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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

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Miguel Peres: “Se nós vemos um cérebro na mesa, comparamo-nos com o animal. Com um bife não”

Nos 10 anos do restaurante Pigmeu, Miguel Peres abriu uma segunda casa no Mercado da Ribeira e chocou com a CML e o Time Out Market. Aí continua o seu quase-ativismo pelo consumo consciente de carne.

No Mercado da Ribeira, no Cais do Sodré, em Lisboa, há um corredor que separa o marasmo das bancas tradicionais do bulício de turistas no Time Out Market. É nesse corredor que abriu o Pigmeu na Ribeira, depois de impasses com a Câmara Municipal de Lisboa por causa do contrato com o Time Out Market, avança Miguel Peres, dono da casa. Enquanto o processo corre em tribunal, esta é a segunda morada do Pigmeu, um restaurante independente de Campo de Ourique, Lisboa, que celebra este ano 10 anos de dedicação ao porco e à procura de um consumo de carne mais sustentável.

Miguel Peres tornou-se sócio único poucos anos depois do início do projeto. Em 2014, abriu o Pigmeu como casa de sandes e, aos poucos, foi tornando a sua oferta mais gastronómica, 100% biológica e conquistando um público local e interessado nas discussões sobre alimentação.

Uma vez por mês, até dezembro, celebra este percurso em Campo de Ourique com os eventos Vai Dar Porcaria, com convidados a ocuparem a cozinha do Pigmeu. No Mercado da Ribeira, a mercearia onde se pode beber um copo de vinho e pedir uma tábua de charcutaria biológica avança lentamente. Os turistas entram a medo. Em entrevista, explica porque está em tribunal com a Câmara, qual a relação com o Time Out Market, mas também o que entende por comer carne de forma sustentável, objetificação da carne ou “a sazonalidade que ninguém quer”.

Como é que o Pigmeu veio parar ao Mercado da Ribeira?
Esta era a loja do Freixo do Meio [produtor de frescos e carne]. Tinham aqui uma mercearia com uma cafetaria biológica já há muitos anos e em 2019 isto não era um bom negócio para eles. Eu dizia ao Alfredo [Sendim, um dos responsáveis do Freixo do Meio] que não fazia sentido nenhum, a localização era boa, estava aqui ao lado do Mercado da Time Out. Então, comecei a vir cá de vez em quando à loja para o ajudar a fazer um plano para ativar um bocadinho a loja. A minha relação com o Alfredo e com o Freixo do Meio vinha de ele ser o nosso principal fornecedor desde 2017. Com a pandemia decidiram que iam fechar esta loja e o Alfredo disse “tu devias ficar com a loja, tu gostas daquilo, tenho outras pessoas interessadas, mas sei que tu vais continuar na linha de trabalho que tínhamos”. Eu na verdade não queria.

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Estava sempre a dizer-lhe que a loja era boa e afinal não a queria?
Não queria abrir mais uma coisa. O Pigmeu [em Campo de Ourique] ainda tem muita coisa para melhorar. Abrir mais uma coisa é desfocar do trabalho que estamos a fazer no Pigmeu. Mas não dava para recusar, porque a localização é muito boa e acabei por aceitar.

Como é estar ao lado do Time Out Market sem pertencer ao Time Out Market?
É bom e mau. É bom porque, embora a Time Out [Market] seja um projeto interessante, com vários nomes interessantes, o número de pessoas que visita o food court é muito grande. É bom para quem está lá, porque tem muito volume, mas é outro género de negócio, é mais como um centro comercial. Não tem muito a ver com o que fazemos no Pigmeu. É bom estarmos fora disso e termos um espaço que é nosso e é mais tranquilo, mas, do ponto de vista puramente económico é melhor estar lá dentro.

Os turistas vêm ao mercado da Time Out, não vêm ao Mercado da Ribeira. Este lado do mercado tradicional infelizmente ficou muito mal integrado com o mercado da Time Out. Há um problema nos mercados tradicionais (que honestamente não sei se é por opção dos vendedores): continuam a fechar às 14h30. Temos este cenário de mercado fechado e vazio à tarde. Para além disso, aqui os vendedores não podem, como existe no Mercado de Alvalade, por exemplo, vender um sumo de fruta ou fruta fatiada — medidas que se têm aplicado em vários mercados municipais para combater o desperdício. Não podem porque a Câmara tem um contrato com o mercado da Time Out que não permite esse tipo de coisas. Portanto, este mercado vive da venda direta a restaurantes, cada vez menos pessoas vêm durante a semana. Ao sábado temos, sim, pessoas a visitarem o mercado tradicional, a comprarem peixe, legumes, carne e aí é bonito de ver este mercado com mais vida. O potencial é muito maior do que temos neste momento.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Este contrato do Time Out Market com a Câmara também o afetou. O que aconteceu exatamente?
Houve uma cessão da loja do Freixo do Meio para nós diretamente. Nós ficámos exatamente com a mesma licença que eles tinham, só passou para o nosso nome. É uma licença de mercearia biológica com cafetaria biológica, tem explicitamente escrito ‘consumo no local’. Fizemos o investimento, montámos uma secção de charcutaria, cafetaria com pequenas sanduíches e algumas coisas para picar aqui e a Câmara Municipal veio falar connosco dizendo que não podíamos servir bebidas nem comida. Porquê? Ninguém conseguia explicar. Depois percebemos que há um contrato entre o Mercado da Time Out e a Câmara que diz que, para além da Time Out, só as lojas anteriores poderiam ter consumo no local. No caso de uma nova loja, a Time Out teria prioridade. A Time Out foi ter com a Câmara e a maneira da Câmara tentar resolver foi tentar proibir-nos.

Mas o Pigmeu na Ribeira é tecnicamente uma nova loja, havendo a cessão?
Não somos uma nova loja, mas mesmo que fôssemos, isso é um problema entre a Time Out e a Câmara. A Câmara passou-nos uma licença que tem explícito o que podemos fazer e depois tentou reduzir o âmbito dessa licença. Não temos nada a ver com o contrato que a Câmara fez com a Time Out. Aliás, dizemos isto desde o início: se havia a condição de uma parte da nossa licença ser retirada, eu não teria investido o dinheiro que investi nesta loja, porque eu já sei que o negócio de mercearia biológica só por si não funciona aqui. Não podem é vir retirar direitos depois da licença estar dada.

Neste momento tem a licença até quando?
Penso que são 20 anos.

E em que ponto está esta situação?
Nós fizemos uma providência cautelar depois de termos passado um ano com a Câmara a tentar resolver isto a bem. Sentámo-nos várias vezes com os responsáveis e não sabiam explicar a que tínhamos direito ou não. Nisto passaram-se seis meses e eu a perder dinheiro, já com pessoas contratadas. Chegou a um pouco insustentável, fechei temporariamente para perder menos dinheiro e fizemos uma providência cautelar. O juiz concluiu que, em primeiro lugar, enquanto o processo estivesse em andamento, eu não podia ser impedido de fazer aquilo que me tinham dado o direito de fazer. Não podíamos estar a perder dinheiro até que o processo fosse resolvido. Esta é a minha leitura, mas o processo está em curso, vamos aguardar o seu desenvolvimento.

Portanto, reabriram há alguns meses e começaram a servir alguma comida.
Sim, o objetivo é sobretudo ser um espaço onde os locais possam ter um snack, provar uma charcutaria, beber um copo de vinho biológico. Neste momento estamos a fazer todas as quintas-feiras uma aula aberta com um produtor de vinho biológico. Queremos primeiro cativar este público mais gastronómico que se interessa por vinhos naturais, dá valor aos produtos de qualidade que temos na charcutaria.

Esse público gastronómico está aqui no mercado? Porquê fazê-lo aqui?
Não é o público que vem ao mercado e o nosso objetivo é trazer mais pessoas para o mercado tradicional. É como no Pigmeu [em Campo de Ourique]: estamos num bom bairro, mas a nossa localização é má. Levou anos para que as pessoas fossem de propósito ao Pigmeu. Aqui é exatamente o mesmo.

Como fez isso no Pigmeu?
Não sei bem. Foram muitas coisas diferentes: trabalhando melhor, com mais consistência, utilizando produto melhor, pensando mais profundamente sobre como aproveitar o porco de ponta a ponta. O pessoal da indústria — chefs de cozinha, sommeliers, empregados de mesa — foram essenciais, eram os primeiros a interessar-se pelo que fazíamos. Recomendaram-nos a outras pessoas e faziam a coisa mexer até chegar ao ponto de hoje: temos uma base de clientes, um negócio sustentável. Não é um excelente negócio, mas é sustentável.

"Ninguém no Pigmeu tinha desmanchado um porco na vida. Fui ver vídeos ao YouTube, liguei a um talhante. Um dia chegou meia carcaça para testarmos e não correu assim tão mal. Hoje, todas as semanas recebemos meio porco"

Começaram como casa de sandes e passaram progressivamente a um restaurante mais gastronómico, 100% biológico e que utiliza o porco de uma ponta à outra. O que é que motivou estas mudanças?
Foram questões ideológicas: encaminhar o negócio para aquilo em que acreditamos. No início, os clientes usavam as sandes como mais um petisco e isso levou-nos a ter mais petiscos e menos sandes. Alterou a ideia inicial da casa de sandes e abriu a porta à criatividade. Há também a questão da delicadeza do nosso trabalho, porque usar miudezas — que usamos desde o início — é difícil. Dez por cento das pessoas vai sair de casa a pensar “o que me apetecia hoje era uma mioleirazinha” ou “está mesmo a apetecer uns túbaros”. Ao início afugentávamos muita gente, mas fazermos uma cozinha mais delicada e cozinharmos as miudezas de uma maneira diferente do usual converteu muita gente às miudezas. As pessoas experimentavam e traziam outras e isso funcionou muito bem.

Porquê essa devoção às miudezas? Há uma secção da carta só para elas.
Faz parte de uma lógica de consumo de carne mais consciente que com o tempo se foi instalando. Queríamos servir miudezas porque gostamos delas e porque é uma coisa realmente interessante e desafiante de trabalhar. Cada vez é mais difícil encontrá-las na cidade. A certa altura percebemos que era a estupidez, numa altura em que se fala de consumir menos carne, as miudezas serem lixo — na melhor das hipóteses, ração para cão. Passámos então a ter sempre um terço do menu com vegetais, um terço com miudezas e um terço de cortes de carne. Isto permite comer uma menor quantidade de carne, carne de melhor qualidade e parar de deitar coisas ótimas para o lixo.

Daí um dos vossos motes: o porco do rabo ao focinho. Como podem garantir que é isso que fazem?
Ao fazer a conversão para o 100% biológico, queríamos trabalhar com carne de animais criados soltos no montado e, depois de visitar com o Freixo do Meio e trabalhar com produtos da horta deles, queríamos também trabalhar com a carne, só que o valor era impossível. Comprávamos à peça — quando precisávamos de cachaço, comprávamos cachaço, quando precisamos de perna, comprávamos perna. Servíamos as várias partes do porco, mas não em proporção à sua anatomia, como fazemos hoje. A solução que o Freixo do Meio arranjou foi vender-nos o porco inteiro e assim fazer um melhor preço.

Qual foi a reação à ideia de desmanchar um porco inteiro no restaurante?
“Que cool, nós a desmanchar um porco.” Mas ninguém no Pigmeu tinha desmanchado um porco na vida. Fui ver vídeos ao YouTube, liguei a um talhante. Um dia chegou meia carcaça para testarmos e não correu assim tão mal. Hoje, todas as semanas recebemos meio porco.

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E conseguem realmente manter essa proporção anatómica do porco?
Uma das principais queixas dos clientes é essa. A cabeça esgota muito rápido. Fica dividida em três, nós salgamos, cozemos, desmanchamos toda a carne das bochechas, prensamos contra a pele e depois grelhamos — a pele fica estaladiça. É muito boa e há pouca quantidade. As pessoas adoram as costeletas do cachaço e do lombo, são peças que as pessoas querem sempre muito e queixam-se se não há. A perna vai quase toda para bifanas e croquetes, além do pernil. Às vezes fazemos uma porchetta com a barriga ou a barriga curada… fazemos também a papada curada.

Quantas refeições dá esse porco?
Umas 300 ou 350 pessoas. Quando as pessoas se sentam no Pigmeu, vem o pão, a manteiga e os pickles, depois um snack — croquetes, pastéis, torresmos do rissol —, depois entra-se na secção dos vegetais, depois miudezas — coração, sarrabulho, iscas. A última parte é o corte do dia. Estamos a falar de peças caras e boas, uma costeleta de 250 gramas, depois de seca e maturada, vale 25€. É generosa mas cara e as pessoas dividem por duas, três ou quatro pessoas. A quantidade de carne que se consome no Pigmeu nunca é muito alta. A peça de carne em si é uma pequena parte da refeição.

Perde clientes quando sucessivamente diz que já não tem determinado prato?
Sim, há gente que nunca mais volta. Nós explicamos e quem não compreende aquilo que estamos a fazer ou não gosta, não volta. Nós aceitamos isso.

Diz isso com alguma tranquilidade… não precisa dessas pessoas para trabalhar?
Preciso dessas pessoas para trabalhar, agora… o nosso negócio não é para ser necessariamente o melhor negócio do mundo. É para fazer aquilo que gostamos e manter valores em que acreditamos: o consumo sustentável de carne, uma carne de boa qualidade. Para isso temos de comprar o porco inteiro e utilizá-lo de ponta a ponta. O Pig é um sítio para passar pelo menu e ir escolhendo pratos, partilhando, comer um bocadinho de tudo. Há mil outros sítios onde podem comer um nacão de carne. Grande parte das pessoas percebe isso e gosta. Pode haver muita gente que ache o preço alto, porque não é um restaurante barato… não é toda a gente que compreende o valor de utilizarmos produtos tão bons ou melhores do que os estrela Michelin.

Pensando fora do âmbito da restauração, vê o preço da carne de qualidade, biológica e produzida eticamente, tornar-se democrático?
Acho que essa democratização vai existir mas é por via de grandes empresas que fazem uma certificação biológica e que por vezes não têm as melhores práticas noutros aspetos. Essa democratização do biológico está em curso, mas encabeçada por multinacionais.

Quando pergunto sobre produtos éticos não penso apenas no biológico. O biológico pode ser uma monocultura, que é nociva para os solos, por exemplo.
Acho que o produto de pequenos produtores não se consegue democratizar porque é difícil escalar a qualidade. Há muito mais custos para produzir eticamente no seu todo — para a pessoa que trabalha no campo, para o meio ambiente à tua volta, a cadeia de logística. A única vantagem para estes produtores ter é um preço um bocadinho mais alto. Estes produtores fazem eles próprios tudo… se fossemos fazer a matemática das horas, aquela pessoa ainda não está a receber o suficiente para o trabalho que tem. O produto bom eu não acho que tenha de ser democratizado, o produto sem venenos, sim.

"Os portugueses fogem aos vegetais, fogem às miudezas. Com as miudezas há pessoas que dizem logo "ai que nojo". As pessoas são bem educadas em todos os pontos e depois falam de comida nestes termos, o que para mim é um bocado assustador... "

Qual é a diferença?
Todos temos direito a ter alimentos limpos, livres de herbicidas e pesticidas, comida segura e acessível — não só no preço, mas também do acesso. Às vezes a acessibilidade não é fácil… encomendar num site, ir a um ponto de recolha buscar… tudo isso é difícil.

Se falamos de produto sem herbicidas e pesticidas, os supermercados em geral já têm oferta.
Exato, essa democratização está a ser encabeçada por grandes indústrias alimentares que vão tomar conta do mercado, que se apropriam de certificações biológicas sendo monoculturas danosas para os solos. Alugam terrenos, plantam intensivamente em modo biológico e depois deixam aquilo para trás. Acredito mais em trabalhar com pessoas que conhecemos, que sabemos como produzem e com quem partilhamos valores.

Pelo que diz, as pessoas de baixo rendimento ficam condenadas a um produto danoso em algum momento da sua produção.
Em Portugal, ficam. Há várias iniciativas no mundo que têm tentado democratizar esse alimento. O MST no Brasil é um dos maiores produtores biológicos daquele país e consegue produzir o arroz mais barato do mercado. Quando o preço do arroz foi especulado eles disseram “não, custou x, vamos vender a x+1”. Há projetos como o Mocotó, também no Brasil, que tem um restaurante e ajuda pessoas carenciadas com cestas de agricultura familiar e produtos biológicos. Mas para isto é preciso uma escala maior, acho muito difícil que aconteça em Portugal. Pessoalmente, em casa, não abro o frigorífico e tenho só a melhor carne, o melhor peixe e vegetais. Não… temos produtos ótimos nos mercados e que não são biológicos, mas que são de agricultura familiar. A questão é que se mistura tudo… o que está na etiqueta é se é produzido em Portugal ou não. Quem produziu? Uma grande empresa ou agricultura familiar?

Comprar produtos de agricultura familiar tem a implicação na sazonalidade de que se fala. Pratica-se realmente?
A sazonalidade quer dizer que durante o inverno só vamos comer alfaces, nabos, couves, nabiças, mais couves. É a sazonalidade que ninguém quer. É difícil as pessoas cozinharem todos os dias em casa com vegetais assim. Nem o supermercado mais sustentável do mundo tem só as coisas da estação. Mas se comermos com a sazonalidade vamos ter o produto mais barato e nessas coisas o biológico é mais competitivo. Sobre carne e peixe, a única forma de comer bom produto e gastar menos é comer menos. Se fores rico, fazes o que queres, podes comer carne de agricultura regenerativa todos os dias. Sei, por experiência própria, que no dia-a-dia não é fácil. Cada vez cozinhamos menos, estamos mais dependentes de aplicações de entrega, fazemos as compras em cima da hora, temos os frigoríficos vazios, não compramos quando está em época para conservar… não dá, ninguém tem esse tempo. Para fazer isso era preciso voltar atrás, fazer preparações, fazer conservas. Isso aconteceu porque as mulheres estavam fechadas na cozinha e felizmente já não estão.

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Afinal, esse trabalho tinha um valor económico que não é reconhecido.
Exatamente. Não podemos achar que vamos cozinhar como uma mulher que trabalhava dez horas por dia em casa para a família.

Há vários relatórios e organizações que apontam o vegetarianismo e a redução drástica no consumo de carne como uma medida individual eficaz no combate às alterações climáticas. O relatório de 2019 do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC) da ONU é um exemplo. Não sente uma contradição em ter um restaurante focado no porco e falar de sustentabilidade?
Não. No Pigmeu trabalhamos produtores que criam animais — não só porcos, mas cabras, ovelhas, vacas — soltos e que fazem parte de um ecossistema vivo de floresta. É agricultura regenerativa e isso significa que os animais vão trabalhar os solos, trazer mais fertilidade, sequestrar carbono no processo. É carne que traz um benefício para o ecossistema em causa. Há produtores em ecossistemas de montado ao longo do país a fazer inovações que são exemplos mundiais de pecuária sustentável. Há também a questão das partes do animal que vão para o lixo. Nós não deitamos a gordura fora, nós cozinhamos com banha, aceitamos que parte da nossa carne é gordura, mas uma gordura muito especial — tem 59% de ácido oleico e muito dela é gordura insaturada.

A nossa missão é também fazer com que as pessoas deixem de objetificar a carne. As pessoas têm de perceber que estão a comer um animal que foi sacrificado. Se todos pensarmos nisto, vamos ser todos um bocadinho menos hipócritas e comer menos carne. Há pessoas que não querem ser vegetarianas, mas também não querem pensar muito sobre o assunto. O facto de servirmos miudezas puxa sempre por esse lado de não objetificar carne porque se nós vemos um cérebro na mesa, comparamo-nos com o animal. Com um bife não.

Todas essas questões seriam facilmente solucionáveis deixando de comer carne. Porquê investir no porco e continuar a servi-lo num restaurante?
Há uma ligação cultural em Portugal. Preservar essa cultura gastronómica em torno do porco é uma das coisas que queremos fazer. Tentamos ativamente resgatar as tradições em torno do porco, visitamos diferentes pontos do país para saber como as coisas eram feitas — e já é difícil, estamos à beira da extinção, muito receituário vai perder-se.

Apesar dessa pesquisa, a vossa cozinha não é tradicional. Como é que essa informação aparece no prato?
Tem muito mais a ver com o estilo de apresentação. Podemos não apresentar de maneira tradicional, mas queremos que nossa comida tenha sabor português.

Em 2014, quando abriram, o turismo em Lisboa estava a crescer e entretanto explodiu. Entre miudezas e afins, um turista no Pigmeu sofre?
Por acaso, não percebo porque não sofrem. É incrível. As pessoas entram dispostas a tudo — “manda vir o que tu quiseres”. Comem de tudo.

Então sabem ao que vão.
Acho que sim, e isso é importante.

Mas os portugueses também, não?
Com os portugueses às vezes ainda acontecem alguns enganos, porque… o que é ser um restaurante de porco?

Bifanas?
Um secretozinho, uma presa, um lombo, feijoada…

E ainda por cima no Pigmeu não há muitos enchidos.
Pois. Estamos a tentar fazer os nossos. Já fizemos uma morcela e queremos fazer mais em parceria com produtores. Os portugueses fogem aos vegetais, fogem às miudezas. Com as miudezas há pessoas que dizem logo “ai que nojo”. As pessoas são bem educadas em todos os pontos e depois falam de comida nestes termos, o que para mim é um bocado assustador… A comida portuguesa de restaurante como um todo encaminha-se para uma papa mole, ou seja, carne tenra, não é preciso morder, não há texturas difíceis, é tudo sem graça… mas pronto, as pessoas querem isso.

Dito tudo isto, o Pigmeu é um projeto de ativismo?
Eu acho que não, somos pouco ativos no nosso ativismo. Temos o lado político de seguir aquilo em que acreditamos, mas não conseguimos sempre ter tempo para fazer melhor comunicação sobre estes temas.

Mas isso é um objetivo?
Eu gostava muito, mas não dá para tudo. Para seres ativista tens de praticar e partilhar, há um lado de educação e evangelização que vamos fazendo como conseguimos. Na nossa maneira de comprar os nossos ingredientes e cozinhar no nosso restaurante somos ativos.

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