Quando chegou ao Coliseu do Porto, em fevereiro, passou a primeira semana “só a falar com pessoas”. O músico e jurista Miguel Guedes, conhecido como vocalista e fundador dos Blind Zero, mas também pela sua colaboração regular na comunicação social, como colunista e comentador desportivo, começou por ouvir os trabalhadores de uma casa que não lhe é estranha. Natural do Porto, ali viu filmes enquanto adolescente, assistiu a concertos, foi ao circo. Em dezembro, recebeu o convite da Câmara Municipal do Porto para assumir a presidência da sala de espetáculos portuense, um espaço cultural que pretende “preservar” e “eternizar”, reforçando a sua ligação à cidade e às pessoas.
Miguel Guedes sucede a Mónica Guerreiro, nomeada em 2020 pelo Ministério da Cultura, e terá a concessão do Coliseu do Porto como um dos maiores desafios do seu mandato. A autarquia e o Ministério da Cultura suspenderam o modelo de concessão em 2021, alegando que assumiriam o custo em partes iguais das obras de reabilitação da sala na Invicta, mas o cenário reverteu-se em julho de 2022, quando a direção da Associação Amigos do Coliseu (AAC) aprovou por unanimidade a entrega da sala de espetáculos a privados, algo que o autarca Rui Moreira frisou ser uma “solução definitiva”.
Em entrevista ao Observador, o presidente e diretor artístico do Coliseu do Porto para o triénio 2023-2026, em funções há dois meses, fala do presente. O que há de novo para já? Fardas, luzes e ambientes sonoros que convidam os visitantes a deixar-se ficar além da hora do espetáculo. Sem descurar a necessidade de obras, que classifica como “urgentes”, Miguel Guedes espera, até lá, ver o espaço “monumental” habitado e não fechado sobre a cidade: “A ideia é que não estejamos num círculo à volta do Porto, mas que sejamos nacionais, que sejamos inclusivamente uma referência internacional”.
Há dois meses que assumiu a presidência do Coliseu. Como é que o encontrou?
Encontrei-o como um espaço vital, um espaço de cultura da cidade, de permanência, habitado por um equipa absolutamente generosa de trabalhadores com uma vontade de operar mudança e de ser transformador.
O que é que fez no primeiro dia?
(risos) Na primeira semana e meia falei com as pessoas, começando pela equipa técnica.
A sua primeira iniciativa foi a criação de ambientes sonoros para anteceder os espetáculos. Desde 1 de abril que os espectadores que entram no Coliseu do Porto ouvem composições musicais várias, que designou como “Mantras do Coliseu”. De onde partiu esta ideia?
Esta ideia parte sobretudo desta necessidade de sermos transformadores, de olharmos para um espaço monumental, de 1941, e que julgo que podia ter outro tipo de habitação, o que chamo de habitação artística permanente, uma espécie de residência artística, com intervenção artística no espaço. O espaço é muito amplo, tem uma enorme dimensão, de largura e altura e também de profundidade e densidade. Pareceu-me que muitas vezes as pessoas entravam no Coliseu e eram dirigidas, e bem, para uma sala para assistirem a um espetáculo. Pareceu-me curto. Pareceu-me que as pessoas deviam ter outra experiência no Coliseu: de convívio, de conversa, de troca de impressões nos corredores, no foyer, em todas as zonas onde se habita no Coliseu, mas que pareciam um pouco ausentes. O enorme espaço estava vazio. A ideia é precisamente convocar um conjunto de artistas que são absolutamente referenciais e fundamentais nas várias suas atividades e áreas de interesse e estéticas para poderem habitar do ponto de vista sonoro e visual o Coliseu.
Convidamos o Alexandre Soares (GNR, Três Tristes Tigres) para fazer um som de sala, que nós chamamos um mantra porque a lógica é mesmo essa. A composição repete-se durante uma hora, uma hora antes do início do espetáculo e meia hora depois do fim do espetáculo. Para que as pessoas no Coliseu quando entrarem, seja no átrio ou no foyer, na sala, consigam conviver com estes mantras identificativos de cada um dos artistas, que entregaram obras originais para o Coliseu. Quem aqui vier vai ouvir mantras do Pedro Abrunhosa, do Pedro Burmester, do Ricardo Burmester, seu filho, que tocaram a quatro mãos uma obra extraordinária de Bach, Manuel Cruz, Carlos Azevedo, Surma, Noiserv, Alexandre Soares, tudo gente que entregou ao Coliseu obras únicas, ainda por cima com intervenção poética e identitária do Pedro Lamares e da Filipa Leal que por cima desses mantras vão atirando pistas para aquilo que é o espetáculo do dia para os temas que nós abordamos identitariamente também no Coliseu todos os meses.
Grande parte destes artistas convidados são do Porto. Esta primazia por artistas da cidade será uma marca na programação do Coliseu?
Julgo que não devemos fechar nem em artistas do Porto nem em artistas nacionais. Acho que o Coliseu é de todos e daí que haja uma forte componente de pessoas que se relacionam com o Coliseu, mais do que serem do Porto, que se relacionam com o Coliseu. Naturalmente quem está no Porto, na cidade, e na área metropolitana e na região, viverá por razões de proximidade e vizinhança o Coliseu mais do que outras pessoas. Daí a razão de serem pessoas que, umas se amarraram ao Coliseu, como o Pedro Abrunhosa em 1995, impedindo que isto tomasse outros rumos [o cantor teve um papel ativo no protesto que impediu a venda do edifício à Igreja Universal do Reino de Deus], outras pessoas que aqui habitam e vêm espetáculos e fazem desta casa um espaço de crescimento como foi para mim enquanto miúdo, que cresci aqui a ver cinema, música, e circo. Naturalmente que há uma presença maior de pessoas do Porto, mas também há pessoas que são de Lisboa, do país e pessoas do mundo. A ideia é essa, que não estejamos num círculo à volta do Porto, mas que sejamos nacionais, que sejamos inclusivamente uma referência internacional pelos vários pontos de vista do que é a programação e identidade e, já agora, respeito por aquilo que são os traços fundamentais que o Coliseu tem desenvolvido nos últimos anos de inclusão e respeito pela diversidade.
Cada mês haverá um binómio temático, para abril o escolhido é diversidade/voz. Todos os meses haverá novas composições?
Não. A ideia é que os mantras sejam os mesmos, eles ficam aqui a habitar o Coliseu durante uns bons largos meses, seguramente. O que mudará todos os meses são as palavras. O que a Filipa Leal e o Pedro Lamares vão dizendo, e o que o André Tentugal faz com cada um dos programas audiovisuais no Coliseu. Estes temas, estes binómios, são pensados para ir do mais abstrato ao mais concreto, do mais largo para o mais conciso, do mais imaterial para o mais material. Daí que seja diversidade o conceito mais amplo e voz o conceito mais concreto. Tentaremos trabalhar sempre em binómios que nos permitam maior interpretação, que nos permitam que possamos elencar à volta destes binómios diversas palavras, diversas introduções estéticas, workshops, debates, rastreios, como vamos fazer agora um rastreio da voz. A ideia é precisamente que estes binómios informem aquilo que vai ser a identidade transformadora e interpretativa do Coliseu nos próximos anos.
Portanto, o binómio mensal será para os mantras poéticos e para a programação?
O binómio é uma espécie de tema do mês. Cada mês tem um tema, do mais alargado para o mais concreto. Este mês é diversidade e voz.
Considera que os artistas escolhidos para estes mantras, e a programação de abril, espelham essa diversidade?
Absolutamente. Não é à toa que escolhemos diversidade e voz. Não só porque temos o dia mundial da voz, em que vamos fazer um rastreio de voz aberto à comunidade artística e à comunidade civil, mas porque é precisamente disso que estamos a tratar em abril. A ativação de todos estes mantras indica diversidade. Segmentamos os nossos espetáculos em seis. O erudito foi entregue ao Pedro Burmester e ao Ricardo Burmester, o circo foi entregue ao Carlos Azevedo, a programação mais alternativa foi entregue ao David Santos (Noiserv), o lado mais pop/rock foi entregue ao Pedro Abrunhosa, o lado mais eletrónico, mais contemporâneo, foi entregue à Surma. O som da sala foi entregue ao Alexandre Soares. Há aqui uma segmentação por estilos, áreas de interesse e estéticas que indica toda esta diversidade e ecletismo que o Coliseu indiscutivelmente tem. Todos eles são vozes diferentes nos seus mais diversos campos e referências estéticas e, como tal, é mesmo um mês da diversidade e da voz.
Sobre estes ambientes sonoros, podemos retirar algum simbolismo desta primeira iniciativa, nomeadamente que a música será a prioridade na programação do Coliseu?
A música é sempre uma prioridade na programação do Coliseu, grande parte dos espetáculos que temos são de facto de música. É uma casa que é conhecida pelo seu ecletismo, mas tem uma forte componente de música. É um espaço que devido à sua dimensão e monumentalidade convoca as pessoas a olhar para cima, mas as pessoas muitas vezes não olham porque é muito grande. Espero que com som as pessoas comecem a olhar um pouco para cima. Essa plataforma elevatória que gostava que acontecesse no Coliseu é algo que tem muito de poético também. De olhar para o espaço. Por isso lhe chamo uma intervenção artística no espaço. Em todo o espaço, também com um desenho de luz novo. Não é nenhum privilégio à música, é apenas uma intervenção primeira no que é a ambientação sonora de todo o espaço. Há também uma intervenção visual do André Tentugal em todas as nossas televisões, com programação identitária, portanto vai muito além do som. Queremos ir mais além, queremos ir às artes plásticas, queremos fazer muitas coisas que a partir de julho ficarão mais claras, mas que tem a ver com educação e com todas as áreas de intervenção onde se pode olhar e ver não só cultura, mas arte, na perspetiva de que a cultura olha muitas vezes para trás, mas a arte olha normalmente para o futuro.
Porquê a partir de julho? Será apresentada uma nova programação?
O Coliseu pretenderá sempre convocar mudança todos os meses. Abril é um mês em que claramente as coisas irão mudar, em maio certamente que abordaremos um novo binómio e teremos novas ações que pretendem reprogramar e programar no espaço e na identidade. Depois em junho e julho teremos o que julgo que será uma mudança, um complemento muito significativo àquilo que será a identidade do Coliseu para os próximos anos.
Que se concretizará em quê?
Naquilo que se concretizará em julho (risos).
Além destas residências sonoras, há outras mudanças como novas roupas para criar uniformidade no pessoal de sala, néons e LED no exterior. Que mais há de diferente desde a sua chegada?
Há uma tentativa de, mais do que uniformizar as pessoas, lhes trazer individualidade. As pessoas serem tratadas pelo nome, terem um conjunto de uma afirmação individual num movimento coletivo, estarem no Coliseu, receberem as pessoas e serem absolutamente respeitadas pelo seu trabalho. Isso passa pela forma como as pessoas as veem. Nós temos olhado para o que havia e que podia ser reabilitado. Daí o novo desenho de luz no foyer, nos corredores, a ativação de um sistema de luz no átrio da entrada, o facto de os néons estarem a funcionar em pleno. Uma placa de LEDs belíssima que temos por baixo da nossa pala que estava desativada há muitos anos também voltou a ser ativada. No fundo, não é só fazer de novo, é olhar para o que existia, para o que era passado, e tentar perceber se não podemos ter de volta, fazendo futuro algum desse glamour desse passado que nos trouxe aqui enquanto Coliseu Porto Ageas.
Já disse, quando tomou posse, que as obras no Coliseu são “urgentes”. Falando em julho podemos concluir que as obras não serão para breve.
As obras são sempre urgentes no Coliseu e ninguém se pode desresponsabilizar da necessidade de olhar para elas com urgência e com necessidade de ponderação absoluta sobre timings e decisões que têm de ser tomadas com toda a ponderação e critério. Mas volto a dizer, ninguém se pode demitir dessa responsabilidade.
Aquando da sua nomeação, Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, disse que a escolha recaiu sobre uma figura “consensual”, “reconhecida na cidade e não só”. Considera-se uma figura consensual?
Considero-me uma pessoa que entrará para fazer e transformar e sairá feliz.
Quem gostaria de ver no palco do Coliseu?
(risos) É mesmo para dizer? Vou dizer um que não vem.
Vai dizer o Tom Waits?
Vou.