— Temos um cliente, não sei se se pode falar nem se não… o senhor que está preso na África do Sul.
— O João Rendeiro?!
— Sim. Aí mesmo onde o senhor está sentado, ele sentava-se sempre aí a comer a massinha de garoupa.
— A garoupa aqui é muito boa.
— E as saudades que ele deve ter de uma massinha!
No Pinóquio, as histórias saem a custo. Não por acanhamento, mas porque são décadas delas e parece difícil escolher uma especial a pedido. Ao fim de três anos de obras, um dos clássicos restaurante-cervejaria de Lisboa está de regresso ao endereço onde nasceu, no nº 80 dos Restauradores. Abriu numa quinta-feira, há quase 40 anos, reabriu noutra quinta-feira, faz uma semana precisa no momento em que aqui nos sentamos a conversar com um dos novos sócios e alguns dos velhos empregados.
Estamos na nova esplanada, que cresceu para 120 lugares e agora ocupa todo este recanto da praça, frente ao edifício onde nasceu também o Blue Hotel Liberdade, um quatro estrelas de 40 quartos. Desapareceram os velhos guarda-sóis verdes e brancos, substituídos por outros que rimam com a unidade hoteleira, mas lá dentro o verde continua a ser a cor dominante e o símbolo é ainda o lavagante. Há um novo piso inferior com duas salas, novas cozinhas, decoração renovada, mármores de Estremoz e cerâmicas da Viúva Lamego, mas percebe-se que se mexeu em muita coisa com o visível cuidado de não mudar demasiado. Sobretudo, ninguém se atreveu a mexer na ementa. E nos empregados muito menos.
O que mudou e o que precisa mudar
Lourenço Mello Breyner é um dos sócios que em 2018 compraram a casa a Filipe e João Costa, os irmãos que fizeram do Pinóquio uma marca de Lisboa. Logo depois, começaram as obras de fundo. “Estivemos aqui apenas seis meses, chegámos no Verão de 2018, e em Fevereiro de 2019 mudámo-nos para a Rua de Santa Justa. Foi a obra toda do edifício, demorou muito tempo, teve problemas…” Depois, claro, como em tudo nesta vida, “também se meteu a pandemia pelo meio”.
A sala principal ficou um pouco mais pequena, são agora 66 lugares. O espaço foi roubado para rasgar uma escada para o piso inferior, onde há agora duas outras salas, uma com 30 lugares, outra com 35 — que de manhã serve também os pequenos-almoços do hotel. “E ainda temos hipótese de abrir mais uma esplanada na porta do piso de baixo, que dá para a Rua do [Jardim do] Regedor”. Contas feitas, o Pinóquio consegue agora acomodar 250. E isso significa mais pessoal também.
“Neste momento são 45 pessoas, mais gente do que antes”, contabiliza Lourenço. “Temos mais lugares, mais espaço, precisámos de mais pessoal. Mas batemo-nos aqui com um problema comum, sabe?” Tentamos adivinhar. “Pois, é a falta de pessoal qualificado”. Falemos então do assunto, que tem estado na ordem do dia: que se passa? Ninguém quer trabalhar? “Não, sinceramente não vejo assim”, garante o empresário. “Acho que o problema são os baixos ordenados que se pagam nesta área, é certo, mas é sobretudo a falta de qualidade de vida que as pessoas tinham e já não querem ter. São muitas horas, muito esforço e pouco dinheiro”. Mas mesmo aqui, no Pinóquio? “Mesmo aqui, onde pagamos acima da média, os jovens sentem que lhes faltam outras coisas. Com a pandemia, descobriram que têm família em casa, que têm vida própria”.
A estratégia, acredita o patrão, é ir tentando melhorar a qualidade de vida dos empregados. “Tenho aqui pessoas muito dedicadas e essa é a nossa sorte, senão isto era um barco muito difícil de levar”, gaba o sócio, lembrando que mais de metade do pessoal vem da anterior gerência. É uma tropa de uns 28, todos do antigamente, “gente com vinte, trinta e quarenta anos de casa”, entre os quais se contam 16 manuéis. Três deles estão prestes a juntar-se à nossa mesa.
Histórias há muitas, manuéis também
Meireles é também Manuel, mas o mundo conhece-o por senhor — reduzido, claro está, à respeitosa abreviatura de “sôr”. Ora, o sôr Meireles está aqui desde o início e é tido como o embaixador do Pinóquio. Lourenço Mello Breyner, que tem também negócios em Angola, lembra-se de um dia estar em Luanda, numa conversa sobre mesas e mariscos, e alguém lhe dizer que quando voltasse a Lisboa tinha de conhecer o Meireles. Isto, já ele era sócio do restaurante e Meireles seu empregado. “Já correu o mundo inteiro e nunca saiu de Lisboa”, ri-se o patrão.
O Pinóquio abriu a 13 de Maio de 1982, dia em que João Paulo II passou por Lisboa. “Passou aqui à frente, eram umas onze da manhã, e quando o restaurante abriu, lá para a uma, já estava abençoado”, ri-se o empregado de quem se diz que não conhece o mundo, mas que todo o mundo o conhece a ele. Dessa equipa inicial, sobra também o chefe de cozinha, Domingos Macieira, e outro Manuel, o Barbosa, que está quase a juntar-se a nós. Vinham quase todos de outra casa clássica lisboeta, a hoje tristemente abandonada Solmar, às portas de Santo Antão. Filipe Costa era lá chefe de sala, o irmão João era responsável pelos mariscos. Foram os dois irmãos, a quem toda esta gente faz vénia constante, que arrastaram metade do pessoal de lá e construíram aqui uma nova referência, no lugar onde antes havia uma loja de brinquedos de madeira e que inspirou o nome Pinóquio.
— (jornalista) E outras histórias de clientes que tenha para contar?
— (sôr Meireles) Ui! Histórias, já houve aqui tantas! Nem sei por onde começar…
— (jornalista) Uma assim especial.
— (sôr Meireles) Não é isso… não sei mesmo mesmo por onde começar, não me está a ocorrer nada… Ó Barbosa! Lembra-me aí de alguma, filho, que nós passámos aqui tantas os dois!
Em equipa que ganha não se mexe
Manuel Barbosa está de folga hoje, mas aparece na mesma. “É isto que lhe dizia”, suspira Lourenço. “Isto é uma família de gente dedicada, mas que sempre trabalhou demais, passam aqui o dia todo, anos a fio, vão para a folga mas vêm aqui almoçar na mesma.” O chefe ri-se, encolhe os ombros e garante que, quando dois manuéis se encontram, as histórias começam. E um terceiro está quase a juntar-se à mesa.
Os segredos do Pinóquio, percebeu então a nova gerência, eram dois: esta equipa sólida que era preciso preservar e o conhecimento acumulado na carta. Da escolha do produto aos processos na cozinha, dos maneirismos de serviço aos tempos de espera para quem chega, tudo está pensado, trabalhado, mecanizado. “Quando chegámos, em 2018, quisemos fazer algumas pequenas alterações, mas tivemos de recuar”, recorda Lourenço. “Por exemplo, quisemos pôr um cabrito, disseram-nos logo não. Porque a cozinha tem a sua especificidade e o prato aqui tem de ser sempre uma coisa rápida, sem comprometer minimamente a qualidade”.
É por isso, explicam-nos, que apenas se trabalha com um peixe fresco, a garoupa, que pode chegar às postas (69€/kg) ou em cabeça (39€/kg), assada no forno, grelhada na brasa ou cozida, ou ainda na massinha que o senhor Rendeiro tanto aprecia, feita com gambas e amêijoas (26€), e no arroz feito de igual modo (26€). “É uma ideia que vem já dos irmãos Costa: assim temos muita rotação de produto e temos peixe sempre muito fresco, e com isto conseguimos a qualidade, mas também a rapidez”, explica o novo sócio. E a esta hora, olhando para a forma como as primeiras mesas começam já a ser servidas, essa agilidade é evidente.
O menu da bola
— (sôr Lourenço) Ó sôr Barbosa, não tem aí nenhuma história para contar? Aqui o sôr Meireles está bloqueado!
— (sôr Barbosa) Então, histórias da bola! Paravam aqui os jogadores da todos. Era o Stromberg, o Maniche…
— (sôr Meireles) E o Figo! Aquela era a mesa dele, a 250. Sentava-se acolá com a mãezinha.
— (sôr Barbosa) Punhamos-lhe um frapé do vinho, mas com água morninha e muito limão, que era para dar autógrafos.
— (jornalista) Autógrafos?!
— (sôr Barbosa) Pois. Não deixavam o homem sossegado quando aqui vinha.
— (sôr Meireles) Cada um que passava queria um autógrafo. Cumprimentava, assinava… E a seguir, para voltar a pôr as mãos no marisco, tinha de as lavar.
A carta do Pinóquio mantém-se, portanto, inalterada e nem valia muito a pena tentar mexer. A maior parte da clientela, garantem-nos, pede de cor, sem sequer olhar para ela. A garoupa, os arrozes, toda a carne do lombo e todo o marisco são a base de outra equipa em que não se mexe e só se acrescentam algumas estrelas de quando em vez — neste mercado de inverno, por exemplo, é tempo de lampreia. Mas o meio campo criativo é sonante: gamba, amêijoa e pica-pau. Juntos, formam o famoso menu da bola.
A coisa começou por causa dos jogos tardios. Em noites de bola em Alvalade ou na Luz, a casa era apanhada por uma enchente já perto da meia-noite. A solução, recorda o sôr Barbosa, era tirar tudo da montra — “o peixe, o marisco, tudo fora” — e deixar apenas três escolhas à turba faminta. As gambas da costa, sempre fresca e gorda (85€/kg); a amêijoa, que só chega da Ria Formosa e se diz da cafeteira por ser cozinhada ao vapor (31€); e o pica-pau, que é talvez o mais famoso de Lisboa e que tem um só segredo — é na verdade bife do lombo em pedaços generosos (26,5€). E estes, garante Lourenço Mello Breyner, “continuam de longe a ser os pratos mais vendidos no Pinóquio”.
— (sôr Meireles) Isto gente da bola, nem se fala!
— (sôr Barbosa) E o Mário Rosa Freire, que foi presidente do Belenenses [1982-1990], aquele que era o rei das bananas, sabe? E o José António Careca, sabe? Que era capitão do Belenenses [liderou a equipa vencedora da Taça de Portugal de 1989].
— (sôr Meireles) Esses estavam cá sempre.
— (sôr Barbosa) Qualquer jogador que viesse para o Belenenses, vinha diretamente do aeroporto para aqui. Era sempre a mesa 150, a última, lá ao cantinho.
— (sôr Meireles) Eram quase todos brasileiros. A primeira coisa que ficavam a conhecer era o menu da bola do Pinóquio.
Os três Pinóquios
Quem chegou, sabe portanto que não comprou um restaurante, comprou uma marca. E quem chega agora mesmo é o sôr Manuel Belém “um júnior que só entrou na casa há 21 anos”, e que se junta a uma mesa farta de gente, memórias e historietas, onde já começa a apetecer mandar vir imperiais e tremoços.
Todos os manuéis se dizem felizes por ter regressado à casa de partida. Mas a marca Pinóquio vai continuar a ter outras moradas. Em fevereiro ou março deste ano, revela Lourenço Mello Breyner, o Pinóquio voltará a abrir no 54 da Rua de Santa Justa, onde funcionou nos últimos três anos. Tudo depende, lá está, dos empregados. “É como lhe digo, temos falta de pessoal especializado neste momento e sem ele não vale a pena avançar”, insiste. “Isto é uma marca valiosa e não podemos arriscar baixar a qualidade”.
Santa Justa será a terceira casa do Pinóquio. A outra está lá em baixo, na Ribeira, onde a marca se instalou em Outubro de 2020 a convite do Time Out Market. É uma aposta que os novos donos fazem para apanhar o timing de dar as boas-vindas aos turistas que toda a restauração espera ver regressar a Lisboa. “Antes da pandemia tínhamos uns 40% de clientela estrangeira, neste momento, no máximo, teremos uns 20%. Mas acredito que no verão volte ao que era. Isto vem gente de todo o mundo só à conta do Meireles.”
— (sôr Meireles) Sempre tivemos muita clientela africana, sobretudo angolana, com dinheiro para gastar.
— (sôr Belém) E os chineses? Antes da pandemia, não era meio dia e já isto estava cheio deles.
— (sôr Barbosa) É. Há dez anos eram os angolanos e os de Leste. Depois começaram os chineses.
— (sôr Belém) E o chinês, seja da China seja da Coreia, nem vai à lista. Saca do telemóvel e aponta para as fotografias.
— (sôr Barbosa) E tinham outra uma coisa. Tudo o que estivesse em cima da mesa ia para o prato junto.
— (sôr Meireles) Pois, eram chineses mas parecia salada russa.
— (sôr Belém) E só bebiam água e chá quente.
— (sôr Meireles) Ui, então houve que comeu uma mariscada e no fim, parece que estou a ver…
— (sôr Barbosa) É verdade, é verdade, conta!
— (sôr Meireles) Então ponho-lhe aqui uma tacinha de água com limão para as mãos, ele olha para aquilo e truca! Bebeu.
— (sôr Belém) Ui! Tantas histórias… Isto é para que jornal?