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Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Miguel Saraiva: "As pessoas negligenciaram aquilo que é mais caro nas suas vidas, que é uma casa"

Ao cumprir 25 anos da empresa-ateliê a que dá nome, o arquiteto Miguel Saraiva fala da habitação em Portugal, dos projetos que o marcaram, do ordenamento do território e do mercado internacional.

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Miguel Saraiva é o mais bem sucedido arquiteto português, aquele que mais obra constrói e o que financeiramente mais dinheiro tem encaixado na sua empresa-ateliê. Uma estrutura que conta com 120 pessoas e um volume de negócio que só em Lisboa corresponde a 1,4 mil milhões de euros em obras. A celebrar 25 anos, a Saraiva & Associados lança uma revista e dois livros, cria uma academia e “uma máquina de crescimento”, que vai admitir dez estagiários por ano. A extravagância maior é a conceção de uma fonte digital a partir da letra do arquiteto. Ele, que quer morrer como um génio, falou ao Observador da profissão e de construção, de traço e de engenho, da internacionalização, do ordenamento do território, do país e do estrangeiro, e da transformação que a pandemia trouxe ao conceito de viver entre quatro paredes.

Colômbia, Cazaquistão, Brasil, Argélia, Vietname, México, Singapura, Suíça. Porquê a internacionalização? Portugal não lhe chegava?
Em 2005/2006 já tinha uma dimensão considerável para o nível de encomenda que existia em Portugal e que dificilmente se perpetuava no tempo. Estamos na época do investimento público em grande escala. A infraestrutura tem uma característica que puxa pelo investimento privado no sector da construção civil, por isso tínhamos muita encomenda. Tive a perfeita consciência que esse nível de encomenda não era viável continuar num país com a nossa dimensão e características. Depois, tive a sensibilidade de que ir para fora obrigava um tempo de aprendizagem. Por isso fui na primeira fase por opção, mas rapidamente se transformou numa necessidade.

Qual foi o primeiro país para onde foi?
Defini a internacionalização de duas formas. Primeiro, na forma de exportação, ir aos países e captar encomenda para produzir aqui. Rapidamente compreendi que não ia ter sucesso. A Europa estava em crise, temos pouca tradição de vender serviços lá fora, por isso não somos reconhecidos no mercado. Optei por bater a concorrência europeia nos países onde estava enraizado com ateliês próprios.

Foi uma aventura.
Passei a ter, além da Saraiva & Associados, em Portugal, várias empresas de direito local e o primeiro sítio foi a Argélia, onde percebi logo que só podia deter de uma coisa que era minha a 49%, porque a lei não permitia ter a maioria do capital.

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Metade teria que ser do local?
Exatamente. Isso foi uma aprendizagem a vários níveis, desde o campo humano à prática profissional.

Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Miguel Saraiva: "A escala é a coisa que mais motiva os arquitetos"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Porquê a Argélia?
Tive um convite de uma construtora portuguesa. A Argélia tinha saído de uma crise política e financeira muito grande, não tinha dívida pública. Estamos a falar do maior país de África, 50 milhões de habitantes, sem infraestruturas. Havia, pois, uma necessidade enorme de infraestruturar o país e criar habitação para as pessoas. As construtoras portuguesas, que foram sempre um veículo de exportação por tradição, gostavam de levar a engenharia e a arquitetura portuguesas. Tive o tal convite para ir, pela Edifer, a Orã, a segunda maior cidade da Argélia. Fui muito renitente a fazer o contrato com o argelino e não com as construtoras portuguesas. Mas a sorte esteve do meu lado, o argelino pagou-me sempre e as construtoras já não existem. Entrei com o pé direito. Fiz um trabalho enorme, âncora no mercado argelino e âncora para o ateliê. Deu-nos uma grande experiência no mercado local. Ao fim de 12 anos, somos tão conhecidos na Argélia como em Portugal, sabendo, no entanto, que o nosso projeto tem muito mais qualidade do que a obra construída.

Como assim?
A mão de obra é pouco qualificada e a arte de bem fazer não é uma coisa que assista aos argelinos pelo menos na construção.

Isso é dececionante, ou não?
Completamente dececionante. Mas, pondo na balança e para quem tinha 80 arquitetos na altura da crise financeira e teve a oportunidade de exercer a profissão noutros territórios, noutras culturas e que foi recebido de braços abertos como uma mais valia também na formação dos arquitetos argelinos, tenho que ser muito agradecido. Agora que há essa desilusão para quem desenha e tem a preocupação de desenhar bem, com conceito e com qualidade, há. A obra não refletir esses princípios, é uma dor. Não tinha trabalho em Portugal e a Argélia permitiu-me passar entre 2008 e 2015 com 80 pessoas aqui dentro.

Mantém os 80?
Aumentei para 120. Saí bem da crise. A internacionalização permitiu-me manter a prática profissional. Pude continuar a desenhar, continuei a pensar na arquitetura. Essa continuidade de trabalho deu-me a possibilidade de, quando voltou a haver encomenda em Portugal, 2014, 2015, estar muito bem preparado e estar muito bem dimensionado para essa encomenda.

"A arquitetura só tem interesse se responder a necessidades. Ninguém constrói um edifício para não o ocupar, como fazem no Médio Oriente. A arquitetura, respondendo a programas, existe para ser habitada e vivida. Nós arquitetos, o que queremos é desenhar para construir, construir e servir."

Entretanto já estava em mais países…
Sim, fizemos uma internacionalização para outros países, uns com muito sucesso, outros sem sucesso nenhum.

Quais é que não teve sucesso?
Não tive sucesso na Ásia. Lancei-me de um país de dez milhões de habitantes para o maior país do mundo, a China. A maior dificuldade que tive foi a adaptação cultural ao país e ao negócio e à própria arquitetura. São países que têm uma mão de obra muito disponível e, apesar de na arquitetura serem pessoas educadas sem criatividade, são tecnicamente muito fortes. Foi um passo completamente desproporcionado, mais emocional do que racional, e foi um passo que teve uma única virtude, perceber onde estávamos na arquitetura, ou seja conhecer o mundo concorrencial que a arquitetura tem, que é enorme. Estava lá toda a gente. Lembro-me que fui convidado para um concurso internacional, onde estavam os 15 maiores gabinetes do mundo, e cada um de nós tinha uma sala de 50 m2 para expor o seu trabalho. Eu tinha uma maquete de 50×50 cm e três painéis! Chorei nesse dia.

Destroçado?
Virei-me para o arquiteto que ainda hoje está comigo e que é o administrador da Saraiva & Associados, Luís Barros, e disse-lhe que tínhamos que sair dali: “Não temos escala para isto, não temos know how, não temos dinheiro para isto. E estamos num estágio da nossa vida profissional e criativa que está longe daquilo que é a competitividade do mundo da arquitetura”.

Loures, 2012

Hospital Beatriz Ângelo

“Tive muito prazer em fazer o Beatriz Ângelo, que acho que é um belíssimo hospital e muito bem desenhado, bem pensado, muito humanizado.”

Não deixa de estar em constante competição, sendo um dos maiores ateliês da Península Ibérica.
Sim.

É uma escala mais humana?
Muito mais humana, tem uma escala de desenho completamente diferente. A escala é a coisa que mais motiva os arquitetos.

“A arquitetura só tem interesse se responder a necessidades”

Qual é o maior desafio da arquitetura?
É vencer a escala. Quando chego à China, pedem-me um portefólio de arranha-céus. Tinha três ou quatro edifícios desenhados com dez, 12 pisos, em diferentes geografias, ou em construção ou já construídos. Eles disseram que não queriam prédios, queriam arranha-céus. Isto é demonstrativo do que nós desenhamos e do que é a escala portuguesa, a escala da Europa e a escala de um país como a China. Esta deslocalização do ateliê para a China foi um desastre, mas ensinou-nos imenso.

Cá, temos um prédio de 20 ou 25 andares em Lisboa e toda a gente critica a altura do prédio…
É muito assim porque queremos construí-los nos sítios errados. São atos isolados e pouco estruturados. Daí a polémica e bem. Acho que podíamos desenvolver planos bem pensados de como a cidade podia crescer com uma arquitetura contemporânea que respondesse a novos desafios. Insistimos em penetrar em territórios consolidados, com um valor histórico enorme e onde a rutura através da construção vertical não é bem aceite nem pelo próprio território, quanto mais pelas pessoas.

Qual o interesse da arquitetura?
A arquitetura só tem interesse se responder a necessidades. Ninguém constrói um edifício para não o ocupar, como fazem no Médio Oriente. A arquitetura, respondendo a programas, existe para ser habitada e vivida. Nós arquitetos, o que queremos é desenhar para construir, construir e servir.

Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"A arquitetura tem uma escala que não é tangível. Só é tangível para o humano, porque ele tem tendência a criar tetos"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Essa é a sua definição de arquitetura?
Não sei se existe uma definição própria para a arquitetura. É tão abrangente e responde, dentro dos mesmos programas, a situações tão diferentes, consoante a sua geografia, que quase se torna infinita.

É sobretudo multidisciplinar.
Talvez seja das profissões que toca, de longe, em mais áreas e recebe mais inputs de diferentes áreas. Num projeto, só a nível de segurança, recebemos quase 800 inputs. Se a segurança é isso, imagine tecnicamente o que é. E funcionalmente? O programa funcional de um hospital… muitas vezes designado por médicos, e em que nós consubstanciamos as ideias escritas e faladas em desenho, é enorme. Aquilo no fim tem que funcionar e está ao mesmo tempo a responder a uma forma de habitar.

Ao relevo, ao clima…
Além da questão morfológica e climática, são tantos os fatores que acho que não há uma definição para arquitetura. Há quem diga que é um abrigo. Para mim, é muito mais do que isso. Não pode ter uma definição única, tem várias, que são aplicadas consoante os momentos. A arquitetura tem uma escala que não é tangível. Só é tangível para o humano, porque ele tem tendência a criar tetos. E é tangível em diferentes perspetivas. É tangível para mim como homem que desenha, é tangível para o homem que constrói, para o promotor imobiliário, para o político, funcionando muitas vezes como veículo político de afirmação de uma determinada época e sociedade. É tão abrangente que é utilizada por toda a gente. É das disciplinas mais completas, principalmente no que diz respeito aos profissionais liberais. Acho que somos os que temos o campo mais aberto e mais disponível para receber outputs para a nossa profissão.

Os médicos têm especialidades…
A arquitetura não chegou a isso mas tem tendência a chegar, não no desenho, como peça de arquitetura, mas sim na sua funcionalidade. Uma coisa que a Saraiva & Associados criou, devido à sua dimensão e ao seu corpo técnico altamente qualificado, foi o termos hoje pessoas que desenham hospitais e sabem de programas funcionais hospitalares, que sabem de justiça, que sabem de habitação, que sabem de hotelaria, ou seja, começámos a criar especialização dentro do sector.

"Nos anos 80, os preços eram tão altos que todas as casas com varandas foram ocupadas com marquises. Houve um crescimento orgânico da casa para a varanda, porque faltavam divisões para a dimensão da família."

Agiliza o processo quando o projeto chega?
Torna-o mais profissional. Quando está a responder a um programa requerido por um hoteleiro, está a falar com um arquiteto que sabe o que é um hotel. Isso não define a arquitetura, mas é um passo muito importante para a qualidade do objeto arquitetónico. O que é que me interessa ter um objeto muito bem desenhado que não responde de uma forma perto do perfeita a uma funcionalidade? Não desenho um hospital da mesma maneira que desenho um hotel ou um edifício de habitação.

Isso leva-me àquela pergunta clássica de que se é mais fácil desenhar uma casa ou um hospital?
Mas é uma belíssima pergunta. Acho que é mais difícil desenhar uma casa.

Todos os arquitetos respondem que é uma casa. A criatividade é maior, é isso?
Todos nós habitamos. No entanto, todos nós temos os nossos próprios hábitos de habitar. A adaptabilidade do arquiteto ao programa funcional habitar varia de pessoa para pessoa. Daí termos que responder a programas que são muito específicos. Aqui neste escritório habitamos, mas habitamos todos de forma diferente, tendo sido educados na mesma cultura. Imagine mudar de cultura, de sociedade, de geografia. O programa habitação responde de certa forma a desafios culturais. Uma pessoa em Bogotá não habita da mesma forma, e chama-se casa na mesma, do que um português e mesmo um espanhol. Um francês tem as casas de banho diferentes das nossas, e não concebe que a máquina de lavar a roupa esteja na cozinha, por exemplo, por isso mete-a na casa de banho social. Atribuem-se subfactores diferentes a funcionalidades que na base são iguais. É muito interessante. Portanto, acho que é muito difícil desenhar um hospital, mas para quem é expert na matéria, é muito mais fácil.

Responde a um programa funcional muito específico.
Está muito estudado e não é tão emocional como o da casa.

“Hoje vendem-se cozinhas com dois quartos”

A pandemia mudou a nossa forma de estar dentro do espaço?
Mudou a todos os níveis. Hoje os espaços têm que ser mais humanizados e isso quer dizer que têm que ser mais confortáveis. Para isso têm que ser mais arejados e isso implica menos gente por m2. Aquela densidade dos escritórios que estávamos habituados a ver em Wall Street nunca mais vai voltar, felizmente. No habitar, as pessoas estão a ser mais exigentes. A criação da varanda grande e não a varandinha só para o aspeto social, que acabou. Hoje em dia, a varanda é um elemento diferenciador e vai ser cada vez mais.

Lisboa, 2017

Infinity Tower

“Foi um desafio fazer uma peça diferenciadora e que tivesse um caráter de verticalidade, com o desenho de um trevo de três folhas visto de cima.”

Só agora é que as pessoas tomaram consciência de que a casa tem que ser confortável?
As pessoas negligenciaram aquilo que é mais caro nas suas vidas, que é uma casa. Negligenciaram-na e desconsideram-na. Foram obrigadas as desconsiderarem-na porque o preço da casa é muitíssimo alto. Nos anos 80, os preços eram tão altos que todas as casas com varandas foram ocupadas com marquises. Houve um crescimento orgânico da casa para a varanda, porque faltavam divisões para a dimensão da família. Isto só é reversível porque as pessoas consideram que a varanda é o último reduto de conforto numa situação extrema como foi a da pandemia.

A família também reduziu.
Sim, mas as casas também. Costumo dizer que hoje vendem-se cozinhas com dois quartos, que é esta coisa extraordinária da cozinha aberta. O cão agora também come na sala, já não come na cozinha porque ela não existe. Há um processo no habitar que é desconsiderado por quem o paga. E o nível de exigência de quem compra é muito baixo e versa essencialmente um aspeto de mobilidade. Temos a cidade tão desconectada que hoje escolhemos a casa pelo local onde é mais confortável logisticamente nós vivermos. E não pela casa em si, sendo ela a coisa mais cara que compramos na nossa vida e ficamos a pagá-la 40 anos. Não faz sentido nenhum. Acho que a pandemia veio aumentar o nível de exigência da casa e isso é muito positivo, porque aproxima o nível de exigência do comprador ao daquele que a vende. Havia um afastamento enorme e a pandemia está a aproximar os dois obrigatoriamente. Quem compra quer mais espaço, mas o metro quadrado é tão caro que as pessoas não conseguem, a não ser para a varanda. As pessoas não vão comprar mais casas para estarem lá dentro encerradas como num casulo, em que o conforto foi altamente negligenciado, principalmente porque começámos a trazer para dentro de casa uma data de funcionalidades que não tínhamos.

Não tínhamos escritório em casa e passámos a utilizar a sala…
Exatamente. Quando as pessoas são obrigadas a confinar três meses dentro de casa, perceberam que tinham uma bomba-relógio e não uma casa. O desconforto foi de tal ordem que as pessoas dificilmente vão conseguir apagar isso da sua memória.

Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Se comprarmos um carro e chover lá dentro, é o fim da marca. Mas comprando uma casa que custa dez vezes mais, no mínimo, e nos chover dentro da casa, somos tolerantes para com o vendeddor"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Quando pega num lápis agora para desenhar um edifício habitacional pensa nisso?
Penso 100% nisso, sou muito crítico em relação ao programa base que os meus clientes definem, luto imenso para eles alterarem alguns paradigmas que têm instituídos sobre a forma de fazer promoção imobiliária, tento acrescentar outros valores à habitação que vão para lá do habitar, como os amenities, as piscinas, a questão dos ginásios, as áreas de trabalho, acrescentar tudo isso em detrimento de outras áreas que havia nos edifícios que não eram de usufruto dos próprios, como a parte comercial. Hoje em dia, a parte comercial debaixo dos edifícios não vale rigorosamente nada. E os promotores estão a prescindir dessas áreas de venda para dar qualquer coisa ao consumidor final. E eu luto muito quando estou a desenhar no sentido de sensibilizar os meus clientes para esses aspetos. A boa qualidade de habitar é uma questão de saúde pública.

Porque é que continuamos a ter casas geladas no inverno e quentes no verão?
Não se compreende, com a legislação que existe. Devia haver uma fiscalização muito superior nessa área. Se comprarmos um carro e chover lá dentro, é o fim da marca. Mas comprando uma casa que custa dez vezes mais, no mínimo, do que o carro, e nos chover dentro da casa, somos tolerantes para com o vendedor. Há uma desproporcionalidade enorme do nível de exigência entre os dois paradigmas. Não é possível continuar a habitar da forma que habitamos.

E a construir, é possível continuarmos a construir da forma que construímos?
Construir principalmente de uma forma desgarrada do território, respondendo a necessidades habitacionais.

Falo não só da cidade, mas também da costa vicentina, por exemplo?
A Costa Vicentina cresceu com planos de pormenor, que tiveram 15, 20 anos a ser desenvolvidos. Por isso, foram muito escrutinados. É a minha opinião. Não há crescimento da Costa Vicentina sem planos. É muito difícil edificar naquele território que vai do Sol Troia até Sines, pelo menos, sem planos. Por isso, houve algum controlo. Hoje, as camas aprovadas no âmbito do turismo são metade das que havia programadas possivelmente no Estado Novo.

"Comparativamente ao sul de Espanha, não estragámos assim tanto o Algarve como dizemos. Não encontro uma Tavira no Sul de Espanha, Olhão, por muita deformação no crescimento que tenha tido, tem uma autenticidade única. Acho que o Algarve está hoje muito protegido, também."

As pessoas não têm essa ideia.
Na realidade, o processo democrático tem vindo a condicionar e a restringir a construção na costa vicentina. Agora, aquilo que vai ser construído é muito mais do que aquilo que existe. Mas se aquele território conseguir responder bem a estas infraestruturas que vão levar 40 a 50 anos a serem construídas, por questões de investimento, de procura, da vontade dos próprios promotores imobiliários – são territórios únicos que vão ser construídos e eles não podem pôr tudo ao mesmo tempo no mercado –, estará muito protegida. Está controlada pelas autarquias, está controlada pelas pessoas que a povoaram ao longo dos anos, muito ativas na sua defesa. E ainda bem, pois tem que se perpetuar com a sua pegada ecológica igual àquela que tem tido.

E o Algarve? Sei que está a abrir uma delegação lá…
Estou a abrir uma delegação lá para estar mais perto das variadíssimas obras que tenho lá e que são de alguma escala. Acho que o Algarve está muito mais protegido do que esteve, está a responder em termos de encomenda e de desenvolvimento urbano, e de turismo, a territórios que já estavam programados para ser aquilo que vão ser. E, por isso, não está a haver apropriação de novos territórios.

Estragámos o Algarve nos anos 90?
Comparativamente ao sul de Espanha, não estragámos assim tanto o Algarve como dizemos. Não encontro uma Tavira no Sul de Espanha, Olhão, por muita deformação no crescimento que tenha tido, tem uma autenticidade única. Acho que o Algarve está hoje muito protegido, também. Está sob observação, debaixo de um grande escrutínio pelas pessoas que lá vivem e pela geração de novos autarcas que está muito sensível a isso. O Algarve precisa de reabilitação urbana profunda. Precisa de uma visão macro em toda a região. É um território que podia estar ligado por um trem de superfície de grande qualidade, que tornaria o próprio Algarve num território único, onde as cidades são aldeias, trazendo-as um bocadinho à escala real e infraestruturando-o por forma a captar investimento para além do turismo. Faro, que tem um aeroporto internacional, tem uma apetência fora do normal para captar empresas de serviços.

Lisboa, 2014

Sede da Polícia Judiciária

“São 80 mil metros de construção, 40 mil acima, 40 mil abaixo e não sendo estacionamento, mas sim áreas técnicas. Devia ser um edifício institucional, sério, robusto, ter presença pela sua volumetria, que tentei fragmentar.”

É das poucas pessoas a dizer isso.
O Algarve tem uma apetência natural pouco explorada. Tem cidades com história, a única forma de fixar população diversificada, de diferentes geografias. As cidades cresceram nos melhores sítios, porque é que vamos negligenciá-los? Têm 800 anos e não 40, têm uma história, dão-nos conforto, protegem-nos do frio, do vento… O Algarve como um todo podia ser a terceira grande cidade do país.

“Não concebo que um ‘broker’ receba 250 euros por metro quadrado e eu 25”

Como é que percebeu que queria ser arquiteto?
Eu podia ser um homem da Renascença. Acho que podia fazer qualquer coisa na vida. Gosto muito de trabalhar e de fazer bem as coisas pelas quais me interesso, tenho um nível de exigência muito grande comigo. Fui arquiteto por acaso.

E porque é que se manteve arquiteto?
Por dois motivos. Adoro a profissão, porque é muito desafiante e é muito abrangente. Sendo eu um irrequieto mental, essa abrangência é muito importante para somar ao meu desenho, e isso alimenta-me. Além disso, e em segundo lugar, no decorrer deste percurso de 30 anos, tenho como desígnio alterar o paradigma do arquiteto na sociedade portuguesa. E tenho um desafio enorme. Criar maior consideração pelos diferentes players sobre o arquiteto. Não concebo que um broker receba 250 euros por metro quadrado por uma casa que vende e eu que a desenho e tenho uma responsabilidade civil receba 25 euros por metro quadrado. Tem que haver aqui um reconhecimento por parte da classe. E tenho outro desígnio dentro deste desafio que é o reconhecimento entre os pares. Nós desconsideramo-nos muito uns aos outros. E dá-nos imenso jeito esta desconsideração entre todos nós, porque criamos uma relação informal que ninguém se fixa a nada. Numa profissão que era 100% liberal e que hoje de liberal deve ter 15 ou 20%, todos os outros são empregados de alguém, temos que criar uma base sólida. E isso somou-se ao meu ato de projetar: criar uma profissão com dignidade, onde há uma relação de compromisso entre as partes, duradoura, e onde há possibilidade de que o meu ateliê se perpetue para além da minha existência. Por isso, desconsiderar a minha presença ao longo do tempo em detrimento de um conjunto de pessoas que pensam a arquitetura de uma forma coletiva, não é uma cooperativa, e que tornam o produto de arquitetura mais bem pensado, mais bem desenhado, e que sirva melhor os seus propósitos.

Entrevista com o arquitecto Miguel Saraiva, responsável por diversas obras de arquitetura e urbanismo, tanto em Portugal, como no estrangeiro, nomeadamente o Campos de Justiça de Lisboa e o do Porto, o edifício sede da Policía Judiciária, o Aeroporto de Guarulhos no Brasil, entre outros. A entrevista foi realizada no seu Atelier, "Miguel Saraiva & Associados", onde trabalha com a sua equipa. 23 de Fevereiro de 2022 Miguel Saraiva & Associados, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Voltar à Ordem [dos Arquitetos] não está nos meus planos. Acho que posso dar mais à classe fora dela"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Isto não é uma candidatura à presidência da Ordem dos Arquitetos?
Não, fui vice-presidente da Região Sul aos 28 anos, adorei estar na Ordem, foi importantíssimo para conhecer a profissão, para ter uma análise crítica sobre o exercício da profissão, para perceber qual é o papel da Ordem na sociedade e na classe, mas voltar à Ordem não está nos meus planos. Acho que posso dar mais à classe fora dela.

Designadamente na luta por este novo paradigma?
Sim.

E criar a S+A Academy, também? O que é exatamente essa academia que quer criar dentro do ateliê nesta viragem dos 25 anos de existência?
Tenho que ter um processo de formação contínua dentro do ateliê, porque quero fixar os melhores arquitetos aqui dentro. E porque quero partilhar com quadros internos e externos a experiência da arquitetura e do planeamento urbano. E porque quero levá-la para fora de portas. E somar a isto outras disciplinas. A academia tem dois propósitos. Devolver a sorte que tenho tido na arquitetura.

Partilhar o sucesso?
Sim, vou partilhar o sucesso. Acho isso essencial na sociedade. Não é que tenha ganhado muito, mas intelectualmente ganhei imenso. Mas também ganhei dinheiro, não há vergonha nenhuma em dizê-lo, trabalhei imenso para o ganhar.

"Quando faço reabilitação tenho lá a janela desenhada… tenho um diálogo com o edifício existente que me dá a escala e até me permite corrigi-lo. Tecnicamente é mais difícil reabilitar. Mas não confundamos a técnica com a arte."

O volume de negócios está em alta…
É enorme comparativamente com o mercado português. Só em Lisboa temos 1.4 mil milhões de euros em obras. É a verdadeira bazuca da cidade de Lisboa. Tenho que devolver uma parte disso à sociedade e vou devolvê-lo na minha sociedade. A S+A Academy é o primeiro passo para isso.

É uma escola a funcionar no ateliê?
É um prolongamento da prática profissional com a mistura do mundo académico e pontes com experiências de diferentes disciplinas. Trazer também, de uma forma mais franca e aberta, a engenharia à arquitetura, trazer a escultura, a pintura e outras artes, a tecnologia e a sustentabilidade. Não podemos viver hoje dentro do nosso próprio ateliêzinho longe de todos os outros. Ao fim do primeiro ano, vamos abrir a todos, aos organismos públicos, vamos romper com o paradigma de que o ateliê é só nosso. A Academia é um fator determinante para consolidar a Saraiva & Associados como uma marca, mas também como um conjunto de pessoas que pensam a arquitetura muito bem.

O que significa ateliê-empresa?
É uma empresa que tem o ateliê dentro dela mas que soma outras atividades como o design, a sustentabilidade, as artes, que não se esgota em si próprio. Temos cá dentro designers de interiores, designers gráficos, de equipamento. O Henrique Cayatte que é uma referência no design português é sócio da Saraiva & Associados.

É por isso que diz que pode oferecer arquitetura de A a Z?
Não. Isso é o facto da pessoa entrar aqui e poder comprar tudo o que quiser e que vai desde o desenho do edifício até ao desenho do lettering da entrada da porta.

Lisboa, 2018

"The Editory Riverside Santa Apolónia Hotel"

“Mantivemos as características base do edifício, até as portas de entrada dos quartos são as originais das entradas dos gabinetes. Houve um compromisso de restituir o valor arquitetónico ao próprio edifício.”

Diz que não faz gestão.
E não faço. Daí o ateliê-empresa que me liberta da administração e da gestão de contas. Tenho quem o faça por mim. E isso é uma conquista minha, do Miguel Saraiva pela Saraiva & Associados. O ateliê-empresa também é uma empresa muito mais profissional do sector. A grande diferença é que nós entregamos, entregamos com qualidade, entregamos no prazo definido e damos garantias de presença no mercado a la longue. Somos consistentes, damos garantias aos nossos clientes, damos-lhes serviço. E o serviço não se compara com a arquitetura. Uma coisa é o traço, que é aquilo que nos motiva, é aquilo que me faz levantar de manhã, às 7h, todos os dias com os olhos a brilhar. Some-se a isso o serviço, o entregar a tempo, dentro dos prazos, isso é uma luta constante da empresa. Estou a tentar provar que é possível manter o traço e a qualidade e conseguir prestar o serviço dentro do budget e do prazo.

“Tecnicamente [a sede da Polícia Judiciária] foi muito difícil e urbanisticamente ainda mais”

Qual foi dos seus últimos trabalhos aquele que o desafiou mais?
O que me desafiou mais emocionalmente, não tecnicamente, foi a Infinity, a torre que está a ser construída ao lado das Twin Towers, em Lisboa, na José Malhoa. Isto porque é uma zona de transição com as vias cá em baixo, o comboio e o Eixo Norte-Sul. E tem uns míseros 26 pisos! Foi um desafio fazer uma peça diferenciadora e que tivesse um caráter de verticalidade, com o desenho de um trevo de três folhas visto de cima.

A sede da Polícia Judiciária não foi um desafio para si?
Tecnicamente foi muito difícil e urbanisticamente ainda mais. São 80 mil metros de construção, 40 mil acima, 40 mil abaixo e não sendo estacionamento, mas sim áreas técnicas. Devia ser um edifício institucional, sério, robusto, ter presença pela sua volumetria, que tentei fragmentar. Também tive muito prazer em fazer o Beatriz Ângelo, que acho que é um belíssimo hospital e muito bem desenhado, bem pensado, muito humanizado.

"Quero dar à profissão ainda mais qualidade de desenho. Tenho construído muito e isso tem-me permitido também corrigir muitos erros e construir cada vez com mais qualidade, muito importante, passo a passo."

E a requalificação da estação de Santa Apolónia, cujo hotel acabou de inaugurar?
Adorei. É uma coisa extraordinária porque mantivemos as características base do edifício, até as portas de entrada dos quartos são as originais das entradas dos gabinetes.

E ouve-se os comboios?
Não. As janelas são muito boas, apesar de serem em madeira. E são feitas em Portugal. Houve um compromisso de restituir o valor arquitetónico ao próprio edifício.

Mas requalificar não tem o mesmo encanto que desenhar de raiz?
É muito mais difícil desenhar de raiz. Para mim, hoje, olhar para uma folha em branco é uma coisa angustiante. Erro muitas vezes a escala de tudo o que é uma componente de um objeto que é um edifício, quando o construo de raiz. Quando faço reabilitação tenho lá a janela desenhada… tenho um diálogo com o edifício existente que me dá a escala e até me permite corrigi-lo. Tecnicamente é mais difícil reabilitar. Mas não confundamos a técnica com a arte.

Por que obra gostava de ser lembrado?
Gostava de ser lembrado pela qualidade média/alta que trago à arquitetura portuguesa e não por uma obra só. Acho que a qualidade é média e o esforço que estou a fazer é trazer excelência a essa média. Não quero ser lembrado por uma obra, quero ser lembrado por uma carreira e por um conjunto de obras. Quero dar à profissão ainda mais qualidade de desenho. Tenho construído muito e isso tem-me permitido também corrigir muitos erros e construir cada vez com mais qualidade, muito importante, passo a passo. Não nasci um génio da arquitetura, mas o maior desafio que tenho é morrer como um génio da arquitetura.

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