[a fotografia de abertura deste artigo não ilustra o motorista de matérias perigosas mencionado neste texto]
Alfredo (nome fictício) usa uma “bengala” de alumínio (uma espécie de chave comprida) para abrir a pesada tampa de um dos tanques daquele posto de abastecimento. “Temos de abrir 20 a 30 tampas destas por dia. Cada uma tem à volta de 20 quilos. É normal que haja motoristas a ficar com problemas de costas”, relata ao Observador. O motorista pediu para não ser identificado, por medo de repercussões dentro da empresa em que trabalha.
O trabalho já lhe pesa no corpo. Ainda não chegou aos 50 anos, mas já diz que, “a este ritmo”, não chega aos 60. A “bengala” pagou-a ele — a empresa onde trabalha não disponibiliza nenhuma e nem todos os postos de abastecimento a fornecem. Aquela, por ser leve e longa, permite levantar as tampas sem que tenha de se dobrar.
Neste reservatório (um de sete: os outros são de gasóleo simples, gasóleo evologic, gasolina 95 e gasolina simples 95), há gasolina de 98 octanas. Para aferir a quantidade (ou melhor: “fazer uma sondagem”), Alfredo desenrosca a tampa de um tubo, do qual retira uma vareta com uma escala (quase como uma fita métrica) e observa até onde chega o combustível: 4.200 litros. Mas o motorista não trouxe este combustível no camião-cisterna. “Mesmo assim, antes de qualquer descarregamento, temos de fiscalizar cada tanque, para ver se tem água.”
Ainda que sindicatos e patrões não concordem sobre se constitui ou não uma obrigação para os motoristas, faz parte da atividade destes profissionais procederem às cargas e às descargas do combustível. Para aquela bomba, este motorista trouxe 33 mil litros. E já 10 horas e meia de trabalho.
Greve dos motoristas. Como o país se está a preparar para a falta de combustíveis
O despertador tocou à uma e meia da madrugada. E o pequeno-almoço só foi tomado 50 quilómetros depois, em Aveiras, onde está a Companhia Logística de Combustíveis (CLC) — na qual abastece o camião-cisterna.
Há “12 ou 13 anos”, já não se lembra bem, que esta é a vida de Alfredo: abastecer gasolina e gasóleo e distribuir pelas bombas de abastecimento. No início, o horário de trabalho raramente ultrapassava as 7 horas diárias, mas, desde então, as coisas mudaram. Com a chegada da transportadora Paulo Duarte, as empresas concorrentes tiveram de se adaptar — nomeadamente aos horários praticados pela empresa agora liderada por Gustavo Paulo Duarte. Hoje, um dia normal de trabalho para Alfredo chega às 12 horas. “A maior parte dos dias chego a casa sem paciência nenhuma. Durante a semana não tenho tempo estar com os meus filhos”, desabafa.
“A minha primeira ideia quando me filiei no sindicato foi a reforma”
Naquele posto de abastecimento, os papéis laranja em três mangueiras deixam o aviso: ao final da manhã desta quinta-feira, já quase não havia gasóleo. Na cisterna, Alfredo traz 16 mil litros daquele combustível, que terá de dividir por quatro compartimentos. Os de gasóleo simples são os mais desfalcados: num só há 4.700 litros, noutro 100 litros, que é quase o mesmo que dizer que já nada tem. “Estou aqui há uns anos. Nunca vi este posto tão cheio de gente.”
Durante a sondagem de cada tanque do posto de abastecimento, os motoristas são obrigados a fazerem acompanhar-se de um cone de estrada para, a par do fardamento refletor, sinalizar a sua presença. O que nem sempre resulta. Um carro, apercebendo-se de que naquela bomba não há gasóleo simples, faz marcha-atrás, obrigando Alfredo a desviar-se. “Qualquer dia ainda houve falar nas notícias de um chauffeur que ficou sem uma perna”, brinca.
Este profissional faz a operação de descarga quase automaticamente. E as contas de cabeça sobre como vai dividir o combustível por cada compartimento acontecem em segundos. Mas o trabalho está sujeito a erros. Não só por quem “já anda cá há anos”, mas também por quem começa agora a manusear matérias perigosas — como os militares da GNR e os agentes da PSP. “Por exemplo, estes tanques de gasóleo ainda estão ligados a um recuperador de gás. Se eu não abrir a tampa do recuperador de gás, pode haver um derrame. Sei isto porque já conheço esta bomba, que é diferente de outras. Um militar sem experiência se calhar não saberia como funciona”. A operação de descarga costuma demorar-lhe 1h30.
No dia em que o Observador acompanhou Alfredo, aquela era a terceira bomba a que se dirigia — entre cada viagem a um posto, há outra de abastecimento em Aveiras. E naquele dia houve atrasos no CLC. Por isso, a jornada só acabou depois das 16 horas. “Há dias em que faço 5 ou 6 postos de abastecimento. Posso ter de ir a várias bombas na região centro. Já são 9 horas de trabalho. Depois ainda vou reabastecer a Aveiras e descarregar algures em Lisboa.”
Foi a perspetiva de reforma que levou o motorista a sindicalizar-se e a juntar-se à ‘luta’ dos colegas.
“Nós acomodamo-nos ao que ganhamos, acomodamo-nos a não gastar mais do que aquilo que ganhamos. A minha primeira ideia quando me filiei no sindicato foi a reforma. Por um lado, a idade: daqui a 10 anos, eu não sei se ando com cabeça para isto. Eu chego a quarta ou quinta-feira e a nível psicológico, para mim já chega. Qualquer dia a idade da reforma chega aos 70 anos… Eu não vou lá chegar! [Uma das reivindicações dos motoristas de matérias perigosas é o reconhecimento da profissão de desgaste rápido] E tenho colegas que fazem 14 ou 15 horas todos os dias. Eu pergunto-lhes: ‘mas como é que vocês conseguem?’ Depois… se eu agora faço 12 ou 14 horas, não acha que merecia, em vez de levar 400 euros para casa de reforma, levar um pouco mais?”
O salário que Alfredo costuma auferir ao fim do mês fixa-se, em média, nos 1300 euros. Mas o base está nos 630. A este valor somam-se “umas cláusulas” — que o motorista tem dificuldade em enumerar (“Com o novo contrato coletivo, nem sei bem”) — e o horário suplementar, que é pago como ajuda de custo, logo, sem qualquer tributação, não contando para efeitos de reforma.
“Há dias em que não vejo os meus filhos”
Para este motorista de matérias perigosas há dois horários possíveis. Ora entra às 2 da madruga e, na melhor das hipóteses, sai às 14 horas, ou vice-versa. E são várias as vezes em que é requisitado para fazer trabalho suplementar ao fim-de-semana. Costuma aceitar, mas já teve de recusar. E pode vir a ter problemas? “Não sou obrigado a fazer mais horas se já tiver feito as 48”, responde, perentoriamente.
Conciliar o trabalho com a família não é fácil. E há dias em que estar com os filhos se torna mesmo impossível.
— Agora quando chegar a casa, o que vai fazer?
— Olhe, primeiro vou tomar um duche, depois almoçar. A seguir vou com a minha mulher ao café. Isso temos de ir sempre. Quando voltar a casa já são quase horas de jantar e de ir dormir. O problema é quando não consigo adormecer. Se não for eu a deitar-me e obrigar-me a dormir, não dá. E quando chegam as 22 horas e ainda não consegui pregar olho porque começo a pensar que tenho de me levantar à 1h30? É o pior.
— Tem dificuldade em descansar?
— Às vezes, nos dias em que devia descansar mais é quando menos descanso. Eu chego a casa aos sábados depois do trabalho e almoço. Num domingo de folga, às 2 horas da manhã ainda estou a pé, porque o meu corpo desabituou-se. O problema é que na segunda-feira tenho de mudar de turno. Parece que é uma prisão. O que vai salvando são os telemóveis… vamos falando uns com os outros.
— E hoje ainda vai conseguir estar com os seus filhos?
— Eles agora estão de férias. Se calhar ainda jogo um pouco de playstation com eles, por exemplo. Mas quando eles estão em aulas há dias em que não vejo os meus filhos. Se fizer o turno da manhã, quando saio eles ainda estão na escola, e quando chegam, depois das 19 horas, já eu devia estar a dormir para acordar à 1h30. Depois quando tenho turno da noite… entro às 14h e saio às 2h… claro que a essa hora já estão a dormir. Tenho pena de não poder almoçar e jantar todos os dias com eles. Por vezes chego às 17 horas a casa. A essa hora já eles comeram. Não os vou obrigar a esperarem por mim.
— E a sua mulher, que lhe costuma dizer?
— A minha mulher às vezes pergunta-me: ‘sabes a que horas chegas?’ Não dá para saber. ‘Ah é que precisava que fosses comigo a um sítio’. Mas não lhe consigo dizer com certezas. Há sempre alguma coisa a acontecer: se sobra produto aqui, tenho de ir a outro sítio, ou então há um pneu rebentado, ou o CLC fecha.
— Isso costuma acontecer?
— Às quintas há quase sempre alguma parte do dia em que acontece. Por avarias, presumo, não sei. Nunca nos dizem. Chegamos a estar 4 ou 5 horas à espera. Só que o serviço continua a ter de ser feito. E o chefe não vai querer saber se o motorista esperou 4 ou 5 horas para que o CLC abrisse.
“Quando o governo pensa que nos está a meter medo… é quando nos revoltamos mais”
Alfredo não acredita que a greve vá ser desconvocada. Nem mesmo no plenário deste sábado. “Fomos todos convocados, mesmo os que não estão filiados. Os motoristas estão muito descontentes.” E a declaração pelo Governo dos serviços mínimos (que o sindicato já apelidou de “máximos”) entre os 50% e os 100%, assim como a formação dada a agentes da PSP e militares para o transporte de matérias perigosas, só dão mais força à luta destes profissionais: “Quando o governo pensa que nos está a meter medo… é quando nos revoltamos mais”.
Pelas palavras de Alfredo, parece haver uma certa admiração face à figura de Pedro Pardal Henriques, o advogado contratado pelo Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas para os representar nas negociações. “Tenho plena confiança no Dr. Pedro Pardal Henriques. Ele já disse que vai ficar connosco até ao fim. Transmitiu-nos o que precisávamos para conseguir alguma coisa. Se nós não o ajudarmos também com a nossa confiança, ele sozinho não vai lá.”
E os portugueses percebem a vossa luta? “Acredito que não gostem. No outro dia fui tirar o cartão do cidadão. Fiquei lá 20 minutos sentado e não chamavam ninguém. Depois olhei para o lado e vi que estava um papel a dizer que os funcionários estavam de greve às segundas. Fiquei pior que danado. Por isso acredito que haja pessoas que não estejam de acordo: chegam ao posto e não há gasóleo”.
Durante anos, Alfredo não teve escalas — só saberia se estaria escalado, e onde, na noite da véspera. Mas desde há um par de semanas, em vésperas de nova paralisação dos motoristas, que passou a recebê-las. “Já sei que estou escalado para segunda [dia do início da paralisação]. Não sei é qual o horário.”
Segundo o motorista, há episódios de intimidação e “a pressão é enorme dos patrões sobre os motoristas”. Um colega costuma levar o camião para casa (“as pessoas ao ponto a que se sujeitam para não terem de gastar combustível nos carros delas”) e fez greve em abril. “O patrão disse-lhe: ‘então além de te deixar levar o camião para casa ainda fazes greve?’ Muitos motoristas não aderem à greve por intimidação”.
E conclui: “Se o sindicato não conseguir aquilo que pedimos, eu deixo esta profissão.”