente, claro, mas talvez entendam no seu íntimo.”
Depois de Almada, Black Lights vai viajar até 2026, com cerca de 80 apresentações. Uma e outra vez, não amparará os golpes, não oferecerá consolo. Mas denunciará e alertará: o combate à violência contra as mulheres continua a ser uma luta, de todos os dias, e de todos.
Palco Grande da Escola D. António da Costa (Almada). 10 de julho, quarta-feira, às 22h. Bilhetes €17,50. A bilheteira abre 1h antes do espetáculo.