Esta reportagem faz parte de uma série sobre Melilha. Clique nas imagens abaixo para ler os outros capítulos.
“Partículas pequeníssimas.” Quando um ser humano morre afogado, o corpo afunda-se. Depois, quando entra em decomposição, a atividade bacteriana liberta gases. Se for em quantidades suficientes e dependendo da temperatura da água, o corpo pode voltar à superfície e ficar a boiar. Demora, no mínimo, 30 dias até o corpo ficar só esqueleto. Músculos e órgãos tornam-se matéria orgânica, do tamanho de “partículas pequeníssimas.”
Pensa-se que cerca de 2.500 imigrantes terão morrido afogados este ano ao tentar entrar na Europa pelo mar Mediterrâneo. Nos primeiros nove meses de 2014 atravessaram 160 mil, sendo que 90.000 foram resgatados no meio do mar. Entre 2006 e 2014 cerca de 34.000 imigrantes entraram na Europa através de Marrocos, um país que tem dois atrativos especiais: as cidades espanholas autónomas de Melilha e Ceuta. Basta saltar a cerca para pisar território europeu.
Jean Ethaboen segura com as duas mãos, em esforço, um copo de chá, feito de uma metade de uma garrafa de plástico cortada ao meio. Tem auréolas negras em volta dos olhos, as mãos envolvidas em ligas, que tentam estancar os cortes causados pelo arame farpado. É provável que tenha alguma hemorragia interna, devido “ao espancamento da polícia marroquina”, que apanhou na manhã daquele dia.
Jean já tentou escalar cinco vezes as grades que dividem Marrocos e a cidade autónoma de Melilha, território espanhol em África. Falhou sempre.
São sete da tarde, começa a escurecer. Daquele acampamento de imigrantes no monte Gurugu, localizado nos arredores da cidade de Nador, Marrocos, dá para ver o Mediterrâneo e as vedações que circunscrevem Melilha. “Vão continuar a aparecer corpos a boiar no mediterrâneo, enquanto a Europa não ganhar consciência”, diz, do nada, ao olhar para o mar.
Senta-se numa rocha e fica a olhar para o cenário, a miragem que o fez partir do Mali, há 4 anos.
Pousa o copo de chá no chão e leva as mãos à cabeça. Com as unhas, começa a arranhar a face, como se estivesse a tentar arrancar alguma coisa de dentro dele. “Já não me lembro o que me levou a sair da minha casa e pensar que a minha vida ia ser melhor na Europa”, diz, rangendo os dentes. “Sonho… o que é um sonho?”, acrescenta.
Jean tenta arrancar da cabeça o seu próprio sonho, numa procura de lucidez, mas não consegue. A Europa está “demasiado” perto. O imigrante do Mali pede para ficar sozinho. “Preciso de pensar”, diz.
Mais ao fundo, no acampamento, estão deitadas no chão 12 pessoas feridas, a precisar de tratamento médico. Cuidados que só vão chegar na manhã seguinte.
Os que sobem ao Gurugu
O jesuíta espanhol Esteban Velasquez, 66 anos, Coordenador da Delegação de Migrações do Arcebispado de Tanger e Nador, parece estar sempre ocupado. Anda de um lado para o outro e o telemóvel não para de tocar. A culpa é da equipa ser pequena: “Somos só oito”, justifica. Esteban chegou há poucos dias de uma reunião do Serviço Jesuíta para os Refugiados em Bucareste, na Roménia, por isso tem “muito trabalho em atraso.”
Desde o dia 12 de Fevereiro de 2013, a Delegação de Migrações é a instituição responsável pelos cuidados médicos e auxílio aos imigrantes que vivem no Gurugu, depois de os Médicos Sem Fronteiras terem deixado o país, para trabalhar onde a sua “intervenção era mais necessária”. “Foram para a República Centro Africana, por exemplo, que está a viver um conflito. O trabalho aqui, nas montanhas, é mais de acompanhamento”, diz Esteban, que recebe o Observador, num pequeno escritório colado à única igreja de Nador.
No escritório da paróquia, há um poster do governo suíço, principal financiador da delegação. E um mapa do continente africano, com o título de “Mundo Negro.” Com óculos ao peito, calças de ganga com manchas de lixívia e uma camisa axadrezada, a forma como Esteban se veste coincide com o seu discurso: sempre focado no outro, sem pudores.
“Tudo fica muito mais tenso, quando há uma tentativa de passar a vala, durante a madrugada”, diz. Nesses dias, apetece-lhe “fechar os olhos”. São grupos de 20 ou 30 pessoas “destroçadas”, deitadas no chão. “Cheios de sangue e descalços.” Até ao início deste ano, a polícia espanhola estava autorizada a utilizar balas de plástico nos imigrantes que ficassem pendurados nas vedações. “Perderam-se olhos”, diz, num tom tão tranquilo que torna as palavras arrepiantes. Mais tarde, quando explica que nos anos 1980 esteve na guerra de El Salvador, dos quais quatro anos a acompanhar a guerrilha, a serenidade ganha uma explicação: experiência. “Se olhar para trás, posso dizer como escreveu o Pablo Neruda: Confesso ter vivido”, diz.
Subir todas as manhãs ao Gurugu “é uma arte”. Às vezes a polícia vê, outras vezes faz que não vê. “Não gostam que vamos lá levar coisas”, explica. “Nem gosto de fazer reuniões aqui [igreja em Nador], porque tenho sempre um polícia a vigiar lá fora”, acrescenta. Como é uma figura relativamente conhecida na região por ajudar os imigrantes no monte, a polícia marroquina têm-no sob vigia.
“Com a construção a vedação marroquina, muitos começaram a partir para a Líbia, para tentarem passar de barco. Outros foram para Tanger”, conta. Mas isto só se aplica aos que têm dinheiro. Esteban é uma testemunha privilegiada do desespero dos imigrantes que procuram a Europa. Para o jesuíta, eles têm um refúgio que não os dececiona nunca. “São muito religiosos. Muitos vêm o salto com uma última oportunidade. Sabem que é difícil, mas pensam: ‘Deus pode tudo’.”
Os macacos foram comidos
Encontrar os acampamentos no monte Gurugu não é fácil. De Nador, não dá para os distinguir na paisagem. Porém, existem muitos ativistas locais que estão acostumados a levar jornalistas lá. Miguel – nome pelo qual pediu para ser identificado, por causa da polícia marroquina – conta que a maioria dos acampamentos está situada nas proximidades da “ruta dos monos” (caminho dos macacos, em português), um trilho de terra batida que serpenteia o monte, só conhecido pelos locais. “Antes havia aqui muitos macacos, daí o nome. Mas, agora, são difíceis de encontrar. Os imigrantes comeram quase todos”, explica, enquanto conduz.
A meio do monte está montado um acampamento da polícia militar marroquina, que toma nota da matrícula de todos os carros que sobem, conta Miguel. Estão ali destacados para evitar que mais imigrantes ilegais desçam ou circulem livremente. Tentam estancá-los no monte, impedindo o que chamam de “avalanches humanas”. Os primeiros sinais que nos estamos a aproximar dos acampamentos são as árvores derrubadas. “Usam a madeira para fazer lume ou construir abrigos”, conta Miguel. Pouco mais à frente, aparece a estrutura de uma tenda feita de madeira.
Ouve-se um assobio. “Já nos viram”, diz Miguel. Passados segundos, aparece Serge Ibake, 28 anos, à nossa frente. “Chegaram quase na hora da oração”, diz, ao cumprimentar o ativista local. E pede para não tirar fotografias, para “não denunciar a localização do acampamento.” (A foto que aparece de capa na reportagem é uma imagem de arquivo de um imigrante que passou pela mesma situação de Jean.) Ao subir a clareira, aparece uma série de tapetes estendidos virados para Meca. Parece um retiro espiritual ao ar livre: cristãos e muçulmanos partilham o momento de oração, cada um professando a sua fé.
Quando acaba o momento, o congolês regressa com um sorriso. “Está quase. Estou quase a chegar à Europa. Já a consigo ver. Amanhã vai ser um bom dia”, diz, a apontar para Melilha.
Serge Ibake demorou quase três anos a chegar a Nador. No início, “tinha algum dinheiro”, por isso tentou entrar na Europa pela Líbia, pagando por um lugar num barco que ia atravessar o Mediterrâneo. Pagou 3000 euros, mas a viagem nunca aconteceu. “Ainda bem, acho agora. Podia ter morrido afogado”, confessa. Ele e outros imigrantes foram abandonados no meio do deserto. Os que chegaram com dinheiro a Melilha, tentaram entrar de “outras formas”, conta.
Para os que têm dinheiro
Ouve-se música clássica, na fronteira de Beni Ansar, entre Melilha e Marrocos. É um concerto de Beethoven. “Chegam aqui muitas pessoas alteradas, por isso gosto de ouvir música clássica para relaxar”, explica um funcionário da secretaria, quando entrega os papéis de autorização para fotografar no local. Melilha tem uma população de 80.000 pessoas, segundo censos de 2012. Nesta fronteira, passam em média 14 mil pessoas, por dia. Quando os imigrantes ainda têm algum dinheiro, é possível encontrar quem os queira “traficar” para Melilha, escondidos nos seus carros.
Pepe é um guarda fronteiriço que inspeciona os veículos na fronteira de Beni Andar, com 16 anos de experiência. A imagem bonacheirona, um chapéu que não lhe cabe bem na cabeça, engana. A argúcia é a sua principal característica.
Um veículo pára e Pepe mostra ao Observador como trabalha.
Toca no carro, como um médico faz palpação no estômago de um paciente, para ver se está tudo bem. Circula à sua volta. Está a diagnosticar. Com o pé toca, ao de leve, na parte de baixo do carro, de forma a sentir se está ali alguém escondido. Nem precisa de se baixar.
Olha para o tabliê, abre o capô e verifica os para-choques. Se existe alguma coisa que esta profissão lhe ensinou é que “a criatividade não tem limites”, conta. Muitos dos carros que atravessam a fronteira trazem a suspensão alta das rodas traseiras, para quando regressarem a Marrocos consigam transportar tudo que querem no regresso, explica, o que não quer dizer que transportem imigrantes.
De todas as apreensões que já fez, destaca duas: “Uma vez encontrei blocos de haxixe enfiados em laranjas”, revela, a rir-se da memória do dia. “Fiquei de boca aberta”, diz, reproduzindo a expressão facial. Já as técnicas que são utilizadas para transportar imigrantes ilegais para território espanhol são mais imaginativas. “Esvaziaram os assentos dos carros, tiraram-lhes a espuma, e encheram com o corpo de uma imigrante”, relembra.
Entretanto, aparece outro guarda fronteiriço que quer mostrar uma ferramenta utilizada para controlar o tráfico de seres humanos para Melilha. “Uma espécie de estetoscópio que se liga aos carros para detetar batimentos cardíacos”, diz Pablo.
Para demonstrar a eficiência do “estetoscópio mecânico”, Pablo pede a um condutor marroquino ao acaso que entre no carro. “Desde que tenham coração, isto vai detetar. Apesar de parecer que alguns não têm”, diz. O condutor fica assustado pela ordem do polícia, com uma expressão aturdida, sem perceber o que se estava a passar. Já lhe tinham “diagnosticado” o carro e estava tudo bem.
“Isto é fantástico. Nunca falha”, diz Pablo. Depois de a máquina ter feito a leitura três vezes e o resultado ter aparecido correto sempre, manda partir o homem marroquino que nunca chegou a perceber o que realmente se passou.
À espera de uma mensagem
Seis imigrantes estão reunidos em volta de uma fogueira. Aquecem as mãos e preparam um pote de chá para a noite, um ritual que se repete todos os dias. Para dois litros de água, estão a dissolver quase meio quilo de açúcar. Devido à quantidade, demora algum tempo a que os grãos desapareçam. Diabetes é uma piada, quando a fome ataca. Para muitos, aquela é a única refeição do dia.
Veem-se tendas improvisadas, espalhadas ao acaso: iglôs feitos de hastes de madeira e cobertas de plástico. Contudo, é um luxo de poucos. A maioria dorme a céu aberto, embrulhados em cobertores oferecidos por alguns voluntários que, por vezes, visitam as montanhas. Todo o acampamento está montado numa área de árvores com copa larga, “para não ser visto ao longe”, conta Mohamed Aziz, 21 anos, senegalês.
“Não sei como, mas a polícia acaba sempre por encontrar os nossos acampamentos. Durante a noite, aparecem e batem-nos. Querem expulsar-nos daqui”, diz, lembrando que estes raides policiais são uma prática corrente. A violência é denominador comum na montanha. Entre imigrantes. Entre imigrantes e marroquinos. Entre imigrantes e a polícia marroquina. Faltando-lhe palavras para o que queria explicar, Mohamed toca ao de leve no braço com um dedo para explicar que “está tudo à flor da pele.” “Na superfície”, diz. A ansiedade de partir deixa-os transtornados.
Aboubacar, 19 anos, faz alongamentos, deitado em cima de um cobertor. Tem o corpo musculado, veste um fato de treino da marca Adidas. Na Libéria, sonhava ser jogador de futebol, mas “não existiam oportunidades”. “Era um inútil, dizia-me a minha mãe. Por isso é que parti: para mostrar-lhe que ela estava errada”, diz a rir, como se fosse ele quem estivesse a ganhar o conflito familiar.
Puxa as mangas para cima e mostra as cicatrizes que tem nos braços. “Se isto fosse nas pernas, estava preocupado. Mas Deus poupou-as, da primeira vez que tentei saltar para Melilha, há três meses. Alá é grande, tive sorte”, explica. Um amigo com quem Aboubacar tinha feito a viagem desde a Libéria não teve tanta sorte. “Caiu, foi apanhado pela polícia marroquina e nunca mais o vi”, diz, ao mesmo tempo que olha em todas as direções do acampamento, sem fixar os olhos em ponto nenhum. E acrescenta: “Já passaram três meses desde que o Inza desapareceu.”
O ano de 2014 contém já um recorde no que respeita à entrada de imigrantes ilegais em Melilla. Foram registadas mais de 4.000 entradas, mais do dobro do ano anterior. A urgência de saltar para Melilha está a aumentar. Após uma série de queixas da União Europeia sobre a complacência de Marrocos no que toca à situação dos imigrantes ilegais, o governo marroquino decidiu intervir. Está a construir uma vedação com quatro metros de altura, coberta inteiramente de arame farpado. “Estão a correr mais cortinas”, diz.
O acampamento está num rebuliço. Ouvem-se discussões. Algo está para acontecer.
“Ainda não recebi mensagem, se vai haver salto amanhã”, confessa, enquanto faz um abdominal. Não pode perder tempo, tem de treinar o corpo para o salto, mesmo enquanto fala com o jornalista. É um soldado a preparar-se para a “guerra”. “Sim, guerra. Esta situação faz-me lembrar como as guerrilhas controlavam alguns pontos do meu país e só deixavam passar quem queriam ou quem pagava suborno. Ao que parece, a Europa não é assim tão diferente”, diz, em tom de gozo.
Fica a sobrar uma hipótese: o mar. Aboubacar arregala muito os olhos e diz: “Mediterrâneo é morte certa.”
Dias antes, em Málaga…
A distância é uma forma de cegueira.
Um jipe da guarda civil espanhola percorre a marina de Málaga, num percurso circular. É domingo, corre uma brisa suave. Várias bancas de comércio local com doçaria ou parafernália turística estão cobertas por um toldo branco. Os postes pulverizam água para baixar a temperatura. As colunas tocam a música “Shinny happy people” dos REM.
As esplanadas estão cheias de turistas que bebem sangria e comem paelha, que custa o mesmo que um “suborno de permanência” nas montanhas de Nador. A arquitetura da Marina é contemporânea. As palmeiras estão infestadas de canários.
Muitos dos locais vestem equipamentos desportivos, porque durante a manhã a estrada que passa no Passeo del Parque, uma das principais artérias da cidade, esteve com o trânsito cortado para servir de pista para uma maratona. As crianças brincam: oscilam nos baloiços. Esqueçamos os “zodiacs”, pequenas embarcações usadas pela máfia na passagem de imigrantes. Ter um barco deste lado do Mediterrâneo é uma questão de estilo de vida, não sobrevivência.
O edifício da Cruz Vermelha, localizado mesmo ao lado da marina, está abandonado. Espreitando para dentro, através dos vidros cobertos de pó, vêem-se papéis soltos e lixo espalhado. Ao que parece, aquele espaço é utilizado só como parque de estacionamento.
Duas jovens fazem uma sessão fotográfica improvisada com o mar a servir de fundo. Provavelmente, aquelas fotos vão parar a alguma rede social. O cenário é pintado pelo mesmo mar que se vê do cimo do monte Gurugu.
Riccardo Mancini, 27 anos, um turista de Roma, Itália, está debruçado a olhar para a água um pouco esverdeada da marina de Málaga. Veste uma t-shirt com a bandeira do seu país, calções verdes.
O que é que ele vê no Mediterrâneo?
“Olhar para o mediterrâneo é demasiado, para mim”, responde, a rir-se. “Estava mais a tentar perceber o que é que os peixes, que estão aqui encostados, comem. Só vejo umas partículas pequeníssimas.”