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Mexia, Relvas, Passos e até Ronaldo: os outros textos de João Caupers, além do "lobby gay"

João Caupers não escreveu apenas sobre o "lobby gay". Em 47 textos que publicou antes de chegar ao Tribunal Constitucional criticou Miguel Relvas, Mexia, Passos Coelho, a Europa e até Ronaldo.

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O texto em que o atual presidente do Tribunal Constitucional se declara anti lobby gay e em que fala da “minoria” homossexual é apenas um dos 47 que João Caupers escreveu para a rubrica “Pontos de Vista”, que criou no site da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Algumas dessas crónicas, que, segundo o próprio, foram ou mais “graves” e amargas ou mais ligeiras e tolas, mereceram centenas de respostas na sua caixa de e-mail, umas mais  favoráveis, outras mais críticas. Ainda assim, o juiz conselheiro não se arrepende do que escreveu: sobre a Europa, e também a troika e Passos Coelho, ou mesmo sobre Miguel Relvas e, até, Cristiano Ronaldo. Caupers até admite continuar a escrever, mas enquanto membro do Tribunal Constitucional garante não ser recomendável tornar os seus escritos públicos.

“Não me arrependo. As circunstâncias aconselham-me a pôr um ponto final nos meus pontos de vista. Não porque vá deixar de os ter, mas porque as funções que vou assumir recomendam que os não torne públicos”, justificou João Caupers no texto de despedida que fez para o espaço do site da Faculdade, para o qual muitos outros académicos contribuíram, incluindo a então diretora da faculdade. Foi aliás Teresa Pizarro Beleza que publicou esse texto de despedida assinado a 28 de fevereiro de 2014, quando anunciava que João Caupers acabava de deixar a presidência do Conselho Científico e uma parte dos seus encargos letivos na Faculdade para servir como juiz conselheiro no Tribunal Constitucional.

Nesse texto, o agora presidente do Constitucional explicava que, ao longo dos três anos anteriores, tinha escrito sobre os mais diversos temas: “Da crítica política e social ao cinema, passando pela fábula e pela história infantil”. “Textos graves e amargos, uns, ligeiros e tolos, outros. Todos escritos com o intuito de provocar e agitar a nossa pequena comunidade académica, fazendo-a debater”, acrescentava. Dizia também que muitos dos seus escritos chegaram a ser replicados noutros locais, alguns com a sua autorização, outros nem por isso. Todos eles continuam disponíveis na página da Faculdade — mas não será por muito tempo.

O juiz conselheiro João Caupers

Steven Governo / Global Imagens

“Escrevam, minha gente! Mostrem o traseiro (virtual, é claro) ao poder”

“Escrevi o que escrevi e assumo a inerente responsabilidade. Alguns textos não seriam escritos da mesma forma hoje, pois são muito datados, reagindo a questões que ocupavam a opinião pública. Mas, na maioria dos casos, voltaria a escrever o que escrevi”, escreveu neste último texto. “As circunstâncias aconselham-me a pôr um ponto final nos meus pontos de vista. Não porque vá deixar de os ter, mas porque as funções que vou assumir recomendam que os não torne públicos”, acrescentou.

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"Escrevam, minha gente! Mostrem o traseiro (virtual, é claro) ao poder. A pena – hoje o computador – é uma arma. Se for bem utilizada, é de indignação maciça"
João Caupers (setembro de 2011)

Nesta mensagem, Caupers incentivava outros a continuarem a escrever, como aliás já o tinha feito anos antes dirigindo-se aos alunos da faculdade. No texto “Digam mal, caramba!”, de setembro de 2011, o então professor motivava todos a escreverem as suas opiniões. “Escrevam, minha gente! Mostrem o traseiro (virtual, é claro) ao poder. A pena – hoje o computador – é uma arma. Se for bem utilizada, é de indignação maciça”, defendia.

“São cristãos resignados, que esperam que os sacrifícios vos sejam creditados na conta-corrente dos vossos pecados? Já consumiram a vossa capacidade de protestar? Acham que não vale a pena? Também querem ir para Paris estudar filosofia?”, interrogava, numa clara alusão ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, que naquele ano foi estudar para Paris e que acabaria por ser detido em Portugal, três anos depois, por corrupção, num processo que ainda está na fase de instrução.

PS indica juíza Dora Lucas Neto para o Tribunal Constitucional

João Caupers foi eleito presidente do Tribunal Constitucional há pouco mais de uma semana

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Mas, sobre José Sócrates, João Caupers até foi delicado na escrita. Sobre outros não se coibiu de ser mais mordaz e sarcástico. Como em dois textos em que refere Miguel Relvas, um publicado em março e outro em maio de 2013, — um mês antes e um mês depois de Relvas apresentar a sua demissão do cargo de ministro Presidência e dos Assuntos Parlamentares, envolto em várias polémicas, uma delas em relação à sua licenciatura na Universidade Lusófona (que acabou por perder).

Miguel Relvas ao lado de Teresa Guilherme ou Jorge Jesus

No primeiro desses textos, o então professor catedrático mostrava-se surpreendido por Relvas ter sido convidado para falar (embora tenha depois sido impedido) “num misterioso Clube dos Pensadores, onde supostamente iria espraiar o seu pensamento (?) político (?)”, e, depois, “num estabelecimento de ensino superior, onde iria dar conta do seu espírito visionário em matéria de comunicação social”.

Miguel Relvas perde a licenciatura

“Por um lado, não lhe conheço obra susceptível de despertar o interesse pelo seu pensamento, se o tiver. A sua presença no tal clube de pensadores é intrigante – a menos que os próximos convidados sejam a Teresa Guilherme ou o Jorge Jesus. Por outro lado, depois das alegadas interferências no trabalho jornalístico de um conhecido diário e das peripécias da privatização (?), venda (?), concessão (?) da RTP, convidá-lo a falar sobre comunicação social é assim como convidar o Oliveira e Costa [fundador do BPN] para uma conferência sobre ética financeira”, escreveu.

No mesmo tom, escreveu outro texto em que aproveitou para elogiar Virgínia Estorninho, que à data recordava como única presidente de junta de freguesia de Lisboa eleita pelo PSD — alguém que ele até desconhecia. Isto por ela ter sido o único membro do Conselho Nacional do PSD a votar contra um louvor ao ex-ministro Miguel Relvas. “Tendo tido grande eco público as controversas e censuráveis (para ser generoso) condutas deste senhor (…) parece poder concluir-se que, mesmo descontando os eventuais distraídos, a falta decência é coisa que não incomoda aquele “órgão supremo do PSD entre congressos” (creio que é assim que se diz em “partidoquês”).”

Miguel Relvas demitiu-se quando era ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares depois de várias polémicas, entre elas a sua licenciatura

TIAGO PETINGA/LUSA

Neste mesmo texto, Caupers elogiou uma segunda pessoa, que garantia também não conhecer, tocando num outro tema que pode eventualmente poderá vir a cair-lhe no colo, enquanto juiz conselheiro do Tribunal Constitucional: a EDP. O atual presidente do TC elogiava então Henrique Gomes, à data secretário de estado da Energia e defensor de uma contribuição especial sobre as rendas excessivas na produção regulada de energia. Escreveu Caupers que “por ter ousado enfrentar o lobby da energia, na sequência de um episódio rocambolesco, que incluiu mesmo o “desvio” de um relatório confidencial”, acabou afastado do Governo.

“Um ano depois, o país verifica, com a pouca capacidade de espanto que ainda lhe resta, que aquele antigo secretário de Estado foi imolado no altar das rendas excessivas da energia, para permitir à EDP continuar a impor, com poucos limites, nenhuma vergonha e, até, contra o império da “santa” troika, preços abusivos pela energia que vende aos consumidores portugueses”, escreveu.

"Aquele antigo secretário de Estado foi imolado no altar das rendas excessivas da energia, para permitir à EDP continuar a impor, com poucos limites, nenhuma vergonha e, até, contra o império da “santa” troika, preços abusivos pela energia"
João Caupers (maio de 2013)

Mexia, o “lídimo representante do capitalismo “nacional”

À data, a EDP era liderada por António Mexia, que foi também visado num outro texto de João Caupers sob o título “Insensibilidade e insensatez“. Nele, o agora juiz conselheiro considerava inaceitável a medida então anunciada sobre a redução de pensões. E mostrava mesmo algum desalento pela falta de  “vergonha neste infeliz país”, lembrando declarações de Mexia sobre uma decisão do Tribunal Constitucional.

Caupers referiu-se a Mexia como o “lídimo representante do capitalismo “nacional”, no que ele tem de mais reles”. “Montado no seu salário de vários milhões de euros por ano, o mandatário do patrão chinês da EDP permitiu-se criticar o Tribunal Constitucional, considerando que as suas decisões (referia-se ao justo e merecido tratamento dado aos sucessivos orçamentos de Estado apresentados pelo actual governo) não tiveram em conta o “contexto” (nome que ele dá às supostas exigências dos credores) e haviam aumentado os riscos de um segundo resgate”, criticava. Defendia, por outro lado, o próprio Tribunal (que acabou a presidir uma década depois) “como o que resta aos portugueses para tentar resistir aos abusos de uma desgraçada política de empobrecimento e destruição, executada pelo neoliberalismo saloio de tolos e incompetentes, ao serviço da usura internacional”.

“Se os portugueses vierem a convencer- se de que o Tribunal já não é a tábua de salvação da democracia, que restará aos meus concidadãos, como forma de expressão da sua indignação e da sua revolta? Eu, se fosse o Dr. Mexia, à cautela, parava de me mexer“, escreveu.

António Mexia está agora a ser investigado pelo Ministério Público, a propósito da adjudicação da obra de construção da barragem do Baixo Sabor, em Trás-os-Montes — que é considerada o maior centro de produção hidroeléctrica do país. O MP suspeita que Mexia e João Manso Neto, com a ajuda do ex-ministro Manuel Pinho, terão alegadamente beneficiado o consórcio liderado pelo Grupo Lena e a Odebrecht Portugal (então designada de Bento Pedroso Construções) na adjudicação daquela obra no dia 30 de junho de 2008.

António Mexia está a ser investigado no processo EDP

João Caupers escreveu mais sobre o Tribunal para o qual foi trabalhar em 2014, e em que dois anos depois foi eleito vice-presidente — e, há cerca de uma semana, presidente. Neste caso, escrevia sobre a alegada pressão que alguns políticos estavam já a fazer sobre este órgão de soberania a propósito da proposta de Orçamento de Estado para 2014, ainda antes de ela sequer ter dado entrada na Assembleia da República.

Isto já não é pressão: é, simplesmente, intimidação – e descarada”, escrevia.

António Mexia e João Manso Neto suspeitos de terem prejudicado a EDP

A interferêncida da Comissão Europeia nas decisões do Constitucional

Num outro texto, o alvo de ataque de Caupers, como o próprio deixou claro, era “o Senhor Luiz Pessoa – que bem mereceria o epíteto de “tecnocrata apátrida”, com que De Gaulle brindou os membros da Comissão Europeia”, acusava.

Na altura, o representante português da comissão redigira um documento em Bruxelas que enviara para Lisboa como uma espécie de aviso ao Tribunal: se não aprovasse o orçamento, podia provocar o pedido de um segundo resgate. O Constitucional tinha travado algumas medidas do executivo para implementar o programa da troika em Portugal e Pessoa alegava que o tribunal não devia envolver-se em “ativismos políticos”. “Lastimáveis considerações”, escreveu à data Caupers.

Sobre António Mexia: "Montado no seu salário de vários milhões de euros por ano, o mandatário do patrão chinês da EDP permitiu-se criticar o Tribunal Constitucional"
João Caupers (setembro de 2013)

Aliás, o “famigerado” (como definiu Caupers) Memorando de Entendimento, que na altura o governo português assinou, foi também tema dos textos que agora descreve como instrumentos “pedagógicos” — quando questionado sobre o artigo em que critica o lobby gay.

Presidente do Tribunal Constitucional diz que texto era “um instrumento pedagógico” e não reflete “necessariamente” as suas ideias

Num deles, João Caupers dirige-se ao ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho (e também ao economista Eduardo Catroga) apontando o PSD como responsável pelo tal memorando de entendimento — e não José Sócrates, como o governo advogava.

“O “despesismo alucinado” – e, parece, alucinogénio também, já que afastou da realidade não apenas os socialistas mas também as gentes do PSD e do CDS, que não me recordo de o ter ouvido contrariar ou denunciar – endividou o país e arruinou os portugueses. O actual governo ter-se-á limitado a herdar a desgraça. Como disse? Terei ouvido bem? Então não foi o PSD que se fartou de gabar do seu papel decisivo nas negociações com a troika, sendo graças a ele – melhor, graças a essa hábil combinação do sentido de Estado do Dr. Passos Coelho com o génio negocial do Dr. Catroga, ambos amparando altruisticamente o derrotado governo socialista – que o memorando de entendimento pôde ser aquilo que é?”, questiona.

O ataque à Alemanha, o referendo sobre a adoção por pessoas do mesmo sexo e Hugo Soares

Também sobre a Europa, Caupers mostrou-se crítico noutros textos, chegando a chamar um deles de “A Europa da Vergonha“, considerando que o percurso agregador que cabia à União Europeia se tinha perdido há muito. “O estertor da UE resulta de uma doença incurável, que os tolos de Bruxelas ao serviço de Berlim pretendem curar com aspirinas. Eu gostava de acreditar que, nos bastidores desta tragédia, não estão mãos alemãs. Mas tenho dificuldade. Não consigo esquecer que um país com menos de 150 anos já quase destruiu a Europa por três vezes, sempre com efeitos devastadores crescentes”, escreveu, referindo-se à Alemanha.

E se Caupers escreveu a reboque da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que nas suas palavras são uma “minoria”, escreveu também de forma crítica sobre “A invenção de Hugo”, o título que escolheu para o texto particularmente irónico em que se refere a Hugo Soares — embora sem referir o seu apelido. A publicação desta crónica data de janeiro de 2014, altura em que o deputado do PSD conseguiu fazer aprovar na Assembleia da República a ideia do referendo para adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo.

“Chegou a deputado. Como outros. Na Assembleia da República não se distinguiu especialmente. Pode dizer-se até que passou despercebido. Como muitos outros. Até que um dia chegou o momento de glória por que ansiava”, ironizava João Caupers. “É sobre aquelas crianças que precisam de uma mãe – que até pode ser pai – ou de um pai – que até pode ser mãe. Não é bem isto, é sobre aquelas crianças que precisam de uma mãe, porque não têm pai. Ou precisam de um pai, porque não têm mãe. Ou são filhos de viúvos. Ou são órfãos”, escrevia Caupers, como se fosse o tal Hugo a explicar à sua mãe o que tinha conseguido fazer.

Hugo Soares propôs que se fizesse um referendo sobre a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo

Cristiano Ronaldo, “a supervedeta mais embirrante”

Nas dezenas de artigos publicados, o agora juiz conselheiro também não esquece o futebol, mesmo que admita não perceber muito da modalidade. Chega a demonstrar a sua preferência pelo Benfica, sentimento que não partilha, no entanto, pelo jogador de futebol Cristiano Ronaldo “a supervedeta, mais embirrante do que eficiente”, diz num artigo publicado em outubro de 2013.

Em fevereiro de 2014, o ano em que deixou a Faculdade para ir para o Tribunal Constitucional, o juiz conselheiro também escreve sobre o direito ao esquecimento. Aí defende que tudo o que o nosso cérebro vai apagando ao longo dos tempos “é essencial ao nosso bem-estar”. “Mais: temos o direito de esquecer”.

"Daqui a dez anos alguém nos poderá exibir o registo da câmara de segurança da loja. E lá estará o nosso pecado recordado, sujeito à crítica e à especulação"
João Caupers (fevereiro de 2014)

“Este direito ao esquecimento é, porém, cada vez mais ameaçado pelo sistemático registo, por meios vários, dos nossos passos. Não nos lembramos, e temos o direito de não querer recordar que, cedendo a um impulso consumista, comprámos aquela lindíssima gravata de seda italiana por um balúrdio. Mas daqui a dez anos alguém nos poderá exibir o registo da câmara de segurança da loja. E lá estará o nosso pecado recordado, sujeito à crítica e à especulação“, escreveu.

Foi o que aconteceu com os textos que assinou há vários anos e que permanecem disponíveis no antigo site da Faculdade. Pelo menos até ser apagado, por já existir um novo — como o Observador apurou que vai acontecer.

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