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A relação com o Presidente Soares, no final de mandato como primeiro-ministro, é o foco principal do artigo
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A relação com o Presidente Soares, no final de mandato como primeiro-ministro, é o foco principal do artigo

A relação com o Presidente Soares, no final de mandato como primeiro-ministro, é o foco principal do artigo

Memórias de um Governo “Cansado” e “Arrogante” (Parte II)

Cavaco Silva relembra, nesta segunda parte do artigo sobre os últimos anos do seu governo, de como o Presidente Mário Soares lhe fez oposição. Mas há uma frase famosa que gostaria de não lhe ter dito.

Na Parte I deste artigo, que publiquei na semana passada, demonstrei que a afirmação de afamados analistas e cronistas políticos da nossa praça de que, nos últimos dois anos da minha década como primeiro-ministro (1985-1995), o governo estava cansado, tinha sido por muitos erradamente interpretada.

Sou levado a crer que o mesmo aconteceu com a afirmação de que o governo fora arrogante, o que muitos interpretaram em sentido pejorativo, ao contrário do que era certamente a intenção dos afamados analistas. Em minha opinião, com a expressão “governo arrogante”, queriam certamente significar, tal como consta do Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências, que o executivo revelara orgulho, não só pela obra realizada, mas também pela inteligência que demonstrara na resposta aos ataques políticos da oposição.

Nos meus últimos anos como primeiro-ministro, o governo enfrentou uma oposição bastante aguerrida por parte do PS, liderado por António Guterres, que, com algumas exceções, se situou dentro das regras do combate político em democracia.

Anormal nesse período foi a ação do Presidente da República, Mário Soares, certamente incomodado com a dimensão da obra realizada pelo governo. Abandonou explicitamente a posição de isenção e independência em relação às forças político-partidárias e passou a ser parte ativa do jogo político, assumindo mesmo uma atitude destacada no ataque ao governo.

Anormal nesse período foi a ação do Presidente da República, Mário Soares, certamente incomodado com a dimensão da obra realizada pelo governo. Abandonou explicitamente a posição de isenção e independência em relação às forças político-partidárias e passou a ser parte ativa do jogo político, assumindo mesmo uma atitude destacada no ataque ao governo, como foi reconhecido por toda a comunicação social. Já em fevereiro de 1993, o semanário Expresso escrevera que o Presidente tinha a “aparente obsessão de dizer preto quando o executivo diz branco”.

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Mário Soares violou abertamente regras básicas de atuação de um Presidente constantes do parecer “Os poderes do Presidente da República”, por ele próprio encomendado aos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, como: “Não fazer parte da dialética maioria/oposição (…); não ser líder da oposição nem mover contra o governo uma guerrilha institucional (…); e o dever de manter sempre um distanciamento em relação à lógica político-partidária”.

Face a esta anormalidade, o governo e o PSD foram forçados a encarar o Presidente como um adversário político e uma “força de bloqueio”.

No entanto, sempre entendi que as divergências políticas não deviam pôr em causa o respeito devido ao Presidente Mário Soares, um político a quem o país muito devia na defesa do pluralismo democrático e da adesão de Portugal às Comunidades Europeias e cuja reeleição, em 1991, tinha sido, por minha proposta, apoiada pelo PSD. As minhas relações pessoais com o Presidente foram sempre cordiais e de respeito mútuo. De acordo com os critérios de avaliação predominantes no país, Mário Soares era de facto um grande político.

Para mim, era claro que a oposição explícita do Presidente afetaria negativamente a popularidade do governo. Neste contexto, competindo-me como primeiro-ministro dirigir o funcionamento do governo e a sua política, coordenar e orientar a ação dos ministros e manter a coesão da equipa governamental, defini uma estratégia assente em dois pilares fundamentais.

Em primeiro lugar, o governo continuaria a executar o seu programa e a tomar as medidas estruturais necessárias ao progresso do país nas suas diferentes dimensões e ignorava as críticas do Presidente. Com Sá Carneiro, eu tinha aprendido que primeiro-ministro que se deixe guiar pela popularidade não resolve os problemas do país.

Em segundo lugar, a resposta a Mário Soares, na sua qualidade de adversário político, ficava a cargo do PSD e do seu grupo parlamentar.

O desenvolvimento desta estratégia resultou bastante bem, como ficou demonstrado na Parte I deste artigo, publicado na semana passada. Os afamados analistas e cronistas políticos têm, assim, razão para afirmar que o governo revelou arrogância, ou melhor dizendo, orgulho pela forma como conduziu os destinos do país nos últimos dois anos do seu mandato.

O desígnio que me movia, desde a tomada de posse como primeiro-ministro, era o da transformação e modernização do país, de modo a prepará-lo para um futuro de desenvolvimento económico, social e cultural e de aproximação aos países mais avançados da União Europeia. Ganhar eleições podia ser uma consequência da política do governo, mas não necessariamente. O desenvolvimento do país exigia a tomada de medidas impopulares e a elas não devia fugir.

A intenção do Presidente de obstar politicamente a ação do Governo ficou patente na pouca consistência da justificação de alguns dos usos dos poderes que a Constituição lhe confere: o direito de veto e de pedido de verificação da constitucionalidade de diplomas do governo. Em 19 de dezembro de 1994, o Diário de Notícias escreveu: “Os vetos são mais uma peça entre muitas outras que Soares vai montar, sempre nos bastidores, até ao final do seu mandato, para desgastar a imagem do governo”.

Interrompi as férias, convoquei uma reunião do Conselho de Ministros e o governo para ultrapassar o obstáculo criado pelo veto do Presidente. Foi solicitada uma reunião extraordinária da Assembleia da República, interrompendo as férias dos deputados, que teve lugar em 18 de Agosto, para debater e aprovar uma proposta de lei sobre o asilo. Na reunião com o Presidente, que se seguiu a esta vitória do governo, fiz o possível para não me apresentar com um ar arrogante.

Em relação aos decretos submetidos a promulgação pelo Presidente, o governo procurou ultrapassar os argumentos aduzidos para o exercício do veto através de esclarecimentos enviados à Presidência da República. Em caso de insucesso, e vetando o Presidente um diploma considerado importante para a realização do programa do governo, o mesmo era transformado em proposta de lei à Assembleia da República e, aí, era feito uso do poder da maioria parlamentar do PSD para aprová-lo. No debate que tinha lugar, o governo era acusado de afrontar o Presidente, mas pior do que esse ónus seria o executivo acomodar-se e não aprovar as medidas indispensáveis à construção de um Portugal moderno e desenvolvido.

Um dos casos mais falados foi o veto, em agosto de 1993, da autorização legislativa sobre o direito de asilo conferida ao governo pela Assembleia da República, a qual era indispensável para impedir que entrassem no país milhares de falsos exilados políticos, tal como estava a ser feito por vários países da Comunidade Europeia. Como a situação requeria medidas urgentes, interrompi as férias, convoquei uma reunião do Conselho de Ministros e o governo, para ultrapassar o obstáculo criado pelo veto do Presidente. Foi solicitada uma reunião extraordinária da Assembleia da República, interrompendo as férias dos deputados, que teve lugar em 18 de Agosto, para debater e aprovar uma proposta de lei sobre o asilo. Na reunião com o Presidente, que se seguiu a esta vitória do governo, fiz o possível para não me apresentar com um ar arrogante.

Relativamente aos recursos do Presidente da República ao Tribunal Constitucional para travar a ação do governo, em agosto de 1993 o Tribunal não deu acolhimento ao seu pedido de inconstitucionalidade de um diploma visando a erradicação das barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto e a construção de habitações económicas. O mesmo tinha acontecido antes com as leis de atualização das propinas do ensino superior, de alteração da lei da greve, da mobilidade dos funcionários públicos e da transformação da Radiofusão Portuguesa em sociedade anónima, assim como dos diplomas de extinção da empresa do Teatro Nacional de São Carlos e da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros.

Os analistas políticos de então acabaram por reconhecer que, através do poder de veto e de envio de diplomas para o Tribunal Constitucional, foram poucas as medidas relevantes para o progresso do país cuja concretização foi impedida pela oposição política do Presidente, o que deixou nos membros do governo um forte sentimento de orgulho, que pode ter sido confundido com arrogância.

Na Presidência da República, havia uma estratégia de desgaste do governo cuidadosamente delineada, que as manifestações de grupos descontentes eram estimuladas e se lhes assegurava boa cobertura mediática. (...) De referir também a conivência que a Presidência da República desenvolveu com um semanário – que acabou por falir – especializado em campanhas de mentiras e cabalas políticas, como foi mais tarde reconhecido por um dos seus diretores.

Em dezembro de 1993, quando faltavam menos de 23 meses para o fim do meu mandato como primeiro-ministro, decidi proceder a uma remodelação ministerial, envolvendo a substituição de quatro ministros. Foi uma remodelação da qual hoje, olhando ao ainda governo do país de maioria absoluta, que primou pelo seu próprio desmoronamento, sinto uma certa arrogância, ou melhor dizendo, orgulho.

Personalidades independentes partidariamente, consideradas de excelência nas suas áreas, aceitaram os meus convites para ministro das Finanças e para ministro da Saúde (Eduardo Almeida Catroga e Adalberto Paulo Mendo). Por outro lado, a comunicação social e o país político foram apanhados de surpresa, tal como tinha acontecido em 2 de janeiro de 1990, quando anunciei uma remodelação de cinco ministros. Como tive ocasião de escrever em 2023, só um primeiro-ministro a quem seja reconhecida autoridade e credibilidade consegue assegurar estas condições.

Mário Soares muito se esforçou para desgastar a imagem do governo através do seu comportamento e atitudes, como a comunicação social bem o ilustra.

Recordo três casos, de que já dei conta na minha Autobiografia Política II, que levaram o PSD a concluir que o Presidente Mário Soares era o verdadeiro chefe da oposição e a responder-lhe com veemência, enquanto eu, como primeiro-ministro, ignorava, perante a comunicação social, as dificuldades por ele criadas ao governo.

As presidências abertas do Presidente pelo país para criticar o governo, foram, em 2000, objeto de um terrível libelo acusatório por parte da sua própria assessora de imprensa, Estrela Serrano, ao afirmar explicitamente que, na Presidência da República, havia uma estratégia de desgaste do governo cuidadosamente delineada, que as manifestações de grupos descontentes eram estimuladas e se lhes assegurava boa cobertura mediática, e ao explicar como os jornalistas eram manipulados pelo Presidente.

De referir também a conivência que a Presidência da República desenvolveu com um semanário – que acabou por falir – especializado em campanhas de mentiras e cabalas políticas, como foi mais tarde reconhecido por um dos seus diretores. Produziram algumas cócegas e incómodos em membros do governo, mas não perturbaram aquilo que verdadeiramente nos movia: a execução do programa reformista de transformação da sociedade portuguesa e desenvolvimento do país. Pessoalmente, nunca tive apetência nem jeito para a arte de sedução dos jornalistas.

No dia e hora a que o Presidente da República fazia o discurso de abertura, criticando fortemente o governo, estava eu com a minha mulher e o governador civil de Beja em Mértola, sentados descontraidamente na esplanada de um café, saboreando caracóis cozidos e bebendo uma cerveja, depois de ter visitado o Pulo do Lobo, no rio Guadiana.

Um segundo caso diz respeito às notícias que, no verão de 1993, surgiram na comunicação social de que Mário Soares, num jantar com amigos no restaurante Avis, discutira a hipótese de demitir o governo, dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas.

Eu estava certo de que tal não iria acontecer e afirmei a um semanário: “A hipótese de dissolução do Parlamento é de tal forma absurda que tenho o direito de não lhe dedicar qualquer atenção. Portugal tem um governo de maioria. Os nossos parceiros da Europa comunitária, se nos ouvissem falar disso, pensariam que não estávamos bons da cabeça”. Sabia, no entanto, que o objetivo do Presidente era criar um clima de instabilidade política.

A Presidência da República foi alimentando a notícia da possibilidade de dissolução até às eleições autárquicas de dezembro de 1993, na convicção de uma hecatombe eleitoral do PSD que, para sua grande desilusão, não aconteceu, contrariamente ao que também tem sido afirmado por alguns dos afamados analistas e cronistas políticos.

Em 20 de dezembro, o semanário Expresso escreveu em editorial: “Soares pode alimentar a ideia de que dissolverá o Parlamento – mas não pode, na prática, concretizar essa intenção. A ideia da dissolução serve ao Presidente porque, enquanto se pensar que isso pode acontecer, ele estará no centro das atenções e será o fiel da balança do poder político; pelo contrário, a partir do momento em que se perceber que Mário Soares não tem condições para dissolver a Assembleia passará a ser visto como o detentor de um poder formal, passando Cavaco Silva para primeiro plano”.

A seguir às eleições autárquicas, um jornalista do Expresso escreveu: “Soares não voltará a discutir a dissolução do Parlamento, sequer como hipótese, nos próximos jantares com os seus amigos políticos. Se o fizer e houver notícia, o Presidente da República corre o risco de manchar, por força de uma excessiva fixação anticavaquista, a fase terminal do seu mandato. Só um resultado desastroso para o PSD nas autárquicas – menos câmaras e muito menos votos do que os que obteve nas eleições de 1989, a par de um crescimento avassalador do PS – permitiria alimentar o rastilho da dissolução, ateado no famoso jantar do Avis e mantido em fogo lento por opção deliberada do Presidente da República. Contados os votos, nenhuma das premissas esperadas se verifica, pelo que o tema saiu da agenda política logo na noite de domingo. Ficou assim desativada a bomba atómica, segundo expressão do próprio Mário Soares – o único poder efetivo de que dispunha para cortar o passo a Cavaco Silva. Por isso, o Presidente da República perdeu as eleições autárquicas, apesar de não ter sido candidato.”

Um terceiro caso, que deve ser lembrado, é o do congresso “Portugal: que futuro?”, organizado em maio de 1994 pelos “homens do Presidente”, com o patrocínio de Mário Soares, com o objetivo primordial de atacar o governo, como foi reconhecido por toda a comunicação social. No dia e hora a que o Presidente da República fazia o discurso de abertura, criticando fortemente o governo, estava eu com a minha mulher e o governador civil de Beja em Mértola, sentados descontraidamente na esplanada de um café, saboreando caracóis cozidos e bebendo uma cerveja, depois de ter visitado o Pulo do Lobo, no rio Guadiana.

No dia seguinte, fui ao Centro Cultural de Belém onde tinha um batalhão de jornalistas à minha espera para que comentasse o discurso de Mário Soares. Fiz um ar inocente, certamente arrogante, e disse-lhes, para seu espanto, que desconhecia o teor do discurso porque tinha estado no Pulo do Lobo e expliquei-lhes que era uma garganta profunda e estreita cavada na rocha do leito do rio por onde as águas se precipitavam em ruidoso turbilhão.

Este congresso, pela polémica que gerou, acabou por ser politicamente benéfico para o governo, tendo irritado profundamente o PS e o seu líder António Guterres, que se via substituído por Mário Soares como líder da oposição. Um destacado dirigente do partido escreveu no jornal Público, em 17 de maio, um artigo sobre o referido congresso em que fez críticas contundentes ao Presidente, acusando-o mesmo de se imiscuir na vida do PS, com o propósito de ajustar contas comigo.

No Conselho de Ministros seguinte, os membros do governo apresentaram-se com um ar verdadeiramente divertido.

Contrariamente ao que tem sido afirmado por afamados analistas e comentadores políticos, o PSD não foi derrotado nas eleições de deputados ao Parlamento Europeu de junho de 1994. Depois de quase nove anos consecutivos de Governo, obteve apenas menos 48 décimas do que o PS e aumentou mesmo a percentagem em relação à eleição de 1989, o que criou uma frustração indisfarçável nas forças da oposição ao governo.

Nas minhas reuniões com Mário Soares, em que este assunto foi discutido, adotei, desconversando, uma estratégia que o aborreceu. (...) Recusei-me sempre a fazer comentários públicos sobre as críticas do Presidente ao governo sobre as tentativas de bloqueio da ponte, por mais violentas e absurdas que fossem, enquanto as estruturas do PSD o acusavam de constituir-se parte do jogo político. A Comissão Política do PSD emitiu mesmo um comunicado em que rompeu com Mário Soares, considerando que a sua falta de isenção tinha ultrapassado tudo o que se podia tolerar.

As eleições para o Parlamento Europeu implicaram a substituição do Ministro da Agricultura. Apesar de faltarem apenas 17 meses para completar o meu mandato como primeiro-ministro, o engenheiro António Duarte Silva, uma personalidade independente de grande valor, aceitou o meu convite para ocupar o lugar.

Em setembro de 1994, o Presidente da República aproveitou a tentativa de repetição do bloqueio da Ponte 25 de Abril que tinha sido feito em junho, como protesto ao aumento das portagens, para atacar fortemente o governo. Era claro então que as portagens eram uma arma de ataque político-partidário, com o apoio de alguma comunicação social, como o provava a integração de deputados comunistas e socialistas nas caravanas que procuravam atravessar a ponte sem pagar.

Nas minhas reuniões com Mário Soares, em que este assunto foi discutido, adotei, desconversando, uma estratégia que o aborreceu. Insisti sempre que o Governo não interferia na luta político-partidária e que, como lhe competia, continuava a trabalhar para garantir a segurança interna e a tomar as medidas necessárias ao progresso do país, mesmo que fossem impopulares, sem medo de desagradar a corporações e grupos de interesse, porque a mudança não se fazia só com decisões políticas simpáticas.

Por outro lado, recusei-me sempre a fazer comentários públicos sobre as críticas do Presidente ao governo sobre as tentativas de bloqueio da ponte, por mais violentas e absurdas que fossem, enquanto as estruturas do PSD o acusavam de constituir-se parte do jogo político, deixando de ser árbitro do sistema e assumindo-se como contrapoder. Em 7 de dezembro de 1994, a Comissão Política do PSD emitiu mesmo um comunicado em que rompeu com Mário Soares, considerando que a sua falta de isenção tinha ultrapassado tudo o que se podia tolerar.

Recordo, no entanto, que no anterior mês de setembro vivi um dos momentos de maior alegria da minha vida política: a inauguração da Escola Básica Integrada de Boliqueime, um contributo importante para que as crianças da minha terra natal pudessem prosseguir os seus estudos.

Depois de, em 23 de janeiro de 1995, ter anunciado publicamente que não me candidatava a presidente do PSD no congresso marcado para fevereiro, continuando como primeiro-ministro até ao fim da legislatura, mas não me candidatando a deputado nas eleições legislativas que, de acordo com o calendário normal, teriam lugar em outubro, Mário Soares desencadeou ainda uma jogada política sem qualquer sentido para desgastar a imagem do governo e do PSD. Sobre ela, o jornal Diário Notícias, em 28 de fevereiro, fez o título: “Soares faz render a incerteza”.

Decidiu promover consultas formais aos partidos políticos, e às confederações sindicais e patronais, para apurar se a minha decisão era razão para a dissolução do Parlamento e convocação de eleições antecipadas. Em 6 de março, o Presidente, vencido, emitiu um comunicado dizendo que não havia razões para a dissolução.

Numa tentativa de acalmar os críticos de Mário Soares dentro do PSD, fiz uma afirmação que muito o irritou: “Temos de ajudar o senhor Presidente da República a acabar o seu mandato com dignidade”. Não a devia ter feito. (...) Sempre me vira como um não-político no poder. Retinha na minha cabeça a afirmação do professor Carlos da Mota Pinto de que, enquanto governante, tinha sempre na algibeira a chave do seu automóvel. Tal como ele, tinha à minha espera o lugar de professor universitário quando decidisse pôr fim à carreira política.

Os ataques do Presidente não impediram o governo de continuar com o seu estilo arrogante, ou melhor dizendo, exibindo orgulho, a executar as políticas reformistas previstas para a parte final da legislatura, tendo a recuperação económica sustentável prosseguido a bom ritmo no ano de 1994. A OCDE, no relatório de 1995, reconhece explicitamente que Portugal fizera progressos notáveis depois de 1985, reduzindo significativamente os seus diferenciais de rendimento e produtividade relativamente aos outros países da União Europeia.

Na parte final do meu tempo como primeiro-ministro, numa tentativa de acalmar os críticos de Mário Soares dentro do PSD, fiz uma afirmação que muito o irritou: “Temos de ajudar o senhor Presidente da República a acabar o seu mandato com dignidade”. Não a devia ter feito.

Foi em 1994, quando faltava cerca de um ano para o termo das minhas funções de primeiro-ministro, que tive conhecimento de que o professor John Williamson, num livro publicado pelo Institute for International Economics de Washington, incluiu o meu nome na categoria de destacados tecnopolíticos (technopols) mundiais, definidos como os economistas que assumem o risco de cargos políticos e as responsabilidades que isso acarreta.

Não me senti nada incomodado com essa classificação. Talvez tenha mesmo sentido um certo orgulho pelo facto de a minha forma de estar na política ter sido percebida noutras geografias. Cumprir as promessas feitas, falar verdade aos portugueses, estudar profundamente os dossiês, ser rigoroso na ação, trabalhar no duro.

De facto, sempre me vira como um não-político no poder. Pessoalmente, o que me motivava era cumprir o programa reformista do governo, fazer obra e contribuir para a aproximação de Portugal aos países mais desenvolvidos da União Europeia. O sucesso governativo entendia-o em termos de progresso do país nas suas diferentes dimensões e não tanto em termos de resultados eleitorais e preservação do poder, como aliás defendi no livro O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar. Retinha na minha cabeça a afirmação do professor Carlos da Mota Pinto de que, enquanto governante, tinha sempre na algibeira a chave do seu automóvel. Tal como ele, tinha à minha espera o lugar de professor universitário quando decidisse pôr fim à carreira política.

Isto explica a estratégia que adotei de secundarização dos efeitos sobre a popularidade do governo dos violentos ataques da oposição, em particular do Presidente da República, nos últimos anos da legislatura. Apesar de todos os seus esforços, a minha equipa ministerial manteve-se coesa e dinâmica até ao último dia, e a obra realizada nos dois anos finais do meu mandato como primeiro-ministro não receia ser comparada com a dos oito anos do ainda poder socialista.

O trabalho de consulta dos meus arquivos de há quase 30 anos para escrever este artigo não me deixou qualquer cansaço, antes me divertiu e reavivou o sentimento de orgulho, erradamente confundido com arrogância, pelo trabalho realizado pelos governos a que tive a honra de presidir.

PS: A leitura da entrevista ao jornal Público, publicada nos dias 28 e 29 de março de 1995, em que fui interrogado por Vicente Jorge Silva, Jorge Wemans e Áurea Sampaio, talvez seja útil aos atuais afamados analistas e cronistas que desejem voltar a falar sobre o “cansaço” e a “arrogância” do governo nos meus últimos dois anos como primeiro-ministro.

Pode ler a primeira parte do artigo de Aníbal Cavaco Silva aqui.

Memórias de um governo “cansado” e “arrogante” (Parte I)

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