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Para fortuna das bandas punk e das editoras, haverá sempre uma geração de miúdos de 13 anos que ignoram tudo sobre o passado e não suspeitam de que as bandas que lhes são vendidas como “the flavor of the month” são apenas a enésima repetição (com uma ou outra actualização nos cortes de cabelo, tatuagens e piercings) de uma receita que data de finais dos anos 60. Só assim se explica que um género musical com uma paleta emocional tão restrita e assente num número limitado de fórmulas musicais continue vivo e a facturar, quase meio século depois da formação dos Stooges e dos MC5.
Já é mais difícil de explicar, dada a maior sofisticação do público da música erudita, que novas fornadas de compositores minimalistas sejam acolhidas como inovadoras e audaciosas, quando se limitam a replicar e recombinar o limitado leque de recursos de pioneiros como Philip Glass, Steve Reich ou Terry Riley. Na verdade, mesmo os compositores em tempos celebrados como inovadores parecem incapazes de sair dos sulcos que abriram: Glass tem produzido resmas de óperas, sinfonias, concertos, música de cena e bandas sonoras, tão parecidas entre si quanto a ovelha Dolly era com a sua progenitora (ver “Philip Glass aos 80: Onde é que já ouvimos esta música?“), Reich não compôs nada de relevante desde o genial par Different trains (1988) + Electric counterpoint (1989) (ver “Steve Reich aos 80: Este disco não está riscado“), Pärt anda em círculos há duas décadas e a sua espiritualidade e despojamento começam a soar como beatice e escassez de ideias.
Uma fotocópia esbatida
O britânico Max Richter (n. 1966), que teve formação na Royal Academy of Music e foi aluno de Luciano Berio, limitou-se, durante muitos anos, a uma carreira discreta no colectivo Piano Circus, um sexteto de pianos especializado na interpretação de música minimalista – a inusitada formação nasceu para tocar Six pianos, de Reich, e passou a encomendar obras a compositores como Andriesen, Eno, Nyman, Riley ou Tüür, além de tocar peças do próprio Richter.
Inesperadamente, no início do século XXI, Richter “desabrochou” como compositor. Apesar de a sua música ser uma derivação das já de si derivativas estéticas de Michael Nyman, Henryk Górecki e Ludovico Einaudi (e do Roger Eno de Between tides), Richter foi recebido pela crítica e pelo público como um messias. The blue notebooks (2004), uma anódina recombinação de The piano (de Nyman), kraut rock e neoclassicismo fora de prazo, foi saudado pela revista online Pitchfork, o oráculo do hype, nestes termos: “Não só o melhor disco dos últimos seis meses, como um dos mais tocantes e universais discos de música clássica na memória recente”.
A música de Richter tem pouca substância, mas muitos dos seus projectos ganham uma aparência de profundidade ao unirem-se a referências da alta cultura: em The blue notebooks Tilda Swinton declama Franz Kafka;
[“The blue notebooks”, do disco homónimo]
em Songs from before (2006) Robert Wyatt resmoneia Haruki Murakami (ou a lista telefónica – é difícil distinguir tão bera é a sua dicção). Richter pode ter recursos limitados como compositor, mas domina a arte do name-dropping e sabe como decorar uma peça esquálida de forma a dar-lhe uma aparência digna.
Entretanto, Richter foi também afirmando-se como compositor de bandas sonoras para cinema – como “Valsa com Bashir” (2007), de Ari Folman, “Impardonnables” (2011), de André Téchiné – e TV (séries da BBC e HBO), domínio a que o seu papel-de-parede sonoro se adequa perfeitamente, sobretudo quando é preciso convocar atmosferas elegíacas, melancólicas ou soturnas.
[“The haunted ocean”, da banda sonora de Valsa com Bashir: uma reciclagem de Philip Glass]
Pai, estou editado na Deutsche Grammophon!
A afirmação de Richter entre o público e a crítica levou a veneranda Deutsche Grammophon, aflita para travar a erosão e envelhecimento do público tradicional da música clássica, a acenar-lhe com um contrato, vantajoso para ambos os lados: a editora ganharia uma fatia de público abaixo dos 65 anos e Richter ganharia respeitabilidade por figurar no catálogo da “marca amarela” entre Ravel e Rimsky-Korsakov.
Assim respaldado, Richter sentiu-se capaz de dar um passo “ousado” e muito pós-moderno: “recompor” As quatro estações de Vivaldi. A reciclagem do barroco não é nova entre os minimalistas – Michael Nyman tem vindo a suprir a sua curta inspiração com fragmentos de Henry Purcell – mas Richter teve a astúcia de usar uma peça bem conhecida e de ter chamado para solista Daniel Hope, uma vedeta do violino. Recomposed (2012) não passa de uma versão diluída e inerme dos quatro geniais concertos de Vivaldi, mas subiu aos tops clássicos (ao fim de todo este tempo ainda é n.º1 de vendas na categoria “Música de câmara para cordas” na Amazon UK) e recebeu críticas favoráveis da imprensa britânica de referência.
Em 2014, a Deutsche Grammophon reeditou os discos anteriores de Richter publicados originalmente na Fat Cat – The blue notebooks, Songs from before, 24 Postcards in full color e Infra – na caixa Retrospective e reeditou Recomposed com o bónus Shadows (uma infusão electrónica com vestígios de Vivaldi) como bónus.
Nos braços de Morfeu
Com mais este capital de prestígio no bolso, Richter arriscou uma parada ainda mais alta (e tão tipicamente pós-moderna como a anterior): Sleep, uma “canção de embalar” que se estende por 31 faixas distribuídas por oito CDs, com uma duração total de oito horas, 24 minutos e 21 segundos. Com Sleep, Richter afirma pretender aquilo que, usualmente, os compositores mais receiam que aconteça com a sua música: “que as pessoas adormeçam ao ouvi-la”.
Para quem não tenha tempo para um sono de oito horas e meia, Richter providencia o CD From Sleep. No entanto, From Sleep não é a versão “sesta” de Sleep, pois Richter faz questão de realçar que “são dois objectos diferentes”: ao passo que Sleep “se destina a ser ouvido – vivenciado – de uma só vez, enquanto o ouvinte dorme, […] From Sleep foi concebido para ser ouvido quando se está desperto”. As peças incluídas na versão “sesta” têm títulos ligeiramente diferentes dos que surgem na versão de oito horas, mas são, essencialmente, a mesmíssima sensaboria, com alterações mínimas nos arranjos – é duvidoso que o próprio progenitor seja capaz de distinguir as peças “acordadas” das “adormecidas”.
Sleep são meia dúzia de notas diluídas em quase oito horas e meia de duração – é a adaptação do conceito de homeopatia à música. Os teclados e electrónica de Richter, coadjuvados pela soprano Grace Davison (pendurada no extremo agudo do registo) e as cinco cordas do Contemporary Music Ensemble, fazem as parcas notas assumir a forma de espuma de muzak angelical (“Whose name is written on water”), de música de câmara liofilizada (“Patterns (cypher)”), de piano sonhador em colchão de drones electrónicos (“Dream 1”), de New Age caramelizada (“If you came this way”) ou de murmúrios electrónicos batidos em castelo (os 43 minutos do CD 7). Ou seja, Sleep retoma os truques e tiques já conhecidos das suas obras anteriores, só que em versão dilatada até ao absurdo. É a música para reiki e meditação travestida de composição “erudita”. É o tédio elevado à categoria de arte.
É tolo e nem sequer é novo, como se verá adiante.
O que Richter não parece ter previsto é que, apesar da atmosfera beatífica, a sua música possa induzir não o sono mas a irritação. A repetição da mesma melodia simplória durante 20 ou 30 minutos ininterruptos pode levar o ouvinte exasperado a atirar o CD pela janela e por volta da quinta hora é o leitor de CDs que pode ficar em perigo. Por outro lado, mesmo que Sleep induza letargia, nada garante que esta seja inócua ou sequer reversível. E como serão as interacções com outros medicamentos? Interferirá com a capacidade de conduzir veículos e operar máquinas? Deverá ser mantido fora do alcance de crianças e animais domésticos?
Talvez a sua comercialização devesse ser sujeita a autorização do Infarmed e até a receita médica. E a caixa deveria vir acompanhada obrigatoriamente de uma bula, explicitando posologia, contra-indicações e composição.
Sentimentos em segunda mão
Mesmo sem bula, não é difícil de adivinhar que um dos ingredientes principais de Sleep – como da restante música de Richter – é o kitsch. A atmosfera elegíaca, a nobreza, a profundidade e a gravitas que emanam das composições de Richter são falsas, são apenas a reprodução superficial, edulcorada e hiper-simplificada dos estereótipos de beleza e serenidade da música do final do século XIX, o que sobrou do tardo-romantismo depois de digerido por sucessivas gerações de compositores de bandas sonoras para filmes. Como escreve Kundera em A insustentável leveza do ser, o kitsch apela “para algumas imagens-chave profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, as crianças a correr num relvado, a pátria traída, a recordação do primeiro amor. O kitsch traz-nos duas lágrimas de emoção aos olhos, uma logo a seguir à outra. A primeira diz: que coisa bonita, crianças a correr num relvado! A segunda diz: que coisa bonita, comovermo-nos como toda a humanidade se comove quando há crianças a correr num relvado!”. A música de Richter combina na perfeição com imagens, em câmara lenta e com grão, de crianças correndo num relvado – ou numa praia. Estamos no reino do sentimento em segunda mão.
[Excerto de “Dream 13”, de From Sleep: nostalgia pré-cozinhada]
Mas o kitsch só surge quando há um desfasamento entre a pretensão e a realização: a música de Richter só se torna ridícula quando extravasa a função de ser um discreto pano de fundo para filmes e séries de TV (no que é eficaz e adequada) e aspira a ser música autónoma e surgir no catálogo da respeitável Deutsche Grammophon ao lado da Missa em si menor de Bach ou dos últimos quartetos de Beethoven. É aí que a sua indigência se torna gritante.
Um par de Johann Sebastian Bach?
A música soporífera tem, supostamente, nobres antecedentes: Johann Nikolaus Forkel (1749-1818), o primeiro biógrafo de Johann Sebastian Bach, difundiu uma história que atribui a composição das Variações Goldberg a esse propósito.
[“Ária” das Variações Goldberg, por Andreas Staier, num magnífico registo para a Harmonia Mundi, num cravo de Anthony Sidney que replica um instrumento construído em Hamburgo em 1734 por Hass]
Conta Forkel que a obra foi encomendada pelo Conde Hermann Karl von Kaiserlingk, embaixador da Rússia na corte da Saxónia, que tinha ao seu serviço como cravista Johann Gottlieb Goldberg (1727-1756), um aluno de Bach: “O Conde era frequentemente atormentado por maleitas que o faziam passar noites em branco. Nessas ocasiões, Goldberg, que vivia em sua casa, passava as noites numa antecâmara [do quarto do conde], de forma a tocar para ele durante as insónias. Numa ocasião, o conde expressou, na presença de Bach, o desejo de possuir algumas peças para cravo, que fossem de natureza suave mas animada, de forma a alegrar as suas noites de insónia. Bach viria a corresponder ao anseio do conde através da sua ária com 30 variações, que logo caíram no agrado do conde, que passou a designar as peças como “as suas variações”. “Nunca se cansava delas. A partir de então, a perspectiva de uma longa noite sem sono levava ao pedido ‘Caro Goldberg, toque-me uma das minhas variações’. Bach nunca foi tão generosamente recompensado por uma obra: o conde presenteou-o com uma taça de ouro contendo 100 luíses de ouro”.
[Variação n.º25 das Variações Goldberg, por Andreas Staier]
É uma história pitoresca mas pouco verosímil. Para começar, Variações Goldberg é uma designação póstuma, já que o título atribuído à obra por Bach, quando da sua publicação em 1741, como IV parte do Clavier-Übung, foi “Exercício para teclado consistindo numa ária com diversas variações para cravo de dois manuais. Composta para os conhecedores, para a recriação do espírito”. A edição não faz menção nem a Goldberg nem ao Conde Kaiserlingk – seria inaudito que o nome do suposto dedicatário (para mais tão generoso) não figurasse na página de rosto. O detalhado inventário dos bens de Bach, realizado quando da sua morte, em 1750, não inclui o rico presente do conde. Por outro lado, embora Goldberg se tivesse tornado num exímio cravista, as Variações dificilmente estariam ao seu alcance em 1741, já que nessa data teria apenas 14 anos.
No livrete de Sleep, Richter menciona esta lenda sobre as Variações Goldberg: “É uma boa história, embora provavelmente seja apócrifa. Mas pouco me importa se é verdadeira ou não. O que me interessa é a escolha por Bach da forma variação: tomar diferentes caminhos através de uma paisagem conhecida. É algo que sempre fiz em toda a minha obra. Sempre estive interessado em variações”. É uma aproximação insidiosa e falaciosa: a variação era uma arte com uma longa tradição antes de Bach compor as Goldberg e continuou a ser explorada por uma infinidade de compositores entre Bach e Richter. Mas enquanto a maioria das variações costumam tomar por base uma melodia, as Goldberg têm a peculiaridade de serem variações sobre a progressão harmónica da linha de baixo, o que significa que só um ouvido bem treinado reconhecerá laços de família entre as 30 variações. Na verdade, Bach aplicou nas 30 variações uma tal arte e engenho que as transformou numa obra opulenta e caleidoscópica, um thesaurus da arte da variação, capaz de revelar surpresas e nuances mesmo após centenas de audições em estado de vigília.
Nada poderia estar mais distantes das indigentes ruminações de Richter, que repetem uma melodia breve e simplória, com variações mínimas nos arranjos, durante intermináveis minutos (e regressam nos CDs seguintes, como assombrações insistentes), quando não desce mesmo ao nível de sofisticação musical de um frigorífico a ronronar. Qualquer das variações de Bach, tem, nos seus dois minutos de duração, mais substância que as oito horas e meia de Sleep.
[Excertos das Variações Goldberg e comentários de Andreas Staier sobre a obra e a sua interpretação. Em caso de coma induzido por overdose de Sleep, o CD de Staier é um antídoto eficaz]
Um revolucionário de sofá-cama
Não contente em querer fazer-se passar por um herdeiro dos mestres do passado, Richter ambiciona também afirmar-se como uma voz do nosso tempo. No livrete lamenta o frenesim da vida moderna e afirma que Sleep é “um manifesto por um ritmo existencial mais lento” (a ser um manifesto, é o menos enérgico jamais escrito). E como hoje voltou a estar na moda que os artistas, por mais egocêntricos e acomodados que sejam, se apresentem como socialmente conscientes e profundamente empenhados em mudar o mundo (já nenhu artista que se preze arrisca fazer arte-pela-arte), Richter emite esta solene proclamação: “[Sleep] é, da minha parte, uma tomada de posição política claramente assumida”. Em tempos, os artistas “engagés” iam arriscar a pele como voluntários na Guerra Civil de Espanha, hoje enchem oito CDs com inanidades barbitúricas e imaginam-se heróis. Sleep irá trazer tanta mudança ao mundo como um novo canal de TV para cães.
Tim Cooper, nas notas do livrete proclama que “Sleep é uma obra revolucionária em todos os sentidos”. Dir-se-ia que Cooper esteve a dormir durante os últimos 60 anos. Já em 1963, Andy Warhol, pioneiro do conceptualismo oco e pedante, rodara Sleep, um filme de cinco horas e 20 minutos de duração que se resume a mostrar, praticamente em tempo real, o seu amigo John Giorno a dormir.
Em 1978, Brian Eno lançara Music for airports, 40 minutos de loops e borborigmos electrónicos que viria a converter-se no modelo para milhares de discos de música ambiental.
E já em 1982, Koyannisqatsi, realizado por Godffrey Reggio e com música de Philip Glass, contrastava – muito eficazmente – a aceleração frívola da vida moderna com a marcha solene e infinitesimal do tempo geológico.
[Koyannisqatsi, de Goddfrey Reggio]
Mesmo esquecendo a profunda indigência da obra e focando apenas o lado conceptual, não há nada de “revolucionário” no Sleep de Richter.
No entanto, na crítica a Sleep, a Pitchfork, sempre tão actualizada e que certamente não ignora as obras de Warhol, Eno e Reggio/Glass acima mencionadas, nem a copiosa produção de ambient music, drone music, kosmische musik, minimalismo, space music e similares, qualifica o ultra-conservador Richter de “audacioso”, embora, após várias considerações ziguezagueantes e contraditórias, conclua que “no seu melhor, Sleep soa como música New Age composta de forma rigorosa”, o que não bate certo com a classificação de 7 (em 10) que lhe atribui. É de recear que tão nebulosa crítica tenha sido redigida sob o efeito narcótico de Sleep.
[Na World Wide Web não é difícil encontrar parentes de “Sleep”, vocacionados para o combate à insónia, mas sem a pretensão, o discurso legitimador e o carimbo de aprovação das altas instâncias culturais]
Para que serve afinal Sleep?
Por outro lado, Richter também se contradiz quanto ao propósito de Sleep: afirma que a obra deve ser “ouvida” durante o sono – mas então quem muda os oito CDs enquanto ressonamos? Mais valeria disponibilizar a obra apenas como ficheiro digital, não? Os oito CDs são a prova de que Sleep se destina a ser escutada em estado de vigília – o que é confirmado por a caixa incluir ainda um disco Blu-ray Pure Audio com as oito horas e 24 minutos de Sleep em alta resolução (96 KHz, 24 bits), um requinte audiófilo que seria desperdiçado em dorminhocos (na verdade, mesmo estando bem desperto e possuindo ouvidos razoáveis e uma aparelhagem excepcional, é difícil detectar diferenças entre CD e Blu-ray Pure Audio, mas isso é outra história). Por outro lado, salvo provas científicas em contrário, para quem dorme, não faz diferença se a música de fundo é de Max Richter, Johannes Ockeghem ou Conchita Wurst (já Slayer ou Peter Brötzmann poderão causar um despertar sobressaltado), tal como será indiferente para o seu conhecimento do pensamento de Kant que alguém lhe leia em voz alta Crítica da razão pura ou um jornal desportivo.
Richter declara que o “projecto é também uma exploração pessoal sobre como a música interage com a consciência” e envereda por considerações vagas e enredadas cujo fito é conferir a Sleep a aura de projecto de investigação científica. De qualquer modo, embora Richter profira umas banalidades de mesa de café sobre as fronteiras entre sono e vigília e sobre a diferença entre ouvir e escutar, nunca concretiza como é que Sleep pode contribuir para ampliar o conhecimento sobre o funcionamento na mente. Não ajuda muito que, a fim de conferir credibilidade “científica” a Sleep, Richter tenha escolhido como “consultor” David Eagleman. Eagleman, com quem Richter já colaborara na ópera de câmara Sum, é um neurocientista de renome, graças aos seus populares artigos, livros de divulgação e conferências, mas não prima pelo talento nem pela perspicácia e o seu sofrível Incógnito: As vidas secretas do cérebro humano (Presença) vai ao ponto de debater um artigo de um colega, V.S. Ramachandran, intitulado “Why do gentlemen prefer blondes?”, sem perceber que se tratava de uma paródia ostensiva. Acaba, ironicamente, por adequar-se bem a Sleep: pseudo-música, disfarçada de pseudo-manifesto e embrulhada em pseudo-ciência.
Nada disto impede que Sleep e o seu rebento From Sleep sejam dois sucessos de vendas e crítica – é penoso ver a música, que deveria estimular-nos os sentidos e tornar-nos mais despertos, usada para fomentar o entorpecimento.
[Vivaldi de olhos bem abertos: III andamento de “O Verão”, de As quatro estações, por Fabio Biondi & Europa Galante]
O mar está flat
Estando a reputação do artista solidaemnte estabelecida e recebendo a aprovação do público e da crítica, não há motivo para não manter a linha de montagem em operação, pelo que no início de 2017 surgiu no mercado mais uma obra de Richter com o selo Deutsche Grammophon: Three worlds: Music from Woolf works reúne peças adaptadas do material composto para o bailado Woolf works, estreado pelo coreógrafo Wayne McGregor na Royal Opera House de Londres.
Os 110 minutos do bailado foram “comprimidos” em 66, divididos por três suítes – Mrs. Dalloway, Orlando e The waves – e muitas das peças são de curta duração, mas ainda assim é uma obra cujo poder narcoléptico não deveria excusá-la a obter a aprovação de comercialização pelo Infarmed.
[Max Richter sobre “In the garden”, de Mrs. Dalloway]
[“In the garden”]
Após Kafka e Murakami, é a vez de Virginia Woolf servir de muleta cultural para música que não se aguenta de pé sozinha. Pouco importa que a inspiração venha de Woolf ou de Jeffrey Archer, pois as fórmulas de Richter são confrangedoramente limitadas: em Mrs. Dalloway serve-nos música de câmara de tom nobre e elegíaco mas tão diluída que não tem sabor e que apenas teria aplicação como banda sonora para anúncios em prol de causas humanitárias. Para Orlando, Richter providenciou 11 peças curtas, que vão da cegarrega enervante à Nyman/Glass de “Transformation”, aos borbotos electrónicos de “Entropy” e “Morphology”, que soam como sobras de um álbum de kraut rock dos anos 70.
[“Transformation”, de Orlando]
Quanto a The waves, um efervescente romance polifónico, transbordante de vitalidade e de emoções em carne viva, é servido por “Tuesdays”, um ondulante bocejo de 21 minutos e 37 segundos, que atesta o dom de Richter para transformar em tédio tudo aquilo que toca. No mar da mente criativa de Richter o boletim para os surfistas é sempre o mesmo, seja qual for o dia do ano: mar flat.
[“Tuesday”, a “música” inspirada por The waves, abre com a declamação do bilhete de suicídio que Virginia Woolf deixou ao marido a 28 de Março de 1941: Após ouvir na íntegra estes 21’37 de vazio, é possível que mentes sugestionáveis possam sentir impulsos suicidas]
Abaixo dos mínimos
A Deutsche Grammophon tem também vindo a reeditar os discos que Richter publicou antes de ingressar na “marca amarela”: Infra, uma versão expandida dos 25 minutos de música que serviram de base a um bailado na Royal Opera House coreagrafado por Wayne McGregor, foi publicado originalmente em 2010 na FatCat Records. Já entrara em 2014 no catálogo Deutsche Grammophon, mas apenas em formato digital, e surge agora em formato de CD e vinil.
A obra foi inspirada pelos atentados bombistas de 2005 em Londres, mas quando se ouvem estas 14 peças breves sem se saber disso, seria legítimo pensar-se terem sido inspiradas pela oxidação de uma lata de refrigerante exposta aos elementos ou pelo acumular de cotão no umbigo: há crepitar de estática, borborigmos típicos das emissões de onda curta e os mesmos clichés de sempre, resgatados ao cesto dos papéis de Philip Glass e Michael Nyman, umas vezes em piano solo (“Journey 1”, “Infra 3”, “Infra 6”), outras por um quinteto de cordas (“Infra 2”, “Infra 4”), numa ocasião empregando sintetizadores que evocam Klaus Schulze (“Infra 7”). É tudo indigente e entorpecente, com excepção de “Infra 5”, que, por se desenvolver num glassiano e neurótico crescendo (que corre sem sair do mesmo lugar), é indigente e irritante.
[“Infra 5”]
Nenhum destas considerações impedirá os fãs que possuam já a edição de 2010 na FatCat de adquirir esta nova edição, pois inclui como faixa-bónus “Sub piano”, 50 segundos de piano solo, vagamente glassianos, irremediavelmente kitsch e absolutamente indistinguíveis do resto do disco e da restante produção de Richter.