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Russian President Mikhail Gorbachev
Mikhail Gorbachev cresceu marcado pela II Guerra Mundial. O pai foi para a linha da frente, a sua aldeia foi ocupada e durante dois anos não foi à escola.
Quando Estaline morreu, não chorou, mas foi ver o corpo do líder. Chegado ao dormitório, com os colegas, perguntou-se: "O que é que vamos fazer?"
A guerra no Afeganistão e o desastre de Chernobyl foram os primeiros grandes desafios da sua liderança. A perestroika e a glasnost as suas reformas estruturais.
A popularidade no Ocidente e a rivalidade com Yeltsin marcaram o seu período como líder. E o final, em que decidiu sair pelo próprio pé.
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Mikhail Gorbachev. O homem no arame

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Maio de 1985. A visita a Leningrado de Mikhail Gorbachev, eleito apenas dois meses antes secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, tem tudo para ser mais um evento cinzento e sensaborão. A princípio, tudo parece correr conforme as habituais práticas soviéticas: Gorbachev é recebido por burocratas vestidos de cinzento e jovens pioneiros de lenço vermelho ao pescoço e o seu primeiro ato é o de depositar uma coroa de flores num memorial da Grande Guerra Patriótica (II Guerra Mundial). Seguem-se as habituais visitas programadas a fábricas, escolas, hospitais. Tudo ensaiado ao minuto, sem sair do guião.

Mas não demora muito até Gorbachev mostrar que é diferente dos seus antecessores. Ao passar por uma pequena multidão que se juntou para tentar vê-lo ao vivo, o novo líder da União Soviética fura o protocolo e vai direto a ela.

“Sorriu e falou às pessoas sobre os seus planos para reativar a economia e melhorar os padrões de vida. Surpreendida com este compromisso assumido de improviso, uma mulher murmurou um cliché soviético: ‘Fique perto do povo e o povo não o deixará ficar mal.’ Gorbachev, que mal podia estender os braços no meio da multidão, respondeu com humor: ‘Mais perto não posso estar’. A multidão rompeu em gargalhadas — genuínas, não encenadas.”

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Mikhail Gorbachev, USSR, on a visit to East Berlin

O início do mandato de Gorbachev ficou marcado pela popularidade junto das multidões

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O episódio é contado na biografia mais completa do antigo líder soviético, escrita pelo académico norte-americano William Taubman, e corroborado por um relato da Associated Press escrito na época: “Os líderes soviéticos nunca são vistos na televisão a conversar com as pessoas da forma descontraída que Gorbachev parece ter adotado no primeiro dia da visita”. O discurso oficial feito em Leningrado — em direto e não gravado previamente, como era habitual fazer-se com Leonid Brezhnev — não foi de todo um corte com o passado; mas o tom era vivo e descontraído. “Viste aquilo?”, comentava-se no dia seguinte por todo o país, após a transmissão da reportagem sobre a visita ter passado no Vremya, o programa de televisão mais popular da União Soviética. Apenas dois meses depois de ter tomado posse, Gorbachev já deixava claro que não era um líder soviético qualquer.

A primeira coisa em que as pessoas repararam foi na forma de ele se comportar — mas não demorou muito até que Gorbachev demonstrasse que também pretendia levar a cabo reformas profundas numa União Soviética que definhava economicamente e conseguia competir cada vez menos com o seu rival da Guerra Fria, os Estados Unidos da América. Pretendia uma transformação económica (a perestroika) e uma abertura do discurso público (a glasnost). Com Gorbachev no poder, os soviéticos confrontariam os fantasmas do estalinismo, votariam no recém-criado Congresso dos Deputados do Povo, abandonariam o Afeganistão e entrariam numa época de relações positivas com o Ocidente nunca antes vistas. Mas, de 1985 a 1991, também enfrentaram o desastre nuclear de Chernobyl, não viram as suas condições económicas melhoradas, passaram por uma tentativa de golpe de Estado e assistiram ao ruir do império soviético. Gorbachev esteve envolvido em todos estes sucessos e fracassos.

Para a maioria no Ocidente, o homem que levou ao fim da URSS foi durante muito tempo visto como um herói. Mas, na Rússia, o seu legado não é visto da mesma forma. “Uma das razões pelas quais Gorbachev ainda é tido em tão boa conta no Ocidente é precisamente porque desafiava todos os estereótipos e caricaturas daquilo que era um líder soviético”, resume ao Observador Mark Galeotti, professor de Estudos Eslavos na University College of London e autor do livro Gorbachev and His Revolution (sem edição em português). “Gorbachev foi-se tornando mais e mais reformista à medida que estava no cargo. De quantos líderes podemos dizer isso? É raro e inspirador. Por outro lado, ele foi o homem que desmantelou o sistema que oprimia a Europa Central, que trazia consigo a bagagem da Guerra Fria, do medo da aniquilação nuclear. De certa forma, é ele que liberta o Ocidente desse medo.”

Muitos russos, por seu turno, detestam Gorbachev por considerarem que isso trouxe consigo não apenas um período de caos económico, como a degradação da perceção mundial do poder da Rússia no mundo. No fundo, tudo se resume numa antiga anedota soviética: “A URSS é um comboio que vai a andar e que, de repente, pára porque não há mais linha construída. Estaline manda matar o maquinista e o engenheiro; Kruschev reabilita-os; Brezhnev fecha as cortinas da janela e manda que o comboio seja abanado dos dois lados para criar a ilusão de movimento. E Gorbachev? Bem, Gorbachev abre as cortinas, debruça-se janela fora e grita ‘Ficámos sem carris, ficámos sem carris!’

Um otimista nascido da dureza da guerra e do estalinismo

Mikhail Sergeyevich Gorbachev nasceu a 2 de março de 1931 na aldeia de Privolnoye, na região de Stavropol, sul da Rússia. Cresceu numa família de camponeses, filho de pai etnicamente russo e mãe de origens ucranianas. Agricultores, os Gorbachev passaram pelo processo de coletivização agrícola que era levado a cabo por Josef Estaline à altura, como conta Archie Brown em The Human Factor: Gorbachev, Reagan and Thatcher, and the End of the Cold War (sem edição em português). Do lado paterno, o avô Andrey Gorbachev resistiu ao máximo ao processo, até ter de se render e entregar as suas terras; já o avô materno, Panteley Gopkalo, era um entusiasta da política estalinista e acabou por tornar-se, na década de 1930, presidente de um kolkhoz (nome dado às quintas colectivas).

“A mãe de Gorbachev, Maria (Gopkalo) Gorbacheva, era uma mulher determinada e trabalhadora, uma disciplinadora rígida em casa — e iletrada. O seu pai, Sergey Gorbachev, era totalmente alfabetizado, embora tenha tido apenas uma educação rudimentar, e era um homem inteligente e afável, com amplos interesses, bem como um trabalhador agrícola exemplar. Embora Mikhail gostasse de ambos os pais, tinha uma afinidade maior com pai”, relata Archie Brown. “O afeto e o encorajamento de Sergey, combinados com o amor incondicional dos avôs e um amor mais austero da mãe, fizeram com que Gorbachev recordasse os primeiros dez anos da sua vida como tendo sido muito felizes.”

Teenage Gorbachev

Gorbachev (à direita, em cima) com os colegas de escola, em 1947

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Apesar da dureza da vida no campo, Mikhail era uma criança alegre e despreocupada. Até que, a 22 de junho de 1941, a Alemanha atacou a União Soviética e esta decidiu envolver-se na II Guerra Mundial. “Ao meio-dia, os aldeões de Privolnoye juntaram-se à frente da coluna de um rádio (o único da povoação) na praça central e ouviram, quase sem respirar, o anúncio oficial”, relatou o próprio Gorbachev anos mais tarde ao biógrafo Taubman. “‘Talvez pareça um exagero’, continua Gorbachev, ‘mas lembro-me de tudo sobre a guerra. Esqueci-me de muito daquilo por que passei depois da guerra, mas as imagens e os acontecimentos do tempo da guerra ficaram-me gravados na memória para sempre. Quando a guerra começou, eu tinha 10 anos de idade’.” O pai não tardou a ser chamado para a frente de guerra. Numa manhã de agosto, levou a família até ao centro do distrito e apresentou-se ao serviço. Antes, comprou um gelado ao pequeno Mikhail e ofereceu-lhe uma balalaica de presente.

Os anos seguintes poriam fim à nostalgia de Gorbachev sobre a sua infância, como explica ao Observador Archie Brown, um dos historiadores mais reputados sobre a Guerra Fria: “Entre os 10 e os 14 anos, ele teve de lutar pela sobrevivência enquanto o pai combatia no exército. A mãe trabalhava nos campos de quinta coletiva e ele tinha de tratar de uma vaca e de recolher madeira para que não morressem de fome e de frio. Foram tempos muito difíceis… Durante dois anos, Gorbachev não foi à escola, porque não havia escola. E a sua aldeia foi ocupada pelos alemães durante mais de meio ano.” Para Brown, não há dúvidas sobre como essa experiência foi definidora do seu caráter: “Ele sempre disse que era um filho da guerra e que esta o afetou para sempre. Tornou-se alguém que abominava a violência e, embora não fosse exatamente um pacifista, tornou-se bastante anti-bélico.”

“Aquilo que é maravilhoso é como é que, depois de ter passado por aqueles tempos terríveis, ele emergiu tão otimista, tão confiante e com tanta confiança nos outros. E este facto tem grande significado político. Porque para fazer aquilo que ele tentou fazer mais tarde, que foi tentar democratizar a União Soviética, era preciso ser-se extremamente otimista, confiante e com confiança nos outros.”
William Taubman, biógrafo de Gorbachev sobre a sua infância

Como se não bastasse, outra ferida profunda dos tempos do estalinismo afligia a família. Ambos os avôs de Gorbachev foram presos e passaram temporadas em gulags: o avô paterno em 1934, pela sua oposição ao processo de coletivização, e o materno — apesar de ser membro do Partido Comunista e liderar um kolkhoz — por não ter alcançado os objetivos de produção em 1937. Esta segunda prisão, contudo, só seria divulgada publicamente pelo próprio Gorbachev muitos anos mais tarde, já depois da queda do império soviético.

“Quando me juntei ao Partido Comunista, tive de justificar tudo isto”, contou no início dos anos 90 a David Remnick, hoje diretor da revista New Yorker e à altura correspondente em Moscovo. “Foi um momento muito doloroso.” Para William Taubman, esta infância traumática contrasta com o caráter solar que Gorbachev desenvolveu enquanto adulto: “Aquilo que é maravilhoso é como é que, depois de ter passado por aqueles tempos terríveis, ele emergiu tão otimista, tão confiante e com tanta confiança nos outros”, comenta com o Observador o biógrafo, autor de Gorbachev — A Biografia (ed. Edições Desassossego). “E este facto tem grande significado político. Porque para fazer aquilo que ele tentou fazer mais tarde, que foi tentar democratizar a União Soviética, era preciso ser-se extremamente otimista, confiante e com confiança nos outros.”

A educação política de um rústico numa universidade de elite

Com o fim da II Guerra Mundial, Mikhail Gorbachev regressou à escola, onde demonstrou logo ser um excelente aluno. Os resultados escolares, combinados com o envolvimento na organização juvenil comunista do Komsomol, ditaram-lhe um bom futuro académico. Mas mais relevante ainda para a sua entrada na Universidade Estatal de Moscovo terá sido a condecoração da Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalho, que recebeu pelos excelentes resultados agrícolas da cooperativa em que trabalhava com o pai (já regressado da guerra), durante as pausas e férias escolares.

Gorbachev escolheu estudar Direito, mas a chegada a Moscovo foi um banho de realidade. Vindo da Rússia rural, era diferente dos colegas cosmopolitas das melhores famílias da capital e isso notava-se. “Viviam em casa, nos apartamentos dos pais, enquanto ele e outros forasteiros viviam num dormitório. ‘Nós representávamos a elite de Moscovo’, explica o colega Dmitry Golovanov. ‘O Gorbachev não era muito interessante’. De acordo com Zoya Bekova, ‘ele era profundamente provinciano’. ‘Isso era por demais óbvio. Tinha aspeto de camponês’. ‘Reconhecia-se pela pronúncia dele’, recordava Golovanov. Ele falava com um sotaque do sul da Rússia, suavizando os g duros em kh. ‘Ele tinha um fato, e usou-o durante os cinco anos’, acrescenta Nadezhda Mikhaeleva. ‘E havia alturas em que andava sem meias, pois não tinha nenhum par.’” Os relatos foram todos feitos por antigos colegas ao biógrafo Taubman. Mas um destes ex-estudantes, Rudolf Kolchanov, acrescentou-lhe um ponto importante: “Essa impressão desapareceu após o primeiro ano de Gorbachev. ‘A partir daí deixou de haver condescendência; todos passaram a tratá-lo como igual’.”

David Remnick, que passou os últimos anos da União Soviética em Moscovo, aponta no seu livro Lenin’s Tomb: The Last Days of the Soviet Empire (sem edição em português) que Gorbachev estava consciente desta diferença e se esforçava por colmatá-la, ficando a estudar na biblioteca da universidade “até à uma ou duas da manhã”. A instrução académica estava, por isso, a funcionar a todo o gás. Mas, ao mesmo tempo, decorria uma outra instrução, mais política: “Depois ficava acordado mais um par de horas a falar com os colegas de quarto. Mlynář, Gorbachev, Kolchanov e seis veteranos da guerra trancavam a porta, viravam o retrato de Estaline para a parede — revelando a parte de trás, onde estava um retrato amador de uma cortesã da era czarista — e bebiam e falavam noite fora.” Aí, partilhavam as suas experiências de vida, comentavam peças de teatro, discutiam acontecimentos recentes. “Mas um assunto que nunca era mencionado era o próprio Estaline. Isso era demasiado arriscado, mesmo de porta fechada.”

A sua relação particular com o checo Zdeněk Mlynář teve, no entanto, um efeito muito forte sobre as dúvidas de Gorbachev face ao estalinismo. Por um lado, Mlynář partilhou consigo pormenores do que havia acontecido na Primavera de Praga e no esmagamento da revolta por parte da União Soviética. Por outro, Gorbachev confessava que aquilo que era descrito nas aulas sobre a política agrícola e a vida rural não correspondia totalmente à realidade.

William Taubman resume assim esse período em conversa com o Observador: “Ele era um jovem camponês de uma aldeia. Os seus colegas eram muito mais urbanos, com pais que tinham tido melhor educação do que os seus pais. Mas estes dois campos trouxeram coisas um ao outro. Gorbachev trouxe o conhecimento de como era a vida real numa quinta coletivizada e de como não era igual ao que dizia a propaganda soviética. E eles trouxeram-lhe uma familiaridade com o teatro, a ópera, o ballet, um certo tipo de sofisticação. Por isso imagino que, em retrospetiva, cada um aprendia com o outro e cada um saía daquelas conversas com mais perguntas e dúvidas do que quando tinha entrado. Por outras palavras: cada um reforçava no outro o potencial para, a longo prazo, questionar o sistema.”

Stalin Lying In State

O funeral de Estaline foi marcante para a geração de Gorbachev

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Essa formação em curso não impediu, no entanto, que Gorbachev e os colegas ficassem abalados com o anúncio da morte de Estaline, em março de 1953. Afinal, aquela era a única realidade que conheciam: o que poderia vir depois? Kolchanov recordou a David Remnick a noite em que foi com Gorbachev e outros colegas ver o corpo do Estaline em câmara ardente:

“Quando regressámos ao nosso quarto, já nas primeiras horas da madrugada, sentámo-nos nas nossas camas. Tentámos falar, mas a maior parte do tempo ficámos calados, pensativos. Alguns choravam, mas lembro-me de que eu não chorei e que o Mikhail Sergeyevich também não. Estávamos tão habituados à vida com Estaline. Hoje podemos achar isso estranho e terrível, mas era assim. E foi então que um deles fez a pergunta que todos tínhamos na cabeça: ‘O que é que vamos fazer agora?’”

A chegada ao partido dos shestidesyatniki

Saído da universidade — onde conheceu aquela que se tornou a sua mulher ainda durante os tempos de estudante, Raisa Titarenko —, Gorbachev começou a procurar trabalho. A sua primeira tentativa foi a de trabalhar na procuradoria nacional para investigar crimes do estalinismo, mas foi-lhe dito que não havia trabalho para si. Acabou então por rumar de volta a Stavropol, onde começou a trabalhar com o gabinete do procurador regional. Mas rapidamente se aborreceu e não tardou a que conseguisse ser transferido para o Komsomol, tornando-se oficialmente funcionário do Partido Comunista, em 1956.

“Esta era uma boa altura para se entrar no partido, porque Kruschev acabaria por fazer pouco depois o discurso onde denunciaria Estaline. Foi uma época em que muitos idealistas  — os chamados shestidesyatniki, ‘a geração de 60’ — que queriam reformar o país decidiram fazê-lo através do Partido, a partir de dentro. Trabalhar para o Partido nessa altura era por isso muito diferente daquilo que se tornou na década de 70 e no início dos anos 80, quando o Partido ficou estagnado e reacionário”, resume Taubman.

Imbuído desse espírito, Gorbachev foi subindo degrau a degrau no Partido. Em 1970, o russo foi elevado a primeiro-secretário regional do Partido em Stavropol, a sua região natal. Essa localização revelar-se-ia fulcral, com Taubman a arriscar dizer que “se Gorbachev tivesse sido nomeado para uma organização de uma província em Vladivostok, por exemplo, nunca teria chegado aonde chegou”. A razão é simples: por um lado, Stavropol era uma excelente área agrícola em termos de resultados e Gorbachev usou isso a seu favor, fazendo uma pós-graduação em Agricultura; por outro, esta região do Cáucaso era conhecida pelos seus spas naturais e, por isso, era local de férias para muitos membros importantes do Politburo.

Mikhail Gorbachev

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Um dos mais importantes com quem Gorbachev estabeleceu contacto foi Yuri Andropov, à altura diretor do KGB. No livro Gorbachev: Herectic in the Kremlin (sem edição em português), de Dusko Doder e Louise Branson, descreve-se como se foi construindo essa relação: “Gradualmente, Andropov começou a gostar daquele jovem e começaram a passar bastante tempo juntos, caminhando pelos bosques e discutindo política. [Andropov] gostava da sua sagacidade e da sua inteligência, bem como do facto de ele e a sua família não terem sido tocados por uma única suspeita de corrupção. Para a sua posição oficial, Gorbachev vivia uma vida quase espartana”, explicam. “Mas aquilo que mais atraía Andropov era a forma de pensar de Gorbachev, a sua capacidade para o trabalho de equipa, a sua curiosidade e, acima de tudo, a força do seu caráter. O mais jovem dos dois juntava uma consciência aguda e algo irónica das falhas e dos absurdos do sistema soviético, ao mesmo tempo que mantinha uma ligação devota a ele. As suas conversas foram-se tornando progressivamente mais cândidas e descobriram que concordavam nos elementos essenciais da política.”

“A relação criada com Andropov em Stavropol foi muito importante para Gorbachev”, resume Archie Brown ao Observador. “Não só com ele, também com [Alexei] Kosygin [presidente do Conselho de Ministros] e [Mikhail] Suslov [segundo-secretário do PCUS], que também iam a Stavropol. Mas Andropov foi particularmente importante porque ele viria a tornar-se o Secretário-Geral após a morte de Brezhenev e acelerou a sua promoção. Andropov deu-lhe mais responsabilidades e fez com que ele se tornasse num possível sucessor”.

Mark Galeotti concorda e detalha as motivações do novo Secretário-Geral em fazer de Gorbachev o seu protegido: “Andropov não era um dos homens mais queridos do mundo — na verdade, era verdadeiramente implacável. Mas a sua implacabilidade esteve sempre ligada, de certa forma, a uma tentativa de compreender a realidade no terreno”, diz, a propósito do homem que liderou a polícia política da União Soviética durante 15 anos. “Ele tinha noção das limitações da elite soviética e do próprio sistema. E queria construir uma coligação de pessoas que quisessem aplicar mudanças, como ele. Mesmo que discordassem sobre que tipo de mudanças promover. E é assim que se passa a ter [um Politburo] com pessoas da linha dura e, ao mesmo tempo, tipos mais liberais como Gorbachev.” É assim que, em 1978, Gorbachev é nomeado Secretário do Comité Central e parte com a mulher, Raisa, para Moscovo. Apenas sete anos mais tarde, tornar-se-ia líder de toda a União Soviética.

“É como ir contra um muro. Se quero mudar alguma coisa, tenho de aceitar o cargo”

A chegada ao topo contou, porém, com os seus percalços. É verdade que à medida que Gorbachev correspondia positivamente ao trabalho que lhe era pedido, Andropov demonstrava mais publicamente que o cortejava para seu delfim e sucessor quando morresse. Mas esse momento chegou mais cedo do que o próprio Andropov esperava: em 1983, teve uma crise aguda de insuficiência renal e foi hospitalizado. Devido aos problemas renais, a que se somavam a hipertensão e a diabetes, ficou hospitalizado durante um ano, acabando por morrer a 9 de fevereiro de 1984.

Mikhail Gorbachev percebeu que, agora sim, a sua oportunidade chegara e que tinha de agir depressa. No dia da morte do Secretário-Geral, Gorbachev chegou a casa às quatro da madrugada e foi dar um passeio pelo jardim com a mulher, como habitualmente faziam quando queriam falar francamente, já que suspeitavam que poderiam estar a ser escutados em casa.

O momento para Gorbachev poderia ter chegado mais cedo, mas a ala mais conservadora dentro do Partido mantinha a sua força: o escolhido foi Konstantin Chernenko, com 73 anos. A sua saúde já era frágil, sofrendo de vários problemas respiratórios, mas a cúpula partidária achou que seria mais seguro seguir com alguém que não agitaria as águas. A tentativa, porém, durou pouco: apenas 13 meses depois de ter tomado posse, Chernenko morreu.

Mikhail Gorbachev percebeu que, agora sim, a sua oportunidade chegara e que tinha de agir depressa. No dia da morte do Secretário-Geral, Gorbachev chegou a casa às quatro da madrugada e foi dar um passeio pelo jardim com a mulher, como habitualmente faziam quando queriam falar francamente, já que suspeitavam que poderiam estar a ser escutados em casa. “‘Mikhail Sergeyevich estava muito cansado. Ao início manteve-se em silêncio’”, relatou a própria Raisa a William Taubman, anos mais tarde. “Depois contou-lhe sobre a sessão do Comité Central no dia seguinte, na qual ‘pode surgir a questão da minha subida ao poder’. Recorda ela que aquilo ‘foi algo completamente inesperado. Foi (…) um choque’. Insiste que também foi ‘uma surpresa para o meu marido. Nunca havíamos debatido o tema juntos’.”

O relato dos eventos por parte de Raisa não coincide, contudo, com o perfil de Gorbachev, que, para além de sagaz, se moveu rapidamente assim que soube da morte de Chernenko, ao convocar uma reunião do Comité Central para o dia seguinte. “No fim da conversa, Gorbachev disse à esposa ‘Trabalhei tantos anos em Stavropol. Este é o meu sétimo ano em Moscovo. Vim para Moscovo esperando, e acreditando, que seria capaz de fazer alguma coisa, mas até agora não fiz muito. É impossível conseguir algo de substancial, aquilo de que o país está à espera. É como ir contra um muro. Portanto, se quero mesmo mudar alguma coisa, tenho de aceitar o cargo — conquanto, obviamente, eles mo ofereçam. Não podemos continuar a viver assim’.” Estaria Gorbachev a referir-se à sua família ou à vida dos soviéticos em geral? Talvez ambos.

Fosse qual fosse a sua motivação, rapidamente colocou a engrenagem do Partido em marcha. Na reunião do Comité Central, Andrei Gromyko propôs o seu nome para ser escolhido como novo líder. Ao contrário do que Gorbachev esperava, a maioria não se opôs. Cansados de líderes doentes e envelhecidos, os membros do Politburo elegeram por unanimidade Gorbachev, à altura com 52 anos, Secretário-Geral do PCUS e líder da União Soviética.

A maioria dos membros não tinha noção da índole reformista de Gorbachev. “Eu sabia que iria haver mudanças, mas se, em 1985, me tivessem dito que iriam acontecer todas estas coisas, dava o meu braço como garantia de que isso não seria possível”, confessou alguns anos mais tarde Alexander Yakovlev, um dos membros mais liberais do Politburo e aliado do Secretário-Geral. Os membros do Partido não tinham noção de como era Gorbachev no seu íntimo: “A maioria dos seus contemporâneos, sobretudo aqueles contra quem ele estava a concorrer para a liderança (como Grigory Romanov, líder do Partido em Leningrado) eram pessoas que escolhiam ativamente fechar os olhos à verdade do que estava à sua volta. Gorbachev nunca o fez”, sentencia Galeotti.

Os primeiros desafios: Afeganistão e Chernobyl

Entronizado como líder da União Soviética, Gorbachev sabia que tinha pela frente uma série de desafios: uma economia estagnada, uma relação de tensão com os Estados Unidos e uma série de conflitos por procuração em curso, relacionados com a Guerra Fria, dos quais a guerra no Afeganistão se destacava.

O conflito, em que os soviéticos apoiavam o regime comunista de Babrak Kamal contra os guerrilheiros mujahidin, apoiados pelos norte-americanos, durava desde finais de 1979 e não corria de feição à URSS. A maioria da população soviética, contudo, não fazia ideia da verdadeira dimensão da guerra. “Segundo os relatos oficiais, Moscovo estava apenas a dar assistência técnica e a tentar promover uma conferência internacional para reconhecer o governo de Kabul”, resumem Doder e Branson em Herectic in the Kremlin. “A imprensa falava do governo comunista afegão e do povo afegão como estando ligados: ambos eram intimidados por ‘bandidos’, os dushmani, que eram fantoches dos imperialistas ocidentais. Não havia qualquer menção a como a guerra estava a afetar a própria União Soviética.”

E os efeitos eram profundos. Vejamos o relato de um soldado soviético enviado para o Afeganistão em 1981, que partilhou anos mais tarde a sua experiência com a Nobel da Literatura Svetlana Alexieivich, em Rapazes de Zinco (ed. Elsinore):

“A guerra já durava há dois anos, mas as pessoas em geral não sabiam muito sobre ela e não falavam do que sabiam. Na nossa família, por exemplo, assumíamos que o governo não iria mandar forças para outro país a não ser que fosse necessário. O meu pai pensava assim e os vizinhos também. Não me lembro de alguém achar algo diferente. Quando parti, as mulheres nem sequer choraram, porque nessa altura a guerra parecia algo muito longínquo e que não assustava. Era guerra, mas não era guerra e, de qualquer das formas, era algo distante, sem cadáveres nem prisioneiros.” O soldado continua o seu relato: “Naqueles dias, ninguém tinha ainda visto os caixões de zinco. Mais tarde soubemos que, naquela altura, os caixões já estavam a chegar à nossa terra, com os funerais a serem realizados em segredo, à noite. As lápides tinham escrito ‘morreu’ em vez de ‘morto em combate’, mas ninguém fazia perguntas sobre o facto de miúdos de 18 anos andarem a morrer de repente. Demasiada vodka, talvez, ou seria a gripe?”

Gorbachev assumiu desde o início que aquilo que se passava no terreno no Afeganistão era uma tragédia, que classificou numa reunião do Partido como “uma ferida a sangrar”. Contudo, não ordenou de imediato a retirada de tropas. Em vez disso, no verão de 1985 pediu aos generais uma nova estratégia, dando autorização para que houvesse ataques mais próximos da fronteira com o Paquistão e disponibilizando mais armas para o exército afegão. Deu o prazo de um ano para obter resultados e afirmou que, se tal não acontecesse, tentaria uma retirada negociada do terreno.

Afghanistan During Soviet Pull Out

A retirada soviética do Afeganistão foi ordenada por Gorbachev ao fim de anos de guerra sangrenta

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Foi precisamente o que acabou por acontecer. O ano de reforço da ofensiva soviética levou a ainda mais mortes de civis afegãos — alguns historiadores estimam que o número de vítimas civis pode ter chegado aos dois milhões ao longo de toda a guerra — e a uma subida no número de baixas no exército soviético. Os norte-americanos reforçaram o apoio aos mujahedin e a guerra parecia cada vez mais longe de ser ganha pelo lado comunista. “Em junho de 1986, Gorbachev disse ao Politburo que ‘temos de sair de lá’”, nota Odd Arne Westad em A Guerra Fria (ed. Temas e Debates).

Contudo, seriam precisos quase dois anos para o secretário-geral anunciar oficialmente a retirada das tropas do Afeganistão. Algo que Mark Galeotti explica como sendo resultado da resistência interna das forças mais conservadoras do Politburo: “Ele era o secretário-geral, mas tinha uma margem muito estreita, por vezes até artificial, junto do Comité Central”, afirma. “Desde o início que ele tinha noção de que a guerra no Afeganistão era um desastre, mas não podia simplesmente dizer ‘OK, vamos embora’. Teve de presidir a um momento de escalada, numa lógica de ‘Vou fazer a vontade aos da linha dura por uns tempos e quando eles falharem vou dizer que lhes dei uma hipótese e não conseguiram e que temos de tentar algo novo’. Ele tinha de ter a certeza que o Comité Central estava com ele em todos os momentos, não podia simplesmente governar sozinho. Este já não era um tempo em que o Secretário-Geral era um simples ditador.”

Ao mesmo tempo que lidava com o problema do Afeganistão, pouco tempo depois enfrentaria uma tragédia ainda maior, que marcaria a sua ação futura: o reator nuclear de Chernobyl, que explodiu na madrugada de 26 de abril de 1986. Para ilustrar a dimensão humana da tragédia, com 237 mortes quase imediatas por exposição à radiação (e muitos milhões nos anos seguintes), recorremos uma vez mais a Svetlana Alexieivich e ao testemunho da mulher de um dos bombeiros que acorreu de imediato ao cenário da explosão:

“Ele defecava vinte cinco a trinta vezes por dia. Com sangue e muco. A pele dos braços e das pernas começou a estalar. O corpo ficou todo coberto de bolhas. Quando virava a cabeça, ficavam madeixas de cabelo na almofada… Tudo tão querido. Amado… Eu tentava brincar: ‘Até te dá jeito, não precisas de pente’. Em breve, cortaram o cabelo a todos. A ele, fui eu própria que o fiz. Queria ser eu a fazer tudo por ele. Se tivesse sido fisicamente possível, tinha ficado com ele vinte e quatro horas por dia. Dava-me pena desperdiçar um único minuto… Não queria perder nem um minutinho… [Tapa o rosto com as mãos e fica calada]”, pode ler-se em Vozes de Chernobyl (ed. Elsinore).

A reação inicial do sistema comunista foi a de tentar conter de imediato a informação conhecida sobre o desastre. Em Meia-Noite em Chernobyl (ed. Desassossego), de Addam Higginbotham, relata-se a primeira reunião do Politburo sobre o tema, em que o vice-primeiro-ministro Heydar Aliev defendeu que fosse divulgada toda a dimensão do desastre, mais foi travado por membros mais conservadores, como Yegor Ligachev:

“— A declaração deve ser formulada de modo a não causar demasiado sobressalto ou pânico — disse Andrei Gromyko, presidente do Presidium do Soviete Supremo. E quando passaram à votação, Ligachev conseguira, aparentemente, fazer valer a sua vontade: o Politburo decidiu seguir a abordagem tradicional. Os anciãos do Partido ali reunidos redigiram uma opaca declaração de vinte e três palavras a ser divulgada pela agência de notícias estatal, a TASS — e elaborada para combater aquilo que o porta-voz do Comité Central descrevia como ‘falsificação… propaganda e invenções burguesas ….’ Quaisquer que fossem as intenções de Gorbachev, o melhor era, afinal, optar pelos velhos costumes.”

Questionado sobre por que razão Gorbachev aceitou este encobrimento, o académico Mark Galeotti justifica a decisão da seguinte maneira: “Numa crise tremenda, os nossos instintos primários vêm ao de cima. Independentemente do que Gorbachev dissesse, ele continuava a ser um produto da educação soviética e do PCUS. Creio que o facto de ele ser capaz, retrospetivamente, de olhar para trás e perceber que aquilo foi contraprodutivo já é suficientemente impressionante. Mas não fico surpreendido com o facto de o seu primeiro impulso ter sido o de evitar que o acidente fosse tornado público.”

Apesar disso, com o arrastar da situação, o próprio Gorbachev irritou-se com o encobrimento que os próprios membros do partido faziam sobre o tema, até de si próprio, segundo relata Higginbotham: “— Ao longo de trinta anos, disseram-nos que era tudo perfeitamente seguro. Assumiram que seriam vistos como deuses. Essa é a razão de tudo isto ter acontecido, de ter acabado num desastre. Não havia ninguém a controlar os ministérios e os centros científicos — disse. — E, de momento, não vejo sinais de que tenham chegado às conclusões necessárias. Na verdade, parece-me que estão a tentar encobrir tudo”, diria numa reunião do Comité Central, semanas após o desastre.

Child Victim of Chernobyl Disaster

Uma das vítimas do desastre nuclear de Chernobyl

Sygma via Getty Images

A frustração com a forma de funcionar do sistema seria decisiva para Gorbachev reforçar a convicção de que era necessária maior abertura na União Soviética, segundo a opinião de todos os especialistas ouvidos pelo Observador. “Quando a fase inicial da crise passou, Gorbachev assimilou que toda a gente tinha voltado às antigas fórmulas e que isso tinha sido contraproducente. E, após Chernobyl, passamos a ver um Gorbachev muito mais firme a tentar impor a sua glasnost. Num sentido de que esta não podia funcionar apenas de cima para baixo, mas também de baixo para cima, permitindo às pessoas falarem”, afirma

Em Vozes de Chernobyl, Alexieivitch apresenta o testemunho de um antigo engenheiro-chefe nuclear que ilustra bem a forma como o secretismo soviético estava entranhado na maioria da população:

“Porque ficámos calados se sabíamos? Porque não saímos para a praça e não gritámos? Nós reportávamos… Eu disse-lhe que escrevíamos memorandos. E, se nos remetíamos ao silêncio e cumpríamos as ordens sem objeção, é porque a isso obrigava a disciplina partidária, sou comunista. Não me lembro de algum dos nossos colaboradores ter receado por si mesmo ou ter recusado uma comissão de serviço na Zona. Não foi por ter medo de entregar o cartão de militante, mas pela fé. Antes de mais nada, acreditávamos que a nossa vida era bela e justa e que o homem estava acima de tudo, era a medida de todas as coisas. O colapso desta fé acabou para muitos com ataque cardíaco ou suicídio. Com uma bala no coração, como no caso do académico Legássov… Porque, por perderes a fé, deixas de ser participante, tornas-te cúmplice, não tens justificação. É assim que o entendo.”

Para Jonathan Steele, antigo correspondente do The Guardian em Moscovo à altura, Chernobyl foi o verdadeiro “abre-olhos” para Gorbachev, mas também para os próprios soviéticos em geral, e acelerou a política de abertura da glasnost: “Até a pessoa com mais responsabilidades na União Soviética não tinha a informação toda. A liderança começava a pensar ‘Nós próprios precisamos da informação. O que raio aconteceu? Porque não foi previsto? Porque não foi travado o teste que estava a ser realizado em Chernobyl quando se percebeu que estava a ficar descontrolado?’”, nota ao Observador.

Neste mundo cheio de segredos onde cada um tinha medo de dar um passo em falso, aconteceu Chernobyl, a maior tragédia nuclear na História — e isso ajudou a forçar uma mudança na União Soviética. Mas seria a glasnost suficiente para salvar o império soviético?

Como a glasnost minou a perestroika

Os anos seguintes foram de imediato marcados pela glasnost, que Gorbachev tentou aplicar com toda a força, sublinhando que era preciso deixar de olhar para o passado com “lentes cor-de-rosa”. O líder soviético focou-se na crítica ao estalinismo, deixando Lenine de fora do revisionismo histórico, mas permitiu que a informação passasse a circular livremente. O efeito na população soviética, sobretudo nas grandes cidades, foi tremendo.

"Nenhum livro ou voz era proibido. Reconquistar o passado, ver em pleno os pesadelos de 70 anos, era um novo choque insuportável. À medida que o regresso da História foi acelerando, a televisão começou a passar documentários sobre o homicídio dos Romanovs, a coletivização dos campos, as purgas."
David Rednick, antigo correspondente na URSS durante a Glasnost

David Remnick descreve pormenorizadamente o ambiente que se vivia em Moscovo na última metade da década de 80:

“Onde quer que fossem, historiadores, procuradores, arquivistas e jornalistas descobriam que o legado do poder soviético era tão trágico como tinham dito as ‘vozes proibidas’: “O Arquipélago Gulag”, de Solzhenitsyn, “Os Contos de Kolyma” de Varlam Shalamov. Nenhum livro ou voz era proibido. Reconquistar o passado, ver em pleno os pesadelos de 70 anos, era um novo choque insuportável. À medida que o regresso da História foi acelerando, a televisão começou a passar documentários sobre o homicídio dos Romanovs, a coletivização dos campos, as purgas. Os jornais literários mensais, os semanários e até os jornais diários estavam cheios com os relatórios dos danos históricos: quantos tinham sido mortos e presos; quantas igrejas, mesquitas e sinagogas destruídas; quanta pilhagem e desperdício.”

E embora se possa pensar que esta política poderia ter apenas efeito numa determinada elite intelectual, a verdade é que os soviéticos aderiram em massa a esta procura pelo passado. “O que era incrível em 1988 e 1989 é que andávamos de metro e víamos pessoas normais a lerem o Pasternak nas suas cópias de capa azul-clara ou a [revista] Novy Mir ou os mais recentes ensaios históricos na Znamya vermelha e branca. Durante um par de anos, trabalhadores de fornalhas, condutores, estudantes, toda a gente consumia este material com uma fome animal. Liam a toda a hora, enquanto subiam as escadas rolantes, a andar pelas ruas, a ler como se tivessem medo de que isto desaparecesse de novo na caixa negra dos censores”, relata Remnick.

Mas nem tudo era perfeito, como revela uma das anedotas que circulava em Moscovo em que um amigo ligava a outro e perguntava “Leste o último número da Moskovskie Novosti?” e, perante a resposta negativa do amigo, acrescentava “Não te posso dizer o que diz, não é coisa de que se possa falar ao telefone”. Por alguma razão, Gorbachev continuava sem revelar que o seu avô paterno tinha também sido uma vítima aleatória do estalinismo, enviado para um gulag na Sibéria por não ter cumprido a quota de produção obrigatória da sementeira de 1933 — um ano em que três dos seus seis filhos morreram de fome, como relata Archie Brown em The Gorbachev Factor (sem edição em português).

Para além disso, os avanços na glasnost não eram acompanhados ao mesmo ritmo pela perestroika, a política de reformas económicas. Dentro do Politburo, Gorbachev continuava a enfrentar resistências: entre 19 membros, os únicos reformistas para além do próprio Secretário-Geral resumiam-se a Boris Yeltsin, Alexander Yakovlev e Eduard Shevardnadze. Por essa razão, Gorbachev foi muito mais lento a aplicar medidas na lógica da perestroika, como explica Jonathan Steele: “Ele começou de forma conservadora, à semelhança do que Andropov e Kosygin tinham feito antes. Distribuiu mais dinheiro para se investir na agricultura e adotou uma postura disciplinária nas relações laborais, começando por exemplo a campanha anti-álcool, que proibiu a venda de vodka. Não eram exatamente reformas, era uma gestão económica melhorada”, descreve o antigo correspondente do The Guardian. “Acho que só quando ele percebeu que isto não trazia resultados suficientes é que se tornou mais ambicioso e aplicou esquemas como a permissão aos desempregados para criarem cooperativas privadas. Esta era uma reforma que ia completamente contra o sistema do total controlo da iniciativa económica pelo Estado. Mas ele só a anunciou quatro anos depois de ter chegado ao poder.”

Durante esse período de hesitação no que diz respeito às reformas económicas, a União Soviética continuava mergulhada na pobreza. Remnick destaca como “os mineiros na região norte de Vorkuta não tinham sabão suficiente para tirar todo o carvão da cara; as mães da ilha de Sakhalin, no leste, davam à luz em quartos alugados por não haver ali uma maternidade; os camponeses da Bielorrússia trocavam sucata e gordura de porco por sapatos”. Os dados comprovavam essa experiência empírica: “Em média, um soviético tinha de trabalhar dez vezes mais do que um americano para comprar meio quilo de carne; os trabalhadores da indústria petrolífera de Tyumen, uma região na Sibéria com mais petróleo do que o Kuwait, viviam em barracas e caravanas, apesar das temperaturas de quarenta graus negativos; até os responsáveis do Partido estimavam que haveria entre um milhão e meio a três milhões de sem-abrigo, mais um milhão de desempregados só no Uzbequistão e uma taxa de mortalidade infantil 250% superior à dos países ocidentais, equivalente à do Panamá.”

“Na União Soviética, era mais fácil mudar a linguagem política do que as estruturas. Se eles avançassem na direção de uma política de mercado, os preços subiriam. E isso tornaria Gorbachev e o próprio processo de reformas mais impopulares.”
Archie Brown, biógrafo de Gorbachev, sobre a perestroika

No meio deste cenário, a glasnost acabaria por se tornar uma armadilha para a própria perestroika. Com a maior liberdade política, vinha a ânsia de melhorias económicas. Mas quaisquer reformas aplicadas por Gorbachev teriam no imediato efeitos contrários ao desejado. “Na União Soviética, era mais fácil mudar a linguagem política do que as estruturas”, resume Archie Brown. “Se eles avançassem na direção de uma política de mercado, os preços subiriam. E isso tornaria Gorbachev e o próprio processo de reformas mais impopulares.”

A tudo isto somava-se a resistência dos conservadores no Politburo. Uma vez mais, uma anedota soviética resume bem a situação: Gorbachev encontra-se para beber um copo com o Presidente americano Ronald Reagan e o Presidente francês François Mitterrand. O francês diz que tem um problema: tem nove amantes, sabe que uma está a traí-lo, mas não sabe qual delas é. Reagan responde que isso não é nada. “Tenho 50 guarda-costas, sei que um é agente do KGB, mas não sei qual deles é”. Até que Gorbachev conta o seu problema, que é infinitamente maior do que o dos seus homólogos: “Tenho 100 ministros, sei que um aderiu verdadeiramente à perestroika, mas não consigo descobrir qual deles foi.”

“Gorbachev ia ao estrangeiro e era uma estrela rock. Todos queriam tirar uma foto com ele”

A propósito de Reagan e Mitterrand, seria impossível refletir sobre a vida e o percurso de Mikhail Gorbachev sem ter em conta as suas várias viagens ao estrangeiro. Os encontros com outros chefes de Estado ajudaram a legitimar Gorbachev no Ocidente e criaram uma espécie de Gorbymania semelhante àquela que o líder da União Soviética sentiu na sua primeira visita a Leningrado — mas no Ocidente. E, à medida que as suas políticas domésticas se complicaram e a sua popularidade foi decaindo dentro de URSS, no estrangeiro Gorbachev continuou a ser sempre bem recebido.

Em primeiro lugar, é necessário ter em conta que esse contacto com o mundo exterior começou ainda antes de Gorbachev se ter tornado Secretário-Geral do PCUS. “É preciso recordarmo-nos de que este foi o primeiro líder soviético que viajou de forma independente para o Ocidente e que gostava de fazê-lo, sobretudo num contexto informal”, aponta Mark Galeotti. “Acho que demonstra a sua vontade de manter uma mente aberta, em vez de se focar simplesmente na sua carreira política.”

Durante a liderança de Andropov, Gorbachev fez várias viagens. Em 1983, esteve no Canadá com Yakovlev, à altura embaixador soviético no país, e conheceu o primeiro-ministro Pierre Trudeau. No ano seguinte foi a Itália, à Bulgária e, mais importante do que isso, ao Reino Unido. Em dezembro de 1984 encontrou-se com a primeira-ministra Margaret Thatcher e a reunião foi um sucesso.

Russian President Mikhail Gorbachev

Gorbachev na sua primeira viagem ao Reino Unido, ainda antes de ser secretário-geral

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O episódio é recontado na biografia de William Taubman da seguinte forma:

“Segundo o intérprete britânico, Tony Bishop, a senhora Thatcher ‘deliberada e arrebatadoramente (…) contrainterrogou de modo constante [Gorbachev] quanto à inferioridade do sistema de comando centralizado soviético e aos méritos do empreendedorismo e da concorrência livres’. Gorbachev retorquiu que se a senhora Thatcher visse com os seus olhos, perceberia que o povo soviético vive ‘alegremente’. Nesse caso, contrapôs ela, porque receava o governo soviético deixá-los sair do país ‘tão facilmente como poderiam sair da Grã-Bretanha?’ ‘Ficaram claramente intrigados um com o outro desde o primeiro momento’, frisaria [Charles] Powell [conselheiro político de Thatcher]. ‘Julgo que ambos terão pensado que ‘Não era isto que eu esperava’.’ ‘De certa forma’, recordaria Thatcher mais tarde, a sua ‘discussão’ com Gorbachev ‘continuou desde então e é retomada sempre que nos encontramos. Nunca me canso dela’.”

Em suma, foi um sucesso. “[Os líderes ocidentais] tinham esta caricatura do que era um líder soviético na cabeça e depois apareceu Gorbachev: humano, vibrante, com vontade de conversar e debater em vez de dizer simplesmente nyet”, diz Galeotti. “Acho que foram apanhados desprevenidos e essa é parte da razão pela qual sucumbiram aos seus encantos.”

Ronald Reagan foi o seguinte. Já enquanto líder da União Soviética, Gorbachev conseguiu juntar-se numa cimeira com o Presidente americano em Genebra, em 1985. Embora os resultados tenham sido limitados — com apenas o “compromisso de evitar uma guerra nuclear” e continuar o diálogo —, a cimeira correu extremamente bem se tivermos em conta a aproximação pessoal que se criou entre os dois líderes, em plena Guerra Fria. “Logo quando conhecera Gorbachev, no Château Fleur d’Eau, Reagan sentiu uma ‘onda de otimismo’ ao ‘observar o sorriso de Gorbachev’. Mesmo durante as trocas mais amargas, recorda, ‘Gorbachev estava disposto a escutar’”, pode ler-se na biografia de Taubman. “A dada altura, quando os conselheiros analisavam um documento, os dois líderes sentaram-se ao lado um do outro em cadeirões a condizer, a beber chá russo, embrenhados numa conversa. Quando [o chefe de gabinete] Regan alertou que estava na altura de voltarem às conversações, Reagan gracejou, ‘E depois? O Mikhail e eu estamos aqui muito bem’.

Soviet-U.S. Summit

Com Ronald Reagan, Gorbachev alcançou alguns dos tratados mais importantes com os EUA durante a Guerra Fria

Bettmann Archive

Seguiu-se outro encontro no ano seguinte, em Reiquiavique, com resultados semelhantes. Gorbachev estava disposto a reduzir em 50% o arsenal soviético de mísseis de longo alcance em troca do fim da Iniciativa de Defesa Estratégica norte-americana. Reagan, porém, não estava disposto a abdicar dela e o resultado final foi o de apenas reafirmar o compromisso de evitar uma guerra nuclear. Mas, uma vez mais, o simbolismo de ver os líderes dos dois países inimigos a conversar amigavelmente foi profundo. “Isto não é um falhanço, é um avanço”, declarou Gorbachev na conferência de imprensa. Olhamos para o horizonte e para um possível futuro sem armas nucleares.”

“Porque é que eles se deram tão bem?”, interroga-se William Taubman a meio da conversa com o Observador. “Em parte eram ambos abolicionistas nucleares e tinham muitas semelhanças de caráter. O acordo em Reiquiavique não aconteceu, mas eles queriam que acontecesse. Só que creio que nenhuma das pessoas à volta de ambos o permitiria. Muitas pessoas, como Thatcher, acreditavam que as armas nucleares eram precisamente aquilo que tinha mantido a paz até ali. Portanto, eles estavam a tentar e isso era algo radical. Foi quase um milagre.”

Jonathan Steele aprofunda a descrição daquilo que aproximava os dois homens: “Gorbachev era obviamente muito carismático, tinha uma personalidade solar. Não era depressivo, nem arrogante, nem pomposo. E Reagan era muito semelhante. Não era um intelectual, mas era um homem alegre e otimista. Um Presidente com quem era fácil conversar, com sentido de humor. Acho que com Thatcher era diferente, a relação dela com Gorbachev era mais argumentativa” — mas isso também era algo que ambos apreciavam bastante.

"Nas relações internacionais há a sensação de que um indivíduo sozinho pode ter mais impacto. Por isso acho compreensível que, numa altura em que a situação na União Soviética se tornava mais complexa e mais hostil, ele adorasse a adulação que recebia no estrangeiro.”
Mark Galeotti, especialista em política russa

E, apesar de Gorbachev não ter conseguido nenhum acordo nuclear nos seus contactos com os líderes ocidentais, retirou desses momentos um enorme prazer. “Numa altura em que no próprio país ele era criticado, em que os colegas conspiravam contra ele, Gorbachev ia ao estrangeiro e era uma estrela rock. Todos o queriam conhecer e tirar uma foto com Mikhail Gorbachev”, descreve Galeotti. “É algo que acontece frequentemente com líderes que enfrentam problemas internos, porque geralmente são assuntos mais complexos. Nas relações internacionais há a sensação de que um indivíduo sozinho pode ter mais impacto. Por isso acho compreensível que, numa altura em que a situação na União Soviética se tornava mais complexa e mais hostil, ele adorasse a adulação que recebia no estrangeiro.”

Contudo, nem sempre foi assim. No início do seu mandato, com a política da glasnost e o seu estilo descontraído, Gorbachev encantava as multidões na URSS. A televisão, e em particular o programa Vremya, eram utilizados como armas para transmitir a sua afabilidade: “Gorbachev era tão vigoroso quando comparado com os seus antecessores, tão crítico do statu quo, tão informal e sem vergonha do seu sotaque sulista e dos seus erros gramaticais, que rapidamente foi apelidado de ‘Presidente da quinta coletiva’”, descreve David Remnick em Lenin’s Tomb. Todos sabiam quem era Gorbachev e todos gostavam de vê-lo e ouvi-lo e de falar sobre ele. Como Lyosha, um dos jovens que nasceu e cresceu nos últimos anos da União Soviética e que faz parte do leque de entrevistados da jornalista russo-americana Masha Gessen, no livro The Future is History (sem edição em português):

“Quando Lyosha tinha cerca de 3 anos, Galina começou a ter a televisão sempre ligada. Às vezes ficava sentada em frente ao televisor a preto e branco durante horas, a ver homens cinzentos a falar no ecrã, às vezes levantando as vozes. (…) Lyosha aprendeu alguns dos nomes [deles], incluindo Gorbachev, que era o mais importante. Ele tinha uma grande marca na testa e o primo de Lyosha, que era bastante mais velho, disse-lhe que era um mapa da URSS, porque Gorbachev era o Presidente. Quando Lyosha contou isso a Galina, ela riu-se e disse que aquilo era apenas uma marca de nascença. Ela tinha certamente razão, mas o primo recusava-se a entendê-lo.”

Enquanto Gorbachev gozava deste estado de graça inicial, a mesma benevolência não era concedida à sua mulher, Raisa. “A Rússia era uma sociedade muito conservadora e muitas pessoas achavam que uma mulher não devia aparecer em público o tempo todo com o líder do país. Durante muito tempo, enquanto Gorbachev ainda era popular, Raisa era muito impopular. Acho que de forma injusta, mas era assim”, aponta Archie Brown.

Russian President Mikhail Gorbachev And Wife Raisa

Gorbachev e a mulher Raisa

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Gorbachev tirava partido da sua mulher inteligente e culta, licenciada em Filosofia e professora na Universidade, sobretudo nas visitas de Estado ao estrangeiro. Mas, na União Soviética, Raisa não causava o mesmo efeito. “Era demasiado intelectual, assertiva e auto-confiante”, pode ler-se em Herectic in the Kremlin. “À medida que o tempo passava, a presença de Raisa na entourage de Gorbachev provocava mais comentários negativos e invejosos, sobretudo sobre as suas bonitas roupas e a sua forma de estar orgulhosa, que muitos consideravam ser ‘imperial’. A sua impopularidade aumentou à medida que a oposição às medidas de Gorbachev eram sentidas. Os seus adversários podiam atacá-lo em público criticando a sua mulher. Ele tinha noção do problema: nunca se referia a ele em encontros públicos no seu país, algo que fazia quando estava no estrangeiro.”

A sociedade no geral não apreciava Raisa e muitos membros do Politburo também não. William Taubman oferece uma possível explicação para isso: “Gorbachev descreveu-a como uma ‘maximalista’, que com o tempo vim a compreender que significava alguém que não fazia compromissos”, descreve. “Quando entrevistei ambos, ela fez uma descrição de algumas reuniões políticas e daquilo que classificou como ‘as mulheres do Poliburo’. Ela tinha uma língua ácida, descreveu aquelas mulheres como pessoas cheias delas próprias, mas vazias de tudo o resto, competindo nos elogios ao líder e achando que tinham direito a todos os privilégios que recebiam. Por isso, imagino que os conselhos que ela deu a Gorbachev ao longo dos anos eram mais no sentido de forçar a mudança e de fazer menos compromissos do que aqueles que ele muitas vezes fez, sobretudo com a linha dura do Partido.”

Ao mesmo tempo, nas ruas, Raisa tornava-se o foco do descontentamento. Ela era o pára-raios de tudo o que desagradava aos soviéticos, até no próprio Gorbachev:

“Gostávamos dele, mas não por muito tempo; tudo nele começou a irritar-nos: como falava, o que dizia, os modos dele, a mulher dele. (Ri-se.) Pela Rússia corre uma troika: Raika, Michka e a perestroika. Veja, por exemplo, Naina Eltsina… [mulher de Boris Yeltsin] Gostam mais dela, está sempre atrás do marido. Mas Raisa arranjava maneira de ficar ao lado, ou até mesmo à frente. E no nosso país é assim: ou és czarina, ou não faças sombra ao czar”, partilhou uma mulher com Svetlana Alexievich em O Fim do Homem Soviético (ed. Porto Editora).

Os nacionalismos étnicos e a ira de Yeltsin. O princípio do fim

Em 1987, os sinais da queda de popularidade de Gorbachev tornaram-se mais evidentes. O leste europeu estava em ebulição e várias repúblicas soviéticas — já para não falar de outros países do Pacto de Varsóvia, como a Polónia — começavam a deixar claro o seu descontentamento com a União. A abertura da glasnost deu voz às reivindicações ligadas às etnias nacionais e o questionamento sobre a legitimidade da própria União. Na Letónia, organizou-se uma manifestação pelas vítimas da repressão estalinista. Na Arménia, formou-se um comité para criar uma petição que pedia ao Kremlin o regresso do enclave de Nagorno-Karabakh à república arménia, em vez de continuar parte do Azerbaijão. Na própria Rússia, os tártaros da Crimeia começaram a protestar para poderem regressar à Crimeia, de onde tinham sido deportados por Estaline décadas antes.

“Seria de pensar, e, realmente, eram muitos os que pensavam, que, chegado o ano de 1987, Gorbachev teria encorajado ativamente as reformas na Europa de Leste. Em retrospetiva, a melhor maneira de impedir o colapso do comunismo, levando consigo todo o sistema de alianças soviético na Europa, teria sido encorajar os reformistas como ele a assumirem o controlo dos seus países com o apoio do povo”, reflete William Taubman na biografia do líder soviético. Contudo, não foi essa a reação da Gorbachev. Manteve o apoio aos líderes regionais e não deu sinais aos reformistas das restantes repúblicas de que apreciava os seus esforços de democratização. A exceção foi apenas a Roménia de Nicolae Ceauşescu, onde Gorbachev fez um discurso dissonante do do líder romeno, com quem discutiu firmemente em privado: “Aquilo que você faz passar por uma sociedade próspera e humana não o é, e muito menos será democrática. Está a controlar o país pelo medo e está a isolá-lo do mundo”, acusou, num jantar em privado com as respetivas esposas.

Ao mesmo tempo, Gorbachev começava a sentir-se pressionado de ambos os lados do espectro político. Os conservadores do Politburo mostravam-se cada vez mais desagradados com a glasnost. A título de exemplo, Victor Chebrikov, líder do KGB, foi gradualmente passando de apoiante de Gorbachev a homem próximo de Ligachev, um dos membros mais proeminentes da linha mais dura do regime soviético. Temia o impacto das novas políticas na ação da sua polícia.

Do outro lado, Gorbachev enfrentava os liberais do Politburo, entre os quais se destacava uma figura que marcaria o percurso e a vida política de Mikhail: Boris Yeltsin, o antigo representante do Partido em Sverdlovsk tornado líder do Partido em Moscovo pelo próprio Gorbachev. Apoiante inicial das reformas de Gorbachev, Yeltsin sempre se destacou dos restantes membros do Politburo.

Boris Yeltsin

A rivalidade entre Yeltsin e Gorbachev seria decisiva para o futuro da URSS

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Como se descreve em Herectic in the Kremlin, “era incrível que um homem como Yeltsin tivesse vindo do próprio sistema comunista”. Defensor público da democratização, gostava mais de defender publicamente o “homem comum” do que o Partido. “Começou a ir de autocarro para o trabalho e recorreu a táticas próprias de guerrilha para combater a corrupção. Não admira que a sua reputação tenha crescido: muitos estavam maravilhados”, acrescentam Doder e Branson. Por outro lado, Yeltsin era um político ambicioso e sabia mover-se dentro do sistema para conseguir o que queria: “Adorava o poder e procurava-o intensivamente, acabando por se tornar um combatente feroz dentro do Partido. Rapidamente aprendeu a importância das relações públicas e jogava o jogo com destreza e capacidade surpreendentes”.

Apoiante inicial de Gorbachev, Yeltsin começou a tentar ganhar margem política, mostrando-se ainda mais liberal do que o líder do Partido. Tal levaria à rotura completa em 1987. Numa reunião do Politburo em setembro, Ligachev criticou Yeltsin por ter deixado decorrer duas manifestações não autorizadas em Moscovo; este reagiu intempestivamente. A 27 de outubro de 1987, em nova reunião do Politburo, Gorbachev ignorou as questões levantadas por Yeltsin em privado. Furioso, o líder do PCUS em Moscovo pediu para intervir e fez um discurso violento contra o líder, acabando por pedir a demissão do Comité Central. O Politburo atacou Yeltsin sem misericórdia e Gorbachev nada fez para o defender. Em vez disso, acrescentou que a sua postura e a sua decisão de abandonar o Politburo era de uma “irresponsabilidade absoluta”. Yeltsin nunca perdoaria a Gorbachev aquilo que viu como uma traição. A relação entre os dois viria a revelar-se decisiva para o futuro da União Soviética, como veremos mais tarde.

Com a passagem do tempo, a situação tornava-se cada vez mais aguda para o líder da União Soviética. “Na manhã de 10 de novembro, Gorbachev foi informado por um nervoso embaixador da Alemanha de Leste que centenas de cidadãos de Berlim à espera de poder passar para o outro lado abriram as passagens na fronteira ao longo do muro”, conta Archie Brown em The Human Factor. A resposta de Gorbachev coincidiu com os seus habituais instintos mais democráticos: “O líder soviético respondeu que ‘tomaram a ação correta’ e pediu ao embaixador que transmitisse à liderança da RDA a sua aprovação”. Apesar da sua resposta rápida, Gorbachev tinha sido apanhado totalmente de surpresa com as notícias da queda do Muro de Berlim.

Com a República Democrática da Alemanha em colapso, abriu-se inevitavelmente o tema da possível reunificação das Alemanhas. Mas, de acordo com a biografia de Taubman, Gorbachev foi lento a decidir o rumo a tomar nessa matéria. Amparado por declarações como as de Thatcher, que lhe garantiu não ter qualquer interesse em ter uma Alemanha reunificada e novamente poderosa no continente europeu, o líder soviético manteve a ilusão de que ainda seria possível manter a RDA. Contudo, foi rapidamente ultrapassado pela realidade e não se opôs ao processo inevitável em curso. “Sendo eu dedicado à democracia, como poderia opôr-me?”, disse anos mais tarde a Taubman. “Fazê-lo não seria digno.”

Com a reunificação das Alemanhas alcançada, surge novo desafio: e se a nova república alemã quisesse entrar na NATO? Toda a posição de Gorbachev nesta matéria é ainda um mistério por resolver. Anos mais tarde, na velhice, criticaria ferozmente o Ocidente por ter permitido essa adesão, que considera ter sido uma ameaça e uma humilhação para os russos. Mas a verdade é que, aquando no poder, Gorbachev não resistiu a essa decisão nem impôs condições. William Taubman elenca todas as dúvidas que ainda nos restam nos dias de hoje:

“Porque será que Gorbachev não negociou com mais veemência quanto à questão da entrada da Alemanha para a NATO? Porque não exigiu, quis o seu antigo conselheiro Brutents saber, que as tropas soviéticas permanecessem no que fora a Alemanha de Leste, uma concessão que Margaret Thatcher talvez estivesse disposta a fazer? Porque não insistiu, tal como desejava o anterior assessor Georgy Kornienko, que as tropas da NATO deixassem a Alemanha Ocidental em troca da retirada soviética do Leste? Porque não solicitou uma concessão passível de ser aceite pelo chanceler alemão ocidental Kohl — que a participação alemã na NATO se baseasse na francesa, ou seja, empenhada da defesa da Europa, mas não diretamente envolvida na organização militar? Porque não obteve uma garantia escrita de que a NATO não se estenderia mais para a Europa de Leste?

O biógrafo sugere algumas hipóteses, como a de que Gorbachev teria consciência que a adesão da Alemanha à NATO era inevitável e não tinha poderes para travá-la, ou porque sentia que necessitava de “uma Alemanha bem disposta” para ganhar um parceiro comercial de relevo na Europa ou até porque estava demasiado absorvido numa visão geral de um “Admirável Mundo Novo” onde a União Soviética podia viver mais em paz com o Ocidente — e foi ingénuo. Questionado pelo Observador, Taubman é agora mais franco: “Quando se olha para a questão da reunificação da Alemanha e da adesão da Alemanha à NATO, aquilo que vemos é Gorbachev a improvisar à maluca. A certa altura ele chegou a dizer ‘Bem, deixemos a Alemanha ser membro tanto da NATO como do Pacto de Varsóvia’. Era uma ideia louca! Creio que ele perdeu algum do seu jeito, nessa altura. E isso minou-o.”

Mikhail Gorbachev And Fidel Castro

Gorbachev com Fidel Castro na parada a assinalar a Revolução de Outubro em 1987

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A insatisfação dos soviéticos com Gorbachev atingiu o seu zénite na manifestação do 1.º de maio de 1990. Enquanto o Comité Central assistia à parada, vários russos aproveitaram para marchar com cartazes que diziam frases de ordem como “Socialismo? Não, obrigado” ou “Abaixo o Politburo! Demitam-se!” O jornalista David Remnick, que estava presente na cerimónia em Moscovo, descreve a surpresa ao ver a impassividade do líder da União Soviética:

“Pedi um par de binóculos emprestado e espreitei as caras dos homens nas bancadas”, conta. “Ligachev olhava furioso, a sua cara tensa como uma noz. Yakovlev estava calmo, como Yoda; Popov parecia completamente sereno, até agradado, mas mostrava-se hesitante em demonstrá-lo junto daquela companhia. Gorbachev, como sempre, era um mestre nas suas emoções. Enquanto milhares de pessoas o criticavam, ele nunca deixou que um vislumbre de raiva passasse no seu rosto.”

Taubman, no entanto, sabe que por dentro “Gorbachev fervia”. “Depois de cerca de vinte e cinco minutos deu meia-volta e desceu do mausoléu, seguido pelos outros, também acompanhados, recordaria Charnyaev, por ‘escárnio, risos, assobios e gritos de “Vergonha!”’ da turba que agora se encontrava mesmo à frente do mausoléu. Nessa noite, Gorbachev telefonou a Charnyaev, maldizendo os manifestantes como ‘patifes e sacanas’ (…) [na véspera], Gorbachev queixar-se-ia a Chernyaev e a Brutents que ‘chegara ao ponto de rutura’ e que tinha a cabeça a ‘rebentar’.”

A 15 de outubro desse mesmo ano, o líder do PCUS receberia o Prémio Nobel da Paz. “Gorbachev ficou estupefacto com o contraste entre a admiração mundial pelos seus feitos e o desprezo que eles evocavam no seu país”, ilustra Taubman.

A 15 de outubro desse mesmo ano, o líder do PCUS receberia o Prémio Nobel da Paz. “Gorbachev ficou estupefacto com o contraste entre a admiração mundial pelos seus feitos e o desprezo que eles evocavam no seu país”, ilustra Taubman. “Chernyaev encontrou-o a ler excertos de cartas e telegramas que o condenavam e ao seu prémio. Gorbachev leu uma das missivas em voz alta: ‘Senhor [!] Secretário-Geral: Parabéns por ser o recipiente do prémio dos imperialistas por arruinar a URSS, vender a Europa de Leste, destruir o Exército Vermelho, entregar os nossos recursos aos Estados Unidos e a comunicação social aos Sionistas’.”

Enredado na sua própria teia, tentando a todo o custo democratizar e criar laços com o Ocidente, ao mesmo tempo que tentava agradar à velha guarda no seu país, Gorbachev começava a estar cada vez mais isolado. Com o fim da RDA e o processo de reunificação da Alemanha, os nacionalismos dentro de outras repúblicas soviéticas ganham ímpeto. Os países do Báltico são os primeiros a reagir — em meados de 1990, a Lituânia, a Estónia e a Letónia já tinham todas declarado unilateralmente a independência da União Soviética. As negociações com a União começaram, até que em janeiro de 1991 os soviéticos reagem com força bruta, enviando tropas para a Lituânia e a Letónia. Ao todo, 20 pessoas morrem e centenas ficam feridas.

Também neste ponto não há certezas absolutas sobre o grau de envolvimento de Gorbachev nesta repressão.

“Kriuchkov referiu um encontro no gabinete de Gorbachev onde ‘foi decidido usar a força contra os extremistas na Letónia e na Lituânia’. Depois de o superior fingir não se recordar da conversa sobre a viagem a Vilnius, o assessor de imprensa de Gorbachev Vitaly Ignatenko concluiu que Gorbachev não fora ‘mal informado’ sobre a operação de Vilnius, estando (segundo a paráfrase de Charnyaev), ‘a levar a cabo o seu plano de intimidar o Báltico’. Vadim Bakatin, o antigo ministro do interior liberal, concluiu que Gorbachev ‘não podia saber’, mas que lhe deviam ter garantido, dada a sua conhecida oposição ao uso da força, que os lituanos podiam ser intimidados sem sangue. Seria de que pensar que o ressentido chefe de gabinete Boldin afirmasse que Gorbachev sabia de tudo, mas, mais tarde, Boldin escrevera que não tinha a certeza até que ponto estava Gorbachev envolvido”, resume William Taubman.

Certo é que “O Massacre de Vilnius” e “As Barricadas”, como ficaram conhecidos os movimentos de repressão, levaram a uma maior desilusão dos liberais com Gorbachev. O líder soviético tinha noção disso, mas considerava que era necessário manter o equilíbrio entre a ala conservadora e a ala progressista, para manter o país seguro. “Em janeiro, depois de os acontecimentos em Vilnius alarmarem Washington, Gorbachev disse ao embaixador Matlock (e ao presidente Bush, através dele) que ‘estamos à beira da guerra civil’, e para o impedir, ele teria de proceder a ‘ziguezagues’ que talvez parecessem inexplicáveis”, pode ler-se na biografia de Taubman. Um equilíbrio no arame muito difícil, que ia consumindo o líder, que tudo fazia para não cair no vazio.

Ainda no início de 1991, David Remnick conseguiu cruzar-se com o próprio Gorbachev num intervalo de um dos Congressos do Partido e aproveitou a oportunidade para lhe perguntar se não estaria a mover-se demasiado “para a direita”. “Gorbachev parou de andar e fixou os olhos em mim”, relata em Lenin’s Tomb. A sua boca congelou num sorriso esforçado e irónico. A verdade é que, disse, ‘sinto-me como se andasse em círculos’.”

Dois golpes: o falhado de agosto e o vitorioso de Yeltsin

Depois da repressão nos Bálticos e da jogada para agradar à direita, Gorbachev insistiu no ziguezague e passou ao ataque, numa ação bem vista pela esquerda: em abril, reuniu em Novo-Ogaryovo nove presidentes da repúblicas soviéticas (excluindo as dos Bálticos, a Moldávia, a Geórgia e a Arménia) e decidiu começar a redigir um tratado para uma nova União de Estados Soberanos, não soviéticos e com os respetivos países a adotarem novas Constituições. “De repente, pensaria o assessor e intérprete de Gorbachev, Palazhchenko, ele tinha ‘tirado outro coelho da cartola’. Os conservadores, que vinham a tornar-se demasiado poderosos, estavam agora isolados. Os líderes das repúblicas, Yeltsin incluído, que estavam a tornar-se demasiado incómodos, voltavam a ficar controlados”, resume Taubman.

Para Mark Galeotti, as ações de Gorbachev explicam-se como uma gestão “dia-a-dia”. “Ele estava a tentar domar o tigre”, acrescenta. “É Gorbachev clássico. Ele gostava de ser sempre a figura moderada no meio: queria usar os ultraconservadores e os ultraliberais uns contra os outros. Por isso ia ter com os conservadores e dizia ‘Oiçam, eu sei que estou a ir mais longe do que vocês gostavam, mas vejam aqueles liberais loucos. É melhor fazermos um acordo com eles do que eles tomarem conta disto’. E depois ia ter com os liberais e dizia ‘Oiçam, vocês podem não gostar de mim e estarem descontentes com o ritmo das reformas, mas olhem para aqueles conservadores horríveis. Se vocês insistirem muito eu deixo de os poder controlar e voltamos ao passado’.”

"Aqui estava um homem que acreditava genuinamente no marxismo-leninismo, numa altura em que o partido tinha basicamente perdido todos os vestígios de um partido marxista-leninista, era apenas um partido de poder. Mas ele mantinha a esperança de que, de alguma forma, poderia levar o Partido de volta ao que tinha sido. Se Gorbachev fosse apenas um político maquiavélico, tinha abandonado o Partido muito mais cedo.”
Mark Galeotti, especialista em política russa

Seria esta atitude fruto de uma vontade de se manter no poder, custe o que custar? Galeotti crê que não. “É claro que ele era um político e os políticos têm sempre uma relação flexível com a verdade”, admite. “Mas esta é uma das coisas fascinantes de Gorbachev: ele era mesmo um dos últimos crentes. Aqui estava um homem que acreditava genuinamente no marxismo-leninismo, numa altura em que o partido tinha basicamente perdido todos os vestígios de um partido marxista-leninista, era apenas um partido de poder. Mas ele mantinha a esperança de que, de alguma forma, poderia levar o Partido de volta ao que tinha sido”, afirma. “Se Gorbachev fosse apenas um político maquiavélico, tinha abandonado o Partido muito mais cedo.”

À medida que o verão se aproximava, o processo de Novo-Ogaryovo ia avançando. “O texto foi sofrendo várias alterações e, com cada uma delas, ia-se tornando mais radical e dando mais poderes a cada uma das repúblicas e menos ao centro”, esclarece Archie Brown. “E, é claro, quando a última versão estava à beira de ser assinada, aconteceu o golpe de agosto de 1991”.

A ala mais conservadora do Politburo não tolerou um plano em que o PCUS perdia grande parte do seu poder sobre as repúblicas soviéticas e entrou em ação. “Às seis e às oito daquela manhã, quando a rádio e as televisões retomaram a programação habitual depois da pausa noturna, uma voz masculina familiar apareceu no ar e disse “Um decreto do vice-presidente da URSS. À luz da incapacidade, por razões de saúde, da Mikhail Sergeyevich Gorbachev continuar os seus deveres como Presidente da URSS (…) o vice-presidente, Yanaev, assumiu os deveres da presidência da URSS a 19 de agosto de 1991’. Depois, o pivô leu dois comunicados ao povo da URSS, assinados por pessoas que se identificavam como ‘a liderança soviética’”, recorda-se no livro de Masha Gessen, The Future is History.

“Prometiam restaurar o orgulho, a segurança e a integridade da URSS — na véspera da assinatura do tratado da união, para restaurar o império como existia antes. Lido no ar e publicado nos jornais matutinos, o comunicado era assinado pelo Comité Estatal do Estado de Emergência, na URSS, composto por oito pessoas, incluindo o vice-presidente de Gorbachev, Gennady Yanaev; o chefe do KGB, Kryuchkov; bem como o primeiro-ministro e os ministros da Defesa e do Interior — todo o conjunto de conservadores que ultimamente rodeavam Gorbachev. Demoraram dez minutos a ler todos os comunicados. Depois disso, começou a tocar o Lago dos Cisnes.”

Ao mesmo tempo, Gorbachev encontrava-se de férias com a família na Crimeia, em Foros. Pegou no telefone e percebeu que a sua linha estava cortada. Pouco depois, chegou a Foros uma delegação do grupo que levou a cabo o golpe de Estado, para conversar com ele. “Antes de os visitantes entrarem, Gorbachev percebeu perfeitamente que algo estava muito errado. Reuniu a família e disse-lhes ‘Tudo pode acontecer depois disto’. Eles responderam-lhe que ficariam consigo ‘Até ao fim’. Mais tarde, ao descrever a cena, Raisa pareceu referir-se ao assassínio dos Romanov após o golpe bolchevique para descrever os seus medos mais profundos: ‘Conhecemos a nossa História e os seus aspetos trágicos’”, recorda David Remnick.

Gorbachev e a família ficaram assim sequestrados pelos visitantes e impedidos de sair da datcha de família. Ao mesmo tempo, em Moscovo, alinhavam-se tanques pelas ruas. Mas os moscovitas saíram em massa para a rua e reuniram-se em frente à Casa Branca, a sede do governo. A tensão no ar era palpável, mas os soldados acabaram por não disparar um único tiro. E, à medida que os próprios conspiradores hesitavam e a multidão não arredava pé das ruas — amparada por Yeltsin e outros políticos liberais — o golpe acabaria por falhar em menos de três dias.

Em Foros, a família Gorbachev voltou a ter telefone às 17h45 do último dia do golpe. “Gorbachev telefonou de imediato a Yeltsin, que exclamou, ‘Meu caro Mikhail Sergeyevich, está vivo! Há quarenta e oito horas que estamos prontos para lutar por si’. Gorbachev também ligou a Nursultan Nazarbayev e Leonid Kravchuk, presidentes do Cazaquistão e da Ucrânia, falou com Moscovo e ordenou que os conspiradores fossem impedidos de entrar no Kremlin e que todas as suas comunicações fossem cortadas, e falou com o presidente George H. W. Bush em Kennebunkport, Maine, que exclamou ‘Meu Deus, que maravilha, Mikhail! Meu Deus, que bom ouvi-lo’. Contudo, durante a fase inicial da tentativa de golpe, Bush hesitara em condená-lo de imediato, não fosse revelar-se bem sucedido, tendo de tratar mais tarde com os líderes”, explica Taubman na sua biografia.

Na capital russa, o momento era de euforia, como relatou anos mais tarde uma das manifestantes presentes a Svetlana Alexieivich:

“Vencemos! Gorbachev voltou de Foros para um país completamente diferente. As pessoas caminhavam pela cidade e sorriam umas às outras. Vencemos! Este sentimento não me abandonou durante muito tempo… Caminhava e recordava-me… tinha as cenas diante dos meus olhos… Alguém gritou: ‘Os tanques! Vêm aí os tanques!’ Todos se deram as mãos e ergueram-se num cordão. Às duas ou três da madrugada. Um homem ao meu lado puxou um pacote de bolachas: “Querem bolachas?” E toda a gente aceita aquelas bolachas. Por qualquer razão rimo-nos às gargalhadas. Queremos bolachas… queremos viver! Mas eu… até agora… sinto-me feliz por ter estado lá.”

Gorbachev regressou a Moscovo nesse mesmo dia, mas, devido ao estado da mulher (que ficou profundamente abalada pelo sequestro e viria a sofrer mais tarde um AVC que se crê estar relacionado com esse evento), decidiu ir diretamente para casa em vez de se dirigir à multidão em frente à Casa Branca. Seria um erro estratégico que pagaria caro. Para os manifestantes, o rosto da resistência ao golpe não foi o presidente da União Soviética — foi Boris Yeltsin.

Nos meses seguintes, Gorbachev esforçar-se-ia para transmitir aos soviéticos e ao mundo que continuava a ser o líder. No outono, recebeu várias visitas de líderes estrangeiros e garantiu que estava a controlar a situação. “Estava igualmente a tentar convencer-se a si próprio, mas acabou por não convencer ninguém, pois a imagem que deixou transparecer, pese embora o esforço de parecer otimista, era a de um homem que ia pela última vez ao tapete”, descreve Taubman na sua biografia. Ao Observador, o escritor sublinha que Gorbachev estava cada vez mais “errático”. “A seguir ao golpe, quando ele se volta a reunir com os líderes das outras repúblicas, alguns conselheiros dizem-lhe que não deve tentar mandar nos outros, mas ele continua a tentar fazê-lo. É assim que ele se vê, ele continua convencido de que ainda mantém esta autoridade e este poder, quando na verdade isso desfez-se debaixo dos seus pés.”

Chegados a dezembro de 1991, Yeltsin toma as rédeas da situação. Nas costas de Gorbachev, reúne-se com o Presidente ucraniano Leonid Kravchuk e com o homólogo bielorrusso Stanislav Shushkevich e assinam os Acordos de Belavezha, que decretam que a União Soviética já não existe e os três países passam a formar entre si uma Commonwealth de Estados Independentes (CIS). Gorbachev fica furioso, mas, de nada serve: poucos dias depois, outras repúblicas soviéticas aderem ao novo tratado. Mikhail Gorbachev fora derrotado por Boris Yeltsin. A 21 de dezembro de 1991, faz um anúncio ao país na televisão que sela o destino da União Soviética: “Boa noite. Estas são as notícias. A URSS já não existe”, anuncia o pivô.

Gorbachev opta por um discurso sóbrio, onde tenta explicar o rumo titubeante que tomou ao longo dos últimos meses: “Sempre fui firmemente a favor da independência das nações e da soberania das repúblicas. Ao mesmo tempo, apoio a preservação da União e a integridade deste país”, afirma perante a câmara. Elenca de seguida vários dos seus sucessos políticos — e, no final, reconhece que “alguns erros” poderiam ter sido evitados. Como ideia principal, sublinha que é vital “preservar as conquistas democráticas adquiridas nos últimos anos”. “Pagámos estas conquistas com toda a nossa História e a nossa experiência trágica e não pudemos abandoná-la, quaisquer que sejam as circunstâncias ou os pretextos”, avisa.

Nos dois dias seguintes, Gorbachev e Yeltsin reúnem-se para acertar os pormenores da transição do poder para Yeltsin. O antigo líder do Partido em Moscovo, ainda ressentido pelos acontecimentos do Congresso de 1987, aproveita a oportunidade para humilhar ainda mais Gorbachev, recusando-se a aceitar das suas mãos a pasta com os códigos nucleares. Taubman relata na sua biografia o que aconteceu de seguida, nos últimos momentos de Gorbachev dentro do Kremlin:

“Quando a reunião finalmente acabou, Gorbachev engoliu dois tragos de vodca, confessou que não estava a sentir-se bem, e desapareceu numa sala das traseiras. Yeltsin e Yakovlev continuaram a beber, a comer e a falar até que Yeltsin se afastou pelo corredor vazio de parquet, qual conquistador, recordaria Yakovlev, ‘como se marchasse pela parada’. Quando Yakovlev foi ver de Gorbachev, encontrou-o deitado num sofá, com lágrimas nos olhos.

— ‘Como vês, Sash’, diria ele, ‘é assim que as coisas acabam’.
Gorbachev pediu água. Disse que queria ficar sozinho.”

Mais tarde, Gorbachev admitiria que julgou mal a situação e que teria sido mais benéfico se se tivesse aliado aos liberais, representados por Yeltsin, mais cedo. “Devia ter tentado alguma forma de cooperação, uma mesa redonda, algo do género”, confessou ao jornalista David Remnick. “Perdi essa oportunidade e paguei caro por isso.”

Para os autores ouvidos pelo Observador, esta derrota de Gorbachev foi, porém, um dos pontos altos da sua liderança, ao aceitar ceder o poder sem qualquer forma de resistência violenta. “Comparemos isto com o que aconteceu na Jugoslávia, por exemplo, e as terríveis guerras civis que se sucederam. Gorbachev queria acima de tudo evitar uma guerra civil. Ele queria formar uma nova União, uma espécie de federação voluntária. Mas não queria fazê-lo a qualquer custo e muito menos com recurso à violência”, analisa Archie Brown. William Taubman reforça essa ideia: “No final, o melhor dele veio ao de cima. Saiu com dignidade”.

“Gorbachev foi completamente marginalizado e teve de fazer o seu comunicado na televisão, como se fosse um responsável menor, em vez de o líder de um grande país que tinha deixado de existir. Acho que, apesar de tudo, Yeltsin venceu e, por isso, podia ter sido mais gracioso na vitória”,
Jonathan Steele, antigo correspondente do The Guardian na URSS

Por outro lado, a posição de Yeltsin é alvo de mais críticas por parte destes especialistas. “Gorbachev foi completamente marginalizado e teve de fazer o seu comunicado na televisão, como se fosse um responsável menor, em vez de o líder de um grande país que tinha deixado de existir. Acho que, apesar de tudo, Yeltsin venceu e, por isso, podia ter sido mais gracioso na vitória”, aponta o antigo correspondente do Guardian, Jonathan Steele. “Este é um daqueles casos — e não há muitos na História — em que o fator pessoal sobrepôs-se ou agravou o fator político.”

Taubman acrescenta ainda mais a esta fogueira. “Acho que Gorbachev sentiu a necessidade de humilhar Yeltsin [em 1987]. E Yeltsin nunca o perdoou e estava determinado em humilhar Gorbachev. E depois de terem acabado de se humilhar um ao outro, o país tinha desaparecido. Ou, pelo menos, o regime”, diz o biógrafo. “Não sou psicólogo de profissão, mas vou tentar dar uma de psicólogo amador: às vezes as semelhanças entre duas pessoas produzem desprezo. Sobretudo quando aquilo que se vê no outro é algo de que não gostamos em nós próprios. Acho que Gorbachev sentia que Yeltsin tinha um ego demasiado grande e, no fundo, ele sabia que também tinha um ego assim.

O ocaso de Mikhail Gorbachev

Com a saída da liderança, Gorbachev teve autorização da CIS para manter o seu pequeno apartamento na Rua Kosygin, o seu carro oficial e guarda-costas. Com o fim da URSS, a nova Rússia de Yeltsin entrou numa liberalização de mercado, recebida entusiasticamente ao início, mas que levou ao disparar dos preços e a uma crise económica que deixou o país de rastos. Muitos começaram a culpar Gorbachev por este resultado. Enquanto isso, o antigo Presidente refugiou-se numa semi-obscuridade.

“Gorbachev é um agente secreto americano… Um maçónico… Traiu o comunismo. Atirou os comunistas para o lixo, os membros do Komsomol para a estrumeira! Odeio Gorbachev porque me roubou a minha pátria. Conservo o passaporte soviético como a coisa mais preciosa”, desabafou um russo anónimo com Svetlana Alexieivich em O Fim do Homem Soviético. “Sim, ficávamos na bicha para comprar uns frangos azulados e umas batatas podres, mas era uma pátria. Eu amava-a. (…) Ninguém quer uma Rússia forte, com os comunistas ou sem eles. Olham para nós como para um depósito — de petróleo, de gás, de florestas e metais leves. Trocámos o petróleo por calças de ganga. (…) Pagaram bem por isso a Gorbachev… Mais cedo ou mais tarde ele será julgado. Espero que esse judas viva até à ira do povo. De bom grado eu lhe dava um tiro na nuca no polígono de Butovski (Dá um murro na mesa.) Começou a felicidade, foi? Apareceram os salames e as bananas. Agitamo-nos na merda e só comemos coisas estrangeiras. Em vez da pátria, um grande supermercado. Se a isto se chama liberdade, eu não quero esta liberdade.”

Mikhail S. Gorbachev

Getty Images

Mark Galeotti explica ao Observador esta reação aparentemente contraditória face ao que parecia ser desejado pela maioria da população em 1991: “Por um lado, eles não queriam derramamento de sangue, mas por outro, muitos não queriam perder a União. O país encolheu. É preciso lembrarmo-nos de que este não era um império no Ultramar, como o português ou o britânico. Era um império terrestre, com as fronteiras das colónias a tocarem nas fronteiras da Rússia. De repente, o país colapsou e grande parte da costa do Mar Negro já não era Rússia. Ialta, onde muitos iam passar férias, também não. O mesmo para a costa da Geórgia, ou Odessa (na Ucrânia), ou os Bálticos. De repente eram precisos vistos. Havia uma sensação de o país ter encolhido. Os russos sentiam-se diminuídos e ficaram chocados. Gorbachev levou com a maior parte das culpas, muito embora Yeltsin também devesse ser responsabilizado.”

Saído do poder aos 60 anos, Gorbachev passou o resto da sua vida com pouca presença pública na Rússia, devido a esta impopularidade. Em 1996, arriscou uma última tentativa de concorrer à presidência contra Yeltsin, mas foi arrasado: “Foi difícil para Gorbachev adaptar-se ao facto de já não ter influência no país. É assim com muitos políticos, sobretudo quando não são eles a decidirem o momento de saírem de cena. É habitual ver estas tentativas de regresso, que normalmente falham vergonhosamente. Foi vergonhoso, mas creio que é inconsequente. A verdadeira história de Gorbachev é o seu período no poder”, resume Galeotti.

Para Archie Brown, o facto mais importante da vida de Gorbachev está na sua evolução política ao longo do tempo. “Em 1985, quando ele se tornou Secretário-Geral, ainda o podíamos descrever como um comunista reformador. Mas, cinco anos depois, a visão dele já era mais semelhante à de Filipe González, o primeiro-ministro espanhol socialista. Ele evoluiu de comunista reformador  para uma espécie de socialista próximo da social-democracia. Só uma pessoa de mente muito aberta permite que as suas ideias continuem a evoluir assim ao longo da vida”, aponta.

"No fim de contas, Gorbachev falhou porque não estava disposto a recorrer à violência. De quantos líderes russos podemos nós dizer isso afinal?”
Mark Galeotti, especialista em política russa

Galeotti concorda que Gorbachev era um reformador, mas sublinha que, na verdade, o tratado da união que estava a tentar negociar nos seus últimos anos no poder era absolutamente “revolucionário”. O seu legado, apesar de todos os erros, é memorável e definiu a História.

“A essência da história de Gorbachev é que ele não trouxe apenas reformas ao sistema soviético — trouxe reformas humanas”, diz o investigador. “E, no fim de contas, Gorbachev falhou porque não estava disposto a recorrer à violência. De quantos líderes russos podemos nós dizer isso afinal?”

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